"Sem literatura infantil não haveria adultos leitores"

23/11/2017
Marina Colasanti dispensa apresentações. De certo modo, sua biografia e produção falam por si. Filha de italianos nascida na África (em Asmara, capital da Eritréia), enfrentou de perto uma guerra mundial ainda criança. Mudou-se diversas vezes –entre África e Itália- e acabou emigrando com a família para o Brasil por intermédio da tia, cantora lírica que aqui morava. Chegou com apenas 10 anos, em 1948, pouco depois de terminado um dos conflitos mais violentos do século XX.   [caption id="attachment_6046" align="aligncenter" width="600"] "Eu olho o pequeno porque sei da minha pequena dimensão e porque o pequeno contém o grande", diz Marina, 60 livros e 80 anos[/caption]   Mesmo em um contexto tão difícil, a literatura sempre esteve por perto em sua infância: “nunca vivi em uma casa sem livros”. Marina atribui a isso – “não me formei leitora, sempre fui leitora” - sua visão de mundo, parte de suas escolhas pessoais e profissionais, a ponto de ter escrito um belíssimo texto (publicado no livro Como se fizesse um cavalo*) em que reflete sobre o que seria dela sem os livros que leu. Para ela, a narrativa é uma necessidade humana; e a literatura, formativa. Mas não deve ser usada para ensinamentos morais. Literatura infantil que mereça esse nome tem de ter qualidades estéticas que o justifiquem: “só pode ser considerada literatura quando, não sendo ‘infantilizada’, toca leitores de qualquer idade”. Talvez isso ajude a entender uma obra tão vasta e premiada, com alta qualidade artística e que costura tão bem contos, romances, poesia, ensaios - para adultos, para crianças, para jovens. Artista plástica, jornalista e escritora, a “multimídia” (nas palavras do amigo Ziraldo) Marina foi contemplada com nada menos do que sete prêmios Jabuti, um dos principais de literatura no Brasil, sendo o mais recente deles, em 2014, com um livro infantil –Breve história de um pequeno amor*, que, além de vencer nessa categoria, foi também considerado o melhor livro de ficção do ano. Nesta entrevista concedida por e-mail, que marca o lançamento de seu 60º livro – Tudo tem princípio e fim, de poemas para jovens que sai pela Editora Escarlate, do Grupo Brinque-Book, Marina responde a tudo sem meias palavras: de educação à formação leitora; de mercado editorial a políticas públicas para a leitura;  do olhar sutil e delicado, que vê o grande que há nas pequenas coisas, aos adolescentes, que, diz ela, não apenas leem poesia como “a fazem”.   Brinque-Book: Como a senhora “formou-se” leitora? Que memórias - afetivas até - têm de sua infância leitora? Marina Colasanti: Não me formei leitora, sempre fui leitora, sempre tive livros ao meu alcance, sempre vi pessoas lendo ao meu redor. Quando ainda não sabia ler, liam para mim. A leitura foi mais divertida, interessante, emocionante, enriquecedora, surpreendente do que qualquer brincadeira.   BB: De que maneira os adultos de sua convivência, incluindo família e escola, ajudaram ou foram importantes em sua infância leitora? Marina: Nunca, em tantos deslocamentos e em momentos difíceis, vivi em uma casa sem livros. E transmiti a minhas filhas o conceito de que os únicos elementos indispensáveis numa casa são o colchão, o fogão e uma estante. Minha escolarização foi diferente (considere que não sou brasileira e até os 10 anos vivi na Itália durante a Segunda Guerra) e não incluía leitura.   [caption id="attachment_