Por Mell Brites e Antonio Castro
Para fechar o diário da Flipinha deste ano, convidamos alguns autores da Companhia das Letrinhas para contar um pouco da experiência deles pelas ruas de Paraty. Confira os depoimentos abaixo — e até ano que vem!
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“Vir pra Flip é sempre uma grande expectativa. Por mais que a programação principal seja divulgada com antecedência, a festa cria encontros por toda a cidade e são tantos eventos incríveis que a gente fica até tonto sem saber pra onde ir. A tenda do telão é sempre o lugar que mais me emociona. Não me canso de olhar a massa de gente que se reúne várias vezes ao dia pra ouvir falar das curvas da vida de autores e personagens que desembarcam na cidade todo o mês de julho. Os dias vão passando e lá pela sexta à noite eu acabo chegando num delicioso estado de poesia que me acompanha até a volta pra São Paulo.
Numa Flip tão cheia de mudanças, onde toda a circulação pelos espaços ganhou novos caminhos, encontrei na praça um formato novo de encontro e segui em direção à praia com um cortejo guiado pela tão sensível Noemi Jaffe.
Sentamos de frente pro mar perto de um casarão de portas azuis e paredes impecavelmente brancas e a conversa fluiu gostosa com uma sensibilidade e um cuidado com as palavras que me fez lembrar do nascimento da escola quando o ensino tinha alunos e mestres reunidos assim, ao ar livre, sem o peso das formalidades de uma instituição de ensino.
Nem sei quanto tempo ficamos ali, mas sei que ouvir Noemi falando da sua busca pelo pequeno, pelos detalhes da vida dizendo que é essa sua matéria-prima pra literatura foi bem especial. E foram especiais também os encontros com jovens autores na casa de cultura tão cuidadosamente mediados por Antonio Prata e Bianca Ramoneda.
Essa foi uma Flipinha encolhida sem muitos eventos dirigidos a leitores iniciantes, mas falou lindamente da importância da mitologia e de como ela permite há tantos anos que diferentes povos adaptem suas histórias aproximando o enredo da realidade de cada um. Falou também de mães negras que usaram sua força para garantir estudo aos filhos e de mães judias que despertaram nas gerações seguintes um senso de responsabilidade com as histórias vividas que é precioso e lindo de ver.
Como disse Noemi, literatura é feita de pequenas coisas e foram os anônimos, pessoas comuns e poetas iniciantes que fizeram a minha Flip. Termino lembrando a deliciosa frase dita por Maria Valéria Rezende em sua mesa na igreja da Matriz: ‘Toda memória é invenção toda invenção é memória.’”
Patricia Auerbach, autora de Pequena grande Tina (2013), Histórias de antigamente (2015) e Direitos do pequeno leitor (2017).
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“Árvores com livros como frutas a ser colhidas, abrigando crianças tranquilas e concentradas nas leituras foi uma imagem que alegrou minha chegada a Flip. Sentindo falta dos contadores de histórias, foi muito bom perceber a presença dos pais cumprindo esse papel, sentados ao lado dos filhos, compartilhando dos livros ou simplesmente aguardando com carinho pelo tempo de leitura dos mesmos.
Lima Barreto e as várias mesas e discussões germinadas por sua forte obra, a importância da liberdade de sua expressão e o caráter premonitório de seus textos, atestavam a necessidade do espaço da literatura como registro da experiência humana e fonte de reflexão. ‘Escrever é sempre melhor do que não escrever’, lema de Jack London, sublinhando a satisfação de tomar parte de um evento tão pulsante e necessário.
Ao final de minha mesa, mediada pelo toque sensível de Simone Magno, na qual tive o privilégio de trocar ideias com Heloisa Pires e sua sabedoria nascida de sementes vindas da África, um garoto que acompanhara os pais e ficara atento a toda longa discussão, aproxima-se do palco e me pergunta com ar sério: ‘Posso comprar um livro seu?’. É claro que, imediatamente, ganhou um de presente! Elogio maior do que o de uma criança sincera, não há!”
Heloisa Prieto, autora de O estranho caso da massinha fedorenta (2015), O circo do amanhã (2014) e muitos outros títulos.
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“Na Flip deste ano ouvimos o termo bibliodiversidade como a ponta oposta da palavra exclusão. Uma abordagem eurocêntrica da história nos deixa à parte. Uma abordagem eurocêntrica das histórias e das imagens narrativas é uma intoxicação, e é forjada por Hegel, como diria Enrique Dussel.
Sou um nômade, o livro é o objeto do nômade, seja ele nômade ou não. Chegamos à Flip vindos da cidade de Caral no que hoje é o Peru, 5 mil anos, a segunda cidade mais antiga do mundo, mas não vemos essa história em nosso contexto. Não somos o novo mundo. A diáspora sem precedentes a que os povos da África foram submetidos se soma a isso que temos de mais original.
Mas essas narrativas verbal e visual ainda são tratadas como uma espécie de peculiaridade no Brasil. No Brasil, ainda se chama nosso entorno de ‘exótico’. Na mesa com Mariana Warth e Lázaro Ramos, na Casa Libre, conversamos sobre esse não-lugar em que transformamos nosso entorno e nossa cultura, fazendo da autoestima uma coisa ainda a ser construída, para além do ‘oficial’. A história e as histórias amanheceram na África, no Irã, na Índia, na América do Sul, mas nos chegam europeizadas, cindidas de nosso contexto.”
Roger Mello, autor de Inês (2015), Contradança (2011), Carvoeirinhos (2009) e muitos outros títulos.
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“Para mim a Flip é sempre uma oportunidade de ouvir autores que não conheço e ouvir autores de livros que já li, e tudo isso amplifica nosso conhecimento da literatura, das ideias e das questões que esses artistas nos trazem. E, no caso específico dessa Flip que homenageia o Lima Barreto, nos permite tanto conhecer obras desse autor e dessa biografia quanto amplifica questões sobre a nossas matrizes culturais, indígena, africana e todo esse corpo simbólico que nos pertence e que eu sinto cada vez mais a força que isso tem no nosso pensamento e nas nossas mitologias pessoais. Também os encontros nos restaurantes, nos bares, das pessoas que vão compartilhar esse tempo e esse espaço da Flip, acho tudo isso muito importante.
Mas, ao mesmo tempo, acho que existe pouca ousadia e o que falta é o fato de que, apesar do tema da nossa cultura brasileira estar cada vez mais aprofundada na sua complexidade e do que nós somos, a gente vê os nossos índios vendendo artesanato na rua, os doceiros de Paraty com seus carrinhos e a Copenhagen lotada, e as lojas onde as pessoas vão comprar os cestos indígenas por preços muito mais altos e não compram dos índios nas ruas.
Isso me faz pensar que ainda há um caminho de se colocar mesmo essa voz, essas pessoas que são os brasileiros que estão na Flip, mas não estão sentados na cadeira dos autores entrevistados, e que poderiam ter voz de alguma forma. Então acredito que a voz em movimento ainda é um grande desafio desse evento. Por mais bacana que ele seja, acho que pode ser repensado, mais ousado, ressignificado, dando espaço aos artistas que não são os legitimados, os literatos... Fico com essa vontade de ver um movimento mais integrado entre as camadas culturais e sociais, efetivamente.”
Fernando Vilela é autor de Olemac e Melô (2007) e A dobradura do samurai (2005), entre outros títulos.
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Clique aqui para ler sobre o primeiro, o segundo e o terceiro dias da Flip.