“Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais” (Clarice Lispector)
Ilustração Marcelo Tolentino
A infância, caracterizada como “velhos séculos de escuríssima doçura” ou “dura idade como talo não quebrado de uma begônia”, foi tema presente na obra de Clarice Lispector (1920-1977). Em sua vasta produção literária, incluindo textos dirigidos às crianças, a autora escreveu “sobre a própria infância, sobre a infância de seus filhos, sobre a infância como um espaço regido por forças opostas à razão, onde é possível reconectar-se com o próprio “núcleo” (amorfo, impalpável, inominável), sem obedecer às amarras racionalizadoras”.
Quem adentrou recentemente o universo das infâncias claricianas foi Mell Brites, editora da Companhia das Letrinhas, mestre em literatura brasileira pela FFLCH-USP, com a dissertação “As infâncias de Clarice Lispector – Estudo da construção literária da infância em contos adultos e infantis”.
A pesquisadora analisa a imagem que a escritora delineia dessa fase da vida a partir dos contos “Os desastres de Sofia”, “Felicidade clandestina”, “Restos do Carnaval” e “Cem anos de perdão”, que rememoram episódios da sua infância, e dos livros infantis O mistério do coelho pensante, A mulher que matou os peixes, A vida íntima de Laura, Quase de verdade e Como nasceram as estrelas, em que, à exceção do último, dialoga num tom de cumplicidade, geralmente confessional, com a criança leitora.
No dia 19/10, ela compartilhará sua pesquisa no Sesc CPF. Mas é possível descobrir no bate-papo a seguir um pouco mais sobre as infâncias cunhadas por uma de nossas maiores escritoras, que, assim como a menina de “Restos do Carnaval”, lançou luz para diversas figuras invisíveis em suas narrativas, abarcou em linguagem as contradições do viver e também teceu em palavras uma certa “infância clandestina”.
Por que delinear a(s) infância(s) na obra de Clarice Lispector? Qual o disparador de sua pesquisa? E ainda em linhas gerais, como a temática da infância surge na obra da autora? Qual a conexão entre arte e vida?
O tema da infância e a literatura da Clarice são duas das minhas paixões, e foi essa conexão de interesses que com certeza serviu como disparador. A obra da Clarice é vasta, e não são poucas as vezes em que ela mergulha nessa fase da vida, seja em crônicas, contos, romances, livros infantis. Escreve sobre a própria infância, sobre a infância de seus filhos, sobre a infância como um espaço regido por forças opostas à razão, onde é possível reconectar-se com o próprio “núcleo” (amorfo, impalpável, inominável), sem obedecer às amarras racionalizadoras.
Quais os paralelos possíveis entre as infâncias construídas por Lispector e autores como Manuel Bandeira e Graciliano Ramos?
Seria preciso uma pesquisa de fôlego para responder a essa pergunta, mas poderia comentar apenas que de alguma forma todos eles, ao falar sobre a infância, estão muitas vezes conectados ao tempo em que eram meninos. Falar sobre a infância, assim, é também uma forma de falar sobre o próprio passado.
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Quais vestígios da própria infância Clarice Lispector deixa em “Felicidade clandestina”, “Cem anos de perdão” e “Restos de Carnaval”, contos que compõem o que você denomina como Trilogia do Recife?
Nesses três contos acompanhamos de perto situações vividas por uma menina em Recife que se estabelecem como ritos da passagem da infância para a pré-adolescência. Estão retratados a situação de pobreza, a doença da mãe, o interesse e a curiosidade pela literatura, o chamado à fantasia.
“Quando eu me comunico com a criança, é fácil porque eu sou muito maternal, quando eu comunico com o adulto eu estou comunicando com o mais secreto de mim mesma, aí é difícil.” Poderia falar um pouco sobre essa afirmação da autora?
Nos livros infantis A mulher que matou os peixes, A vida íntima de Laura e O mistério do coelho pensante, as narradoras (mulheres, mães e escritoras, uma delas até denomina-se "Clarice") conversam com o leitor criança de modo a oferecer a ele um espaço aconchegante de troca. Nesses livros, o tom maternal mencionado pela autora é evidente.
Nas obras dirigidas às crianças, apesar de buscar um tom de “aconchegante”, Lispector não hesitava em abordar temas mais árduos, como “a morte, o preconceito e as contradições inerentes à vida”. Contraditório?
A contradição não constitui um problema para Clarice Lispector (que fazia muito uso, por exemplo, dos oximoros em sua escrita). Pelo contrário: ela é inerente ao ser humano. Nos livros para crianças, não se nega o sofrimento inevitável de todos que estão vivos, mas procura-se aplacá-lo com a criação de um espaço aconchegante de diálogo, em que as crianças são atendidas em suas necessidades afetivas e emocionais. Tudo isso por meio da voz dessa narradora maternal que conversa com o seu interlocutor ao longo das narrativas.
VÍDEO: Livros infantis para adultos
Ao tratar de personagens invisíveis como a menina de Restos de Carnaval, você fala da ideia de uma infância clandestina na obra de Lispector. Parece que paira uma opressão sobre a infância. Poderia explicar melhor?
Na verdade, falo de uma infância que, nos contos adultos, parece não ter experimentado essa troca que menciono acima. As angústias e dores das garotas são vividas de forma solitária (talvez elaboradas apenas tempos depois, no próprio processo de escrita). Clarice, quando em contato com as crianças em seus livros infantis, parece ir no caminho contrário dessa "clandestinidade" retratada nos contos para o público adulto, como "Restos do Carnaval", e oferecer ao leitor um caminho para que se drene seu sofrimento.
A carência material ativa a potência imaginativa em alguns contos de Lispector? Pode exemplificar?
Não poderia afirmar que há uma relação de causa e efeito. O que se pode ver é que às vezes a fantasia é um alento diante das dificuldades da "vida real".
E nos contos dirigidos às crianças, como é que a autora oferece aos leitores a possibilidade de solucionar problemas a partir da fantasia?
Em O mistério do coelho pensante, por exemplo, o leitor é convidado a desvendar o mistério a respeito de como o coelho protagonista fugia de sua gaiola, se as grades estavam sempre trancadas. A resposta não está dada, e a pergunta fica como um incentivo à imaginação. Eu arriscaria dizer que entre o coelho clariciano e o de Alice no país das maravilhas há algumas semelhanças...
Por último, como introduzir as crianças no universo de Lispector. Como começar?
Não conseguiria imaginar outra forma que não a leitura dos próprios livros infantis. A galinha Laura, de A vida íntima de Laura, é muito simpática.
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