Ana Miranda: os limites entre militância e literatura

25/07/2017

 

Para a escritora Ana Miranda, o ato de escrever é uma militância, sobretudo quando liberta das limitações impostas pelo mercado. É um ato político falar sobre determinados temas, sob determinadas formas artísticas, tendo a língua portuguesa como uma poderosa ferramenta de expressão e sem que literatura se transforme em um instrumento de doutrinação.

Tal pensamento ecoa ainda mais forte com a participação da romancista neste ano na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), maior festival literário do país, que conta com mais da metade de seus convidados mulheres e 30% de escritores negros orbitando ao redor do homenageado especial, Lima Barreto. Vibra com a ideia de uma maior espaço para as escritoras, brancas e negras. “As mulheres têm uma voz renovadora”, diz a autora de romances como Boca do inferno e A última quimera.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Conhecida por seu trabalho como romancista histórica, a autora também tem enveredou-se pelos campos da literatura infantojuvenil, com obras como Flor do cerrado: Brasília, que muito carrega de sua infância na capital brasileira, Menina japinim, que traz o falar dos povos Kaxinauá e Ashaninka, e Lig, inspirada nos netos. Dos primeiros anos de vida, carrega como boas recordações os processos de "enamoramento dos livros": dormiam juntos, na mesma cama, nos mesmos sonhos.

Apesar de ser escritora consagrada, considera ser o desenho sua maior aptidão. "O texto para mim é uma construção esforçada, quase dolorosa, nem sei por que escrevo, mas sinto essa necessidade e sei que o desenho não me completa”, diz a romancista, que defende a literatura como uma porta aberta para uma nova percepção do mundo.

Confira a seguir um bate-papo com a romancista, que fala sobre participação especial na Flip e na Flipinha, além de comentar sua obra voltada ao público infantil.

 

Como você enxerga essa relação entre a militância e o fazer literário? E o que representa uma Flip com Lima Barreto?

Escrever é uma militância, escrever honestamente, sem ser para o mercado, mas para si mesmo, para os seres humanos. Mas acho bacana esse movimento político que envolve o mundo literário, desde que não torne a literatura um instrumento de doutrinação. Ela já é um fenômeno político, naturalmente, estou sendo política quando decido, por exemplo, escrever romances históricos, e quando escrevo sobre o comportamento humano, e quando trabalho com a língua portuguesa como matéria de arte. Sobre a homenagem a Lima Barreto, há um aspecto a mais nessa homenagem, que é uma espécie de estímulo a todos os escritores ou os que almejam ser escritores. É que um dia sempre o livro vai ocupar o lugar que ele merece, na história literária. Seja onde for, que ele esteja, deve estar com os olhos marejados e o coração batendo mais feliz. Vou reler os livros dele. Eu adorava ler o Clara dos Anjos e, quando morava em Paraty nos anos 1970, cheguei a escrever uma adaptação desse livro para cinema.

 

Quais são as suas expectativas para a Flip que, neste ano, abre maior espaço para as mulheres escritoras, brancas e negras?

Acho que vai ser muito legal, é a primeira vez que participo, vou estar muito cansada, chegando da China direto para Paraty, mas acho que o Oriente vai me fascinar tanto que vou ver tudo com novos olhos. E vai ser emocionante também rever uma cidade onde morei e tive tantos sonhos importantes, como o sonho que me levou a escrever o meu primeiro romance. Gostei da ideia de maior espaço para as escritoras brancas e negras, gosto da voz das mulheres, e as mulheres têm uma voz renovadora.

 

Você também estará na Flipinha. Como a literatura pode ser um portal para novos mundos? Como as histórias as fazem perceber e ler melhor esses universos?

A literatura, a boa literatura sempre é uma porta aberta. Seja para um mundo novo, seja para uma nova percepção do mundo que nos cerca e com o qual convivemos. Os novos mundos muitas vezes são mais poderosos na iluminação de nossa existência, porque trabalhando pelo modo de comparação e memória chegamos mais perto do cerne de nossas questões, sem a dor de sermos nós mesmos, como se tudo fosse em outro lugar, em outro tempo, mas sendo nosso lugar e nosso tempo verificados com olhos distantes.

 

Você cresceu em Brasília e sua infância lá está no livro Flor do cerrado: Brasília. Como foi sua primeira experiência de escrever para crianças?

Descobri dentro de mim alguém muito diferente, uma voz mais cuidadosa, mais acolhedora, e mais em busca da felicidade e do entendimento. Eu estava na verdade conversando com meus netos, que viviam distantes de mim, em outro país, e era uma maneira de aproximação registrada e sonhadora. Foi muito bom!

 

Ainda sobre o universo da infância, como era sua relação com livros e com a literatura? O que leu quando menina? Leu obras que a inspiram ainda hoje?

Os livros eram algo natural em minha vida de criança, eles moravam na minha casa, no meu quarto, éramos íntimos, às vezes dormíamos na mesma cama, abraçados. E eles moravam num lugar delicioso chamado Biblioteca, que tinha na Escola Parque, onde havia atividades mágicas, de enamoramento dos livros. Lembro a maioria dos livros que eu lia e relia, na infância, e lembro as ilustrações, acho que lembro o cheiro de papel, a sensação de fantasiar. Eram livros infantis, e os que me marcaram mais acho que foram O Patinho Feio e As aventuras do barão de Munchausen. O primeiro, pelo sentimento, e o segundo, pela beleza do absurdo. Também adorava Alice no País das Maravilhas. Um sonho!

