Por Antonio Castro
A autora Djaimilia Pereira de Almeida nasceu em Angola, mora desde menina em Portugal e hoje está no Brasil, participando tanto da programação adulta quanto da infantil da Flip. O livro de estreia de Djaimilia, Esse cabelo (LeYa, 2017), trata de um assunto que, se não é universal, é definitivamente lusófono e une os três países pelos quais a autora passou: como o cabelo crespo e cacheado pode servir para detectar modos, pensamentos e até — ou principalmente — preconceitos. Para citar um trecho do próprio livro: “A verdade é que a história do meu cabelo crespo intersecta a história de pelo menos dois países e, panoramicamente, a história indirecta da relação entre vários continentes: uma geopolítica”.
Nesta sexta-feira, outro Cortejo Literário da Flipinha começava, com Djaimilia sentada na mureta da igreja Nossa Senhora das Dores, perto da praia de Paraty, conversando com crianças, jovens e adultos sobre as questões que ela mesma levanta em Esse cabelo. Djaimilia contou que, embora essa tenha sido sua primeira viagem ao Brasil, foi aqui que a sua estreia literária ocorreu: em 2013, ela foi uma das selecionadas de um concurso que premiava escritores de não ficção, promovido pela revista serrote, com o texto Saudades de casa.
De lá pra cá, a autora tem feito o exercício de produzir textos mais longos, que fujam do campo acadêmico — Esse cabelo nasceu desse esforço, além da sensibilidade de Djaimilia frente à questão racial. Publicar livros que tratem de assuntos como este é sempre uma vitória pessoal e coletiva. Por isso ela diz que é importante que editoras grandes publiquem mais autoras e autores negros, e produzam uma cultura em que falar de tais assuntos seja cada vez mais “normal”, para usar a ideia que Lázaro Ramos apresentou no dia anterior.
O que mais chamava atenção naquela tarde — e não passou despercebido para Djaimilia — era o grande número de jovens negras e negros na plateia. “Estou muito feliz de ver tantos cabelos cacheados”, ela disse em determinado momento, gerando sorrisos orgulhosos de meninas que frequentemente se sentem excluídas quando o assunto é cabelo e padrão de beleza.
Zaila, a escritora Djaimilia e Natália na Flipinha
Uma delas, Natália, comentou que só agora, em 2017, é que o cabelo cacheado se tornou algo mais aceito, e isso é perceptível até mesmo pelo número de tutoriais e vídeos sobre o assunto no YouTube. Djaimilia concordou e disse que, inclusive, foi ao assistir a tais vídeos que sua vontade de escrever o livro surgiu, ela queria mesmo “encontrar amizade com essas raparigas” — essas que não vão a festivais de literatura, não estudam literatura na academia, mas são responsáveis por empoderar e transformar as vidas de tantas outras meninas. Na Flipinha, quem diria, ela acabou encontrando algumas delas.
Depois que o Cortejo terminou, fomos conversar com Natália e Zaila, de 16 e 17 anos, respectivamente. Elas estavam ali porque participavam da FlipZona, a parte da Flip dedicada aos jovens e que, este ano, recebeu o apoio do Instituto Asas, que possibilitou a continuidade uma iniciativa que já acontece há anos: todos os paratienses têm a oportunidade de trabalhar como “Jovens Repórteres” cobrindo os eventos da Flip. Natália e Zaila, junto com muitos outros colegas, revezavam as funções audiovisuais da cobertura. Dessa maneira, eles aprendem de tudo: desde como pautar as perguntas e pedir permissão para entrevistar alguém até técnicas de som, luz, câmera etc.
Natália, que participa da FlipZona desde os treze anos, disse que foi por causa da experiência com a festa que ficou com vontade de cursar jornalismo. Zaila, por sua vez, quer se tornar professora. Em comum com Djaimilia, as duas meninas têm o cabelo crespo e, por conta disso, histórias parecidas. Como a autora escreve, seu cabelo é o que a liga diretamente à própria origem. Além disso, as três dividem a vontade de viver em um mundo onde cachos e cores de pele diferentes não sejam causa de preconceito ou ódio, e onde as pessoas estejam juntas, lutando para fazer deste um lugar melhor. Seja escrevendo livros, participando de eventos culturais, fazendo as primeiras entrevistas e ensaiando o futuro profissional ou o que for. Talvez o que a Flipinha mais proporcione com esses encontros seja justamente a abertura de espaços de empatia entre leitores e escritores, onde é possível se reconhecer no outro e assim se tornar mais forte em suas próprias batalhas.
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