“Literatura sem risco não é boa literatura”

26/10/2017

 

Pauta urgente ultimamente no mundo dos livros – e também no cenário cultural e educacional do país –, a censura e os tabus na literatura infantil foram o foco do debate que aconteceu no último sábado (21/10), no auditório da Livraria Martins Fontes, em São Paulo. Com a plateia cheia, ávida em discutir questões tão polêmicas, o debate trouxe para a roda escritores, ilustradores, educadores e especialistas, que falaram sobre o temor em transformar a literatura em algo raso, as diferenças entre cuidar e censurar, a criança tratada como um ser incapaz de lidar com sentimentos, entre outras questões significativas.

 

 

A escritora Patricia Auerbach, autora de Direitos do pequeno leitor, abriu o encontro do Conversas sobre literatura infantil – 25 anos da Companhia das Letrinhas, que também teve entre os convidados o ilustrador Odilon Moraes, parceiro de Patricia no livro que fala da importância de fabular na infância, o escritor Ricardo Azevedo e as especialistas em educação e literatura Mara Dias, assessora de língua portuguesa do Colégio Rainha da Paz, Ana Carolina Carvalho, formadora de professores no Instituto Avisa Lá, e Sandra Medrano, pesquisadora da Comunidade Educativa CEDAC. Entre as prosas, teve narração de histórias feita por Penélope Martins.

Quando existe o risco de evitar a abordagem de temas difíceis, sensíveis ou polêmicos nos livros para a infância, corremos o perigo de “transformar literatura em Facebook [esse espaço virtual onde parece existir a eterna felicidade]”, logo pontuou Patricia. “Literatura sem risco não é boa literatura”, completou a escritora, também autora de obras como Histórias de antigamente e Pequena grande Tina.

Para abordar tais desafios, ela ainda usou a imagem da literatura como árvore, em contraponto ao brinquedão de plástico das festas infantis. "O brinquedão de plástico é mais seguro. Ninguém vai se machucar ali. Todo mundo sabe por onde sobe, por onde desce, só falta ter a seta, não tem risco. Ninguém se machuca. Não tem textura, não tem cheiro, não tem desafio", disse. "A árvore, a gente começa do mesmo lugar, mas onde vamos parar cada um é que sabe. Que caminho vou escolher, em que galho vou me apoiar, cada um é que vai definir esse percurso."

Em Direitos do pequeno leitor, que acaba de ser lançado, ela parte da obra Como um romance, de Daniel Pennac, para fazer um tratado poético sobre leitura para as crianças. Conta que três direitos citados por Pennac acabaram não entrando nesse livro para grandes pequenos leitores: os direitos a experimentar sentimentos, a ter desafios e a conhecer o mundo.

 

 

Sobre o primeiro direito, explica a necessidade de permitir que as crianças entrem em contato com sentimentos difíceis, dos quais são por vezes protegidas. “Não podemos cair numa cilada de achar que, porque é literatura infantil, porque essas pessoas estão no começo do percurso da vida, elas não podem se deparar com coisas que são de fato tristes.” É como se na vida a criança não precisasse ser preparada para frustrações.

Já o direito de ter desafios pode ser comparado ao de encarar a escalada da árvore da literatura, nem sempre fácil. “A alegria vem de chegar lá em cima. De descobrir o caminho, de entender o percurso, de ousar, de se arriscar, de quebrar a cara e de se reerguer.” Por fim, fala sobre o direito de conhecer o mundo, do jeito que ele é. Por que não falar sobre preconceito com a criança, se o mundo está cheio deles?

Ilustrador do livro, Odilon Moraes ainda falou sobre a diferença entre censura e cuidado. “Quando você fala para uma criança: ‘não pegue isso’, você está censurando ou você está cuidando dela para ela não pegar aquilo que talvez fosse machucar?”, ele exemplifica. Ainda lembra que, na literatura, essa relação pode se inverter. “Se tem uma coisa que você não quer que a criança faça, é até bom que ela faça por meio da leitura.” A criança entende esse sentimento de uma maneira fictícia e se aproxima daquilo que é importante para sua vida. Deve-se diferenciar a realidade da arte. “A literatura não é um tratado sobre o que se deve fazer. É ficção, tem personagem. Não é o autor que está colocando aquilo tudo.”