 

Você diz que começou a escrever para crianças depois que nasceram seus netos. Costuma ler para eles? O quê? Eles são os primeiros leitores do que escreve para o público infantil? O menino Lig é inspirado neles?

Eu lia muito para eles, lia em português, eles moravam na Califórnia e eu os visitava todos os anos uma ou duas vezes, e levava sempre livros escritos em português, para que eles aprendessem a língua de suas origens (e o italiano, também). Procurava levar clássicos brasileiros, como O Menino Maluquinho, mas, sobretudo, livros de história natural, que eles adoravam, sobre dinossauros, o planeta Terra, a origem do Universo, nessa linha. E lia também clássicos da literatura universal, Robinson Crusoé, A volta ao mundo em oitenta dias, Moby Dick e tantas outras belas edições da Companhia das Letrinhas, que agradeço de coração. O Lig, sim, é inspirado no meu primeiro neto, que era um menino sonhador e tinha poéticas questões com as línguas que falava. Eles sempre foram meus primeiros leitores, e eu até os consultava sobre a história.

 

Qual a importância de as crianças lerem biografias e romances históricos? Como você, escritora, manipula a matéria literária para atrair os jovens leitores?

Eu não sei qual é a importância disso, sei que sempre vai ter algo a mais para quem lê, mais do que um livro só de ficção, porque, além do sonho, há a percepção de realidades, da construção de uma vida ou de um país, conexões que devem funcionar bem para a cabeça da criança. Eu não sei como manipular, para chamar a atenção dos jovens leitores, isso é incalculável, eu só me lembro de quando eu era menina, ou adolescente, e me ponho nesse lugar da memória, eu falava mais simples, uma vivência muito boa para sentir.

 

Foi-se o tempo em que as biografias escritas para crianças representavam uma espécie de literatura exemplar, em que os personagens biografados eram modelos da genialidade e da perfeição. Escritas a partir de uma perspectiva mais realista, as biografias cada vez mais apresentam os indivíduos como pessoas cheias de dúvidas, complexas, reais – e imperfeitas. É isso mesmo? Poderia comentar?

Acho que é isso, sim, e acontece em toda a literatura, os heróis viraram anti-heróis e depois nem mesmo anti-heróis, mas pessoas como qualquer um de nós, com suas qualidades e defeitos, sendo que às vezes os defeitos funcionam melhor na apresentação de um personagem, causam uma maior afeição. Vendo as dificuldades das outras pessoas, aceitamos melhor as nossas e nos sentimos mais humanos. Mas acho que não podemos cair no outro extremo, e que as qualidades também precisam ser valorizadas.

 

O livro Menina japinim é inspirado nos povos Kaxinauá e Ashaninka. Como surgiu essa história? Chegou a visitar esses povos alguma vez? Pode contar um pouco sobre o processo de fazer esse livro?

Estive na floresta amazônica nos anos 1970, numa incrível viagem que durou meses, estávamos filmando A faca e o rio, do holandês George Sluizer. Íamos pelo rio Negro e afluentes, num navio a vapor, do tipo gaiola, com aquela roda atrás, barco comprado no Mississipi. Vi índios, animais selvagens, povos ribeirinhos... Mas os Kaxinauá e os Ashaninka eu não conheci na época, conheci por meio da imaginação e do texto, um maravilhoso vocabulário feito pelo Capistrano de Abreu e dois kaxinauás. E quando escrevi o Menina Japinim, eu já havia escrito o romance Yuxin, que me levou a viver anos na floresta, imaginariamente.

 

A linguagem Menina japinim traz um pouco o jeito indígena de falar? Poderia comentar?

Sim, eu gosto de captar e tentar representar literariamente a voz de algum personagem, seja uma indiazinha, seja um poeta barroco, seja uma bailarina libanesa ou uma órfã portuguesa no século 16. Peguei o jeito dos Kaxinauá, lendo e relendo o vocabulário, em que a tradução é feita por eles mesmos, e na mesma ordem da construção da sintaxe: menino eu de dia quando de caçar gostava, por exemplo. Fabuloso ter acesso a isso, agradeço de joelhos ao Capistrano de Abreu. E também aprendi o uso das sonoridades, das onomatopeias, e alguns vícios, por exemplo, Né? Né? Né? Como pontuação.

 

Você ilustrou vários de seus livros. Desenhava muito já na infância? Como você vê essa relação texto/imagem no livro?

Desenhava muito, sempre desenhei muito, desde sempre. Acho que a minha verdadeira aptidão talvez seja o desenho, pelo menos foi o que me surgiu primeiro e com muito ímpeto, eu desenhava obsessivamente, naturalmente, depois foi que passei a escrever, primeiro, poesia e depois prosa. Tenho muito mais facilidade para desenhar, parece que sai automático, parece que tem vida própria o desenho. O texto para mim é uma construção esforçada, quase dolorosa, nem sei por que escrevo, mas sinto essa necessidade e sei que o desenho não me completa. O texto, sim. No livro infantil, a imagem é fundamental. Nos meus romances, foi uma genial ideia do Luiz Schwarcz a presença dos meus desenhos nas minhas capas, e acho que os desenhos fazem uma espécie de comentário onírico ao que há de mais secreto no texto.  

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