Os irmãos Karamázov e os três porquinhos

29/08/2017

 

Por Ernani Ssó

Afirmei que escrever para crianças é mais difícil do que para adultos, mas deixei de lado talvez o único argumento contra. Não foi esquecimento nem trapaça. Penso que ele merece uma discussão mais detalhada.

O argumento é esta rima rica: profundidade, ambiguidade. Os irmãos Karamázov, do Dostoiévski, é muito mais profundo – e portanto ambíguo – do que a história desses outros irmãos, Os três porquinhos, por exemplo. A complexidade de qualquer um dos Karamázov jamais encontra paralelo na literatura infantil, onde há uma polarização violenta, bons e maus jogando nos respectivos times. Outra coisa: tanto não é moleza ser profundo a um ponto dostoievskiano, que a maioria absoluta dos autores nem passa perto. Há que notar ainda que os leitores adultos, também na sua maioria absoluta, não têm miolos nem paciência para toda essa profundidade.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Parece um argumento tremendo, não parece? Mas é mais cara feia do que maldade. Apesar da polarização, a literatura infantil é profunda, é ambígua, basta ver a quantidade de interpretações que suscita. Vejamos um exemplo bem corriqueiro, João e Maria, para ficarmos entre irmãos ainda. Segundo Rubem Fonseca, ou seu personagem no conto Intestino grosso, no volume Feliz ano novo, trata-se de uma história “indecente, desonesta, vergonhosa, obscena, despudorada, suja e sórdida”. Segundo Bruno Bettelheim, que tratou de dezenas de crianças, é uma obra-prima: não apenas expõe as “ansiedades disformes” das crianças, como dá apoio, esperança e sugere formas de vencê-las.

E agora, José? De quem é o delírio interpretativo? Como não dá para transcrever capítulos inteiros de A psicanálise dos contos de fadas, nem fazer resumos que não sejam traiçoeiros, me deixem pinçar algumas citações do Bettelheim. O conto de fadas, diz, “oferece significado em tantos níveis diferentes e enriquece a existência da criança de tantos modos que nenhum livro pode fazer justiça à multidão e à diversidade de contribuições que esses contos dão à vida da criança. (...) Como sucede com toda grande arte, o significado mais profundo do conto de fadas será diferente para cada pessoa, e diferente para a mesma pessoa em vários momentos de sua vida”. Só para variar, o poeta alemão Schiller: “Há maior significado profundo nos contos de fadas que me contaram na infância do que na verdade que a vida ensina”.

Para a realidade adulta, a trama de um conto de fadas é absurda e muitas vezes, como quer Fonseca, criminosa. Mas para a criança? Segundo Chesterton, os contos de fadas são “coisas inteiramente razoáveis” – por sinal, como Borges, ele achava os contos dos Irmãos Grimm mais importantes que Fausto do Goethe. Como demonstra Bettelheim, Chesterton fala deles “enquanto espelhos de experiências internas, e não da realidade; e é assim que a criança os entende”.

A criança, ao contrário do personagem do Fonseca, pode entender qualquer conto de fadas sem precisar ler Bettelheim, ou Diana Lichtenstein Corso e Mário Corso, autores do maravilhoso Fadas no divã. Mais: qualquer criança, com os mais variados níveis de inteligência, tira algum proveito desses contos, mas quantos adultos tiram alguma coisa de um Dostoiévski? No terreno da comunicação pura e simples, enquanto a razão continuar além do alcance da maioria da humanidade, a literatura infantil é muito mais eficaz.

A famosa polarização da literatura infantil não se deve à incompetência dos autores, mas à adequação ao público. Se me permitem o trocadilho, a montanha-russa emocional de um Dimítri Karamazov só confundiria uma criança. A criança experimenta o mundo, diz Bettelheim, “ou como inteiramente prazeroso ou como um inferno sem alívio”. Em confronto com suas emoções contraditórias, a criança faz como Deus: separa a luz das trevas para ordenar o caos.

Parece que chegamos ao ponto: é difícil comparar literaturas adulta e infantil. Como têm exigências diferentes, apresentam dificuldades específicas. A literatura infantil não precisa do filtro da razão para ser entendida pela criança. A literatura adulta se agarra à razão, mesmo quando trata de nossos piores pesadelos – explica, analisa, tudo numa linguagem altamente abstrata.

Talvez apenas autores fantásticos, um Kafka, um Cortázar, busquem nos levar a um território de pura neblina. Mas nós, como bem amestrados adultos, não tratamos de entender com o sangue e esperneamos com dezenas de teses sobre seus contos, em que a História, a Sociologia, a Economia caçam desesperadas a mensagem que o vestibulando pode marcar com um xis. Não digo que não se deva fazer isso. Deve-se lutar com todas as armas, sempre, mas muitas vezes corremos o risco de perder o que acontece no palco por estar de olho nos bastidores.

Deu para notar que me agarrei aos contos de fadas – mais um sinal das dificuldades da literatura infantil, me parece. As obras-primas da adulta têm dono: Sófocles, Rabelais, Cervantes, Shakespeare, Stendhal e tantos outros. Mas e os da infantil? Parece que o melhor produzido até hoje continua sendo os contos de fadas, que são anônimos. Para chegarem à forma definitiva, dependeram de centenas de anos e milhares de pessoas. Quer dizer, para adulto, basta um marmanjo com algum tutano e estamos conversados. Mais: os autores dos contos nem sonhavam que um dia Freud fumaria seu charuto. Outro gol da intuição sobre a razão. Mais ainda: a quantidade. A literatura adulta tem muito mais bons livros do que a infantil. Será mera coincidência?

Posso estar redondamente enganado, mas penso que há mais pedras no caminho da literatura infantil, ou melhor, pedras mais tropeçáveis. Isso, claro, numa conta geral, o que não tem muito a ver com a realidade. Na realidade há um autor e uma história, frente a frente. Adulta ou infantil, tudo dependerá do talento e da sorte. Uns trinta por cento de talento, uns setenta de sorte, digamos com otimismo.

***

Ernani Ssó é autor de Contos de gigantes, Amigos da onça e As lendas urbanas da morte, entre outros. Nasceu em Bom Jesus, RS, num ano de neve. Em 1974 entrou para o jornalismo, porque queria ser escritor. Saiu em 75, pelo mesmo motivo. Tem livros para adultos, mas prefere os infantis, porque são mais difíceis de escrever. Chama-se Ernani por causa de um galã de radionovela e Ssó, esse erro de revisão, de maluco, ou para não se sentir muito sozinho, como disse Mário Quintana. 

 

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