Já Ricardo Azevedo falou da necessidade de sairmos da bolha da escola particular ao pensarmos a infância. Lembrou a realidade da maior parte das crianças brasileiras, que não tem acesso aos livros e poucas condições para ler. Questionando os tabus listados no encontro, tais como gênero, morte, sexo e norma culta, ele destacou outros temas pouco abordados ainda hoje: pobreza, racismo, consumismo, individualismo, liberdade e democracia. E lembrou o poema O desomem, de Murilo Mendes (1901-1975), escrito no contexto da Segunda Guerra Mundial, mas ainda válido: “O desomem desova a desarte a despoesia a desmúsica a despedida do homem / O desomem desova a fome a peste a guerra a morte.”

 

 

As especialistas em educação expuseram uma situação em que as leituras não chegam nas crianças. O acesso aos livros, que é feito a partir de programas de governo, não acontece de maneira efetiva pelo despreparo de alguns profissionais e pela falta de estrutura encontrada nas escolas.

Assessora de língua portuguesa do Colégio Rainha da Paz, Mara Dias ainda acrescentou ao debate a questão dos livros de entretenimento, diferenciando-os daqueles que deslocam dos leitores. Lembra uma reflexão de Umberto Eco sobre o tema: “A humanidade produziu e produz literatura não para fins práticos, mas antes por amor de si mesma - e que se leem por deleite, elevação espiritual, ampliação dos próprios conhecimentos, talvez por puro passatempo, sem que ninguém nos obrigue ou proíba a fazê-lo".

Lembra, então, de um tipo de censura muito comum nas escolas - aquela que proíbe os chamados livros de entretenimento, mas que também formam leitores. Como exemplo, cita a febre que foi a série da Netflix 13 Reasons Why, acompanhada do livro Os 13 porquês (editora Ática), lido largamente na época. “Tomou conta de uma tal maneira que falamos, na equipe: ‘Vamos ler o livro? Isso porque está todo mundo lendo e querendo conversar, e eles não têm espaço para conversar sobre isso'", contou. "Sabíamos que estávamos lendo desse ponto de vista, que não ia ser uma leitura para deslocar ninguém, mas que proporia conversas importantes."

Já a participação da pedagoga Sandra Medrano, coordenadora pedagógica de projetos de formação de professores pela Comunidade Educativa CEDAC, alardeou um ponto fundamental e temeroso. Ela apresentou a terceira e última versão da Base Nacional Comum Curricular, proposta pelo Ministério da Educação e que aguarda ser aprovada. O documento tem um eixo voltado ao que chamam de “educação literária”, tratando da escolha dos textos dirigidos aos primeiros anos do Ensino Fundamental e recomenda a não exposição das crianças a “mensagens impróprias ao seu entendimento”. Mas o que é possível entender como impróprio?

No documento, há ainda uma tabela que define um máximo de palavras que o texto voltado para cada ano escolar deve ter. Para o primeiro ano, por exemplo, deverão ser lidos textos de até 200 palavras, com "vocabulário previsível, orações e períodos curtos e recursos expressivos predominantemente denotativos". Expressões conotativas só deverão ser abordadas nas escolas a partir do quinto ano, quando, segundo o documento, os alunos poderão ler textos de até 600 palavras.

Ana Carolina Carvalho, formadora de professores do Instituto Avisa Lá, falou dos direitos interditados na leitura nas escolas e ilustrou com exemplos recentes do que acontece nas instituições educacionais – para o Blog da Letrinhas, ela concedeu uma entrevista em que fala da formação dos formadores. E citou Antonio Candido, intelectual brasileiro falecido em maio deste ano que foi lembrado mais de uma vez durante o encontro. Suas ideias revigoraram ainda mais a conversa.

“O conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica, portanto; mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”, escreveu Candido, na obra A literatura e a formação do homem. Ao citar a fala desse grande estudioso da literatura brasileira, Ana Carolina reforça a importância dos grandes dilemas existenciais nas histórias – para adultos, para crianças.

 

 

 

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