Quais são os direitos do pequeno leitor?

20/07/2017

 

 

Todo pequeno leitor tem o direito de escolher ser o herói (ou o vilão?), decidir onde quer ler seu livro preferido, brincar de fazer de conta (antes ou depois da leitura). E sonhar com um final feliz. Em Direitos do pequeno leitor, um manifesto escrito por Patricia Auerbach, o ilustrador Odilon Moraes reivindica mais um direito imprescindível: o de se demorar nas imagens.

O livro é uma adaptação para crianças de Os direitos inalienáveis do leitor, tratado do livro Como um romance, de Daniel Pennac. “Como se ilustra um manifesto sobre os direitos? Poderia fazer aquela tradução, ilustrar cada direito, mas isso ficaria muito redundante”, conta o ilustrador, autor de livros consagrados, como A princesinha medrosa e Pedro e Lua.

 

 

 

No tratado, com textos curtos marcados pelo ritmo, Odilon escolheu criar uma verdadeira dança entre imagens e palavras, uma marca do livro ilustrado, gênero que o premiado autor estuda há tempos. “As imagens que proponho são totalmente narrativas, é uma historinha de quatro crianças que estão lendo o livro, com a metáfora de que a leitura proporciona que, no final, elas se encontrem em um lugar comum, que é o lugar da literatura.”

No folhear das páginas, o leitor encontra alguns velhos conhecidos. Personagens de clássicos de Monteiro Lobato, Lewis Carroll e Maurice Sendak defendem o direito de o pequeno leitor imaginar ilimitadamente. Alguns personagens até parecem se fundir em momentos em que não sabemos se estão lá Max, protagonista de Onde vivem os monstros, ou Chapeuzinho Vermelho, a menina dos contos de fadas de toda infância.

Ele conta que, num livro com ilustrações, é possível ler o texto e ignorar as imagens, No livro ilustrado, não. As imagens são parte da história. “Se você passar pelas imagens como se não precisasse delas, não vai entender o livro. É como cinema, se você resolver fechar os olhos, não vai entender o filme”, explica o autor.

No bate-papo a seguir, Odilon reflete sobre o processo de fazer a obra e fala sobre as especificidades do livro ilustrado. Confira!

 

 

Em Direitos do pequeno leitor, você faz menção a vários clássicos da literatura infantil. 

Tem o Max, de Onde vivem os monstros, mas, ao mesmo tempo, ele é também Chapeuzinho Vermelho, então você confunde. Quem conhece Onde vivem os monstros até nota que tem uma certa similaridade com o Max, que é proposital, mas quem não conhece percebe que poderia ser a Chapeuzinho Vermelho também.

 

Como essas obras o influenciaram? O que você lia quando era criança?

Olha que coisa curiosa. Parece brincadeira, mas eu não tive uma forte influência da literatura infantil quando criança. Fui ler literatura infantil, Ziraldo, Ana Maria Machado, depois que eu já tinha quase dez anos como ilustrador. Mas não quer dizer que eu não tenha tido uma coisa semelhante à da literatura infantil no que diz respeito à imagem, porque meu pai tinha muitos livros de pintura, e tinha uma outra coleção de mitologia, que foi por onde aprendi a ler. Eu devorava livros de mitologia. Hoje isso está muito em voga, de você ligar super-heróis à mitologia. Cresci lendo mitologia como se eu estivesse lendo histórias de super-heróis. Lia essas histórias e buscava nos livros de pintura do meu pai as imagens que referissem às narrativas, às vezes ao contrário até. Eu via as pinturas e de repente via que tinha a pintura de um homem segurando uma maçã dourada, e três mulheres nuas na frente dele, e pensava “o que será que é isso?”. E então eu ia no livro de mitologia para descobrir que era o Julgamento de Páris, que as três deusas eram Juno, Vênus e Minerva, em um concurso de beleza. Tanto que o único livro que eu me lembro de ter lido de literatura infantil foi Os doze trabalhos de Hércules, do Monteiro Lobato. Desses clássicos da literatura infantil, Monteiro Lobato foi um dos poucos que realmente eu li, mais devido à minha paixão por mitologia do que pela minha paixão por literatura infantil. Hoje em dia eu posso dizer que eu sou apaixonado por literatura infantil, mas fui me apaixonar depois dos 20 anos.

 

O livro Direitos do pequeno leitor parece ser mais um tratado do que uma narrativa convencional. Como foi isso para você?

Aí entra um outro conceito, o do livro ilustrado. O álbum ilustrado é o que eu mais estudo na literatura infantil. Eu não sou nenhum especialista em literatura infantil, mas em livro ilustrado eu tento entender muito como funciona. No livro ilustrado, você tem a imagem, a palavra e o objeto, e essas vozes não necessariamente precisam dizer a mesma coisa. Porque muitas vezes entendemos que ilustração é o desenho do que está escrito no texto. Isso talvez seja o primeiro sentido de ilustração. Quando eu estava vendo os livros de mitologia e buscando uma pintura do Rubens para entender aquilo, talvez buscasse esse sentido primeiro de ilustração, que é você traduzir o que o texto de palavras está dizendo. Mas aí você começa a perceber que tem umas coisas interessantes. A história do livro ilustrado começa no século XIX, no entendimento de que a imagem, mesmo sendo uma possibilidade de escrita, não precisa contar a mesma coisa. Ao contrário, ao decidir contar outra coisa, você cria uma outra história. O livro não passa mais a ser a palavra, ele passa a ser a junção da palavra com essa história que você propôs com a imagem. Esse livro foi exatamente isso.

 

Como isso se deu em Direitos do pequeno leitor?

Quando o texto chegou até mim, até mesmo antes do convite da Companhia das Letras, eu já conhecia a Patricia há algum tempo. Quando ela me mandou o texto, eu já conhecia o do Daniel Pennac, que são Os direitos inalienáveis do leitor, aí eu falei: “Tem a ver com o Pennac?”. Ela falou: “Tem, tem sim, é exatamente por ler o Pennac que pensei nisso, que deveria ter os direitos da criança também”. E daí eu li, achei interessante, mas falei: “Como que vou ilustrar isso aqui? Como se ilustra um manifesto sobre os direitos?”. Poderia fazer aquela tradução, ilustrar cada direito, mas isso ficaria muito redundante, e eu queria exercitar o que a literatura infantil tem de mais original, que é o livro ilustrado. E tinha uma coisa fantástica nesse texto: o ritmo. E essa é outra característica muito forte do livro ilustrado. Um livro tradicional, por exemplo, você muda de edição, um texto que estava na página 2, na página de trás, pode pular para a página 3 sem nenhum prejuízo da história. No livro ilustrado, não. O fato de um texto ou uma imagem estar em uma página da direita e não da esquerda, ou estar na página de trás, por exemplo, tem o sentido de ritmo, porque o livro ilustrado funciona com a curiosidade que a página tem. Tem até um estudioso do livro ilustrado que fala que ele funciona no drama do passar de página, na expectativa. Embora o texto da Patricia não seja narrativo, as imagens que proponho são totalmente narrativas, é uma historinha de quatro crianças que estão lendo o livro, com a metáfora de que a leitura de livros proporciona que, no final, elas se encontrem em um lugar comum, que é o lugar da literatura.

 

No final do livro, você escreve: "Como ilustrador, defendo a inclusão de mais um direito entre eles: o de se demorar nas imagens". Você acha que as pessoas têm sido mais apressadas para ler um livro?

Sem falar em livro ilustrado, as ilustrações dentro de um livro têm esse caráter. Se você pegar ilustradores dos séculos XVIII e XIX, você vê que o intuito deles é fazer uma interpretação, é muito comparado à música. Você tem o autor da música e seus intérpretes, então Caetano Veloso interpretando Dorival Caymmi é diferente de Gal ou Tom Jobim ou até um grupo de rock. Cada um deles vai trazer a sua interpretação. Você também pode escolher assobiar ou cantar do seu jeito. Em um livro ilustrado tradicional, não livro ilustrado como gênero, mas em um livro com ilustrações, você tem o direito de recusar as imagens, de que as imagens estão me atrapalhando, porque o jeito que eu imagino a Chapeuzinho Vermelho é muito mais legal do que o jeito como esse ilustrador imaginou. Então você tem o direito de não se demorar nas imagens. Você pode passar batido, inclusive não ver as imagens. Você pode até achar o ilustrador péssimo, mas comprou o livro porque o texto é muito bom. Já em um livro ilustrado, as imagens são parte da história. Se você passar pelas imagens como se não precisasse delas, não vai entender o livro. É como cinema, se você resolver fechar os olhos, não vai entender o filme.

 

Essa atenção com a imagem muda quando a criança cresce?

Muitas vezes a criança se demora na imagem, mas na medida em que ela vai se tornando um leitor adulto, vai esquecendo isso, vai se obrigando a não prestar atenção. É como se as imagens fossem uma rodinha de bicicleta, depois que você aprende a andar, tem que tirar a rodinha. Um leitor adulto tem esse costume, mas, quando você começa a descobrir o livro ilustrado, vê que a criança está certa quando fica tentando entender o que a imagem está falando. Já que esse é um dos direitos do pequeno leitor, deixe as crianças prestarem atenção nas imagens e demorar nas imagens, porque elas estão certas. O adulto, quando pegar um livro ilustrado na mão, vai ter que aprender com a criança que ele tem que prestar muita atenção na imagem, ou vai perder o fio da meada.

 

No livro ilustrado, como é o processo entre os autores?

Foram dois tempos diferentes e com um acidente no meio muito interessante. Eu tinha recebido o texto da Patricia muito tempo antes, tinha lido e deixado na gaveta. Quando a Companhia das Letras me ligou, mandou o texto de novo, eu lembrava da conversa com a Patricia. Ganhei o texto e comecei a trabalhar, fui criando essa narrativa de imagem e fiz um boneco a partir desse texto, propondo essa história. Quando eu mostrei o boneco para a Patricia, ela olhou em uma reunião, na própria Companhia das Letras, entendeu a proposta, gostou. Eu voltei para casa e continuei trabalhando, achei que o casamento do texto dela com o meu tinha sido bom. No meio do meu trabalho, me disseram que aquele texto que eu tinha usado era um texto antigo dela, que ela já tinha mexido nele. Eu fiquei desesperado. A Patricia e a Mell [Brites, editora] tinham ficado o dia inteiro mexendo, trabalhando, e me mandaram o texto novo, que desencontrou em algumas coisas da ilustração. Marquei uma reunião urgente, do tipo parem as máquinas. Fui lá correndo, falei “espera aí gente, desencontrou tudo”. Expliquei que a imagem e palavra fazem uma dança. Não dá para de repente alterar os passos de um dos dançarinos sem avisar o outro. Quando os passos de um dos dançarinos muda, os do outro têm que mudar também. Meus passos de dança estavam sincronizados com o texto velho. Foi muito bacana, porque a Patricia fez um terceiro texto, como se naquele momento ela que tivesse que trabalhar como ilustradora. Foi um jogo, eu mudei um pouco a imagem, ela alterou o texto. Talvez, se não tivesse tido essa confusão, não teria sido tão interessante essa discussão de que essa relação de imagem e palavra têm de construir essa dança.

 

O que ficava desencontrado na dança?

Por exemplo, o começo do primeiro texto falava que tinha o direito de escolher ser o personagem da história. Eu tinha desenhado uma criança vestida de pirata, e ela mudou uma palavrinha que, de certa maneira, perdia essa ambiguidade de que o pirata é um personagem mau, e que a criança poderia escolher o personagem mau. Deu a entender que o pirata era simplesmente o personagem que ela tinha escolhido. Mas com a palavra que tinha antes, você tinha a possibilidade de entender que a criança tinha o direito de escolher também ser o personagem que teoricamente não é o principal, mas a oposição ao personagem principal. A palavra que ela pôs tirava a ambiguidade da imagem.

 

Pode explicar a diferença entre um livro com ilustração e o livro ilustrado?

Em uma literatura tradicional, mesmo que o livro venha a ser ilustrado, a ilustração e o projeto gráfico entram a posteriori. Tanto é que é assim que se faz com editora. Você manda o seu texto, o editor aprova o seu texto. Depois ele vai pensar em um ilustrador, em um designer para fazer o livro. No livro ilustrado, essas coisas nascem juntas. Um texto de livro ilustrado, para mim, é muito mais próximo de um roteiro de cinema do que de um texto literário em um sentido mais tradicional. Um escritor de livro ilustrado tem que saber que aquilo que ele está escrevendo é um ingrediente do livro, não corresponde ao livro. Muitas vezes, em um livro tradicional, até se confunde o autor do texto e o autor do livro. No livro ilustrado, não. Você tem o autor do texto e muitas vezes são três os autores do livro: o designer, o ilustrador e o escritor. Essa noção de autoria muda. No livro tradicional, você pode até entender que você tem o autor, e o ilustrador é o autor da interpretação. Aí volta aquela ideia da música, de que o Caetano Veloso, quando toca Dorival Caymmi, é autor da interpretação do Dorival. É a mesma coisa a ilustração. Um ilustrador que vai ilustrar a Chapeuzinho Vermelho, ele é o autor da interpretação que ele faz do Perrault ou dos Grimm. Agora, um ilustrador de livro ilustrado não é a interpretação daquele autor, ele é também autor da obra.

 

Antonio Candido defendia que o direito à literatura desagua no direito da justiça social. Para você, de que maneira a literatura pode contribuir para a libertação do ser humano?

Gosto da frase: “A literatura é uma entrega à alteridade, é o que nos permite ser outros”. Mas grande parte das obras da literatura infantil é feita com um destinatário muito evidente: a criança. Isso cria um problema muito grande, que é a obra que tem um destinatário, e aproxima até a literatura do design. É o designer que pensa assim, que só existe o abridor de garrafa porque existe a garrafa para ser aberta, que só existe a cadeira porque alguém senta nela. Então você não pode criar uma cadeira sem saber qual a medida de uma pessoa que vai sentar nela, pelo menos a medida média. A literatura infantil, quando ela é criada muito evidentemente para um público, perde uma coisa essencial da arte, que é o mistério de aonde vai chegar. A coisa mais bonita que a arte tem é que você tem o remetente, mas não o destinatário. Quando o Fernando Pessoa escrevia, imagina se ele tinha ideia de quem leria aquilo. Imagina que ele tinha ideia que uma pessoa no interior do Brasil iria ler aqueles versos que ele estava escrevendo. Mas, certamente, a pessoa que leu os versos e que foi tocada vai ter certeza de que ele escreveu para ela. É isso que é bonito. Essa inversão. A arte tem um sentido inverso, é o destinatário que escolhe o seu remetente. A literatura proporciona, então, você se encontrar com um outro. É isso que é a alteridade na literatura: é você poder experimentar esses laços com um outro que, na verdade, é você e o outro ao mesmo tempo. Esses encontros se dão também nas distâncias, geográficas e histórias. Essa é uma justiça social mais elementar ainda. 

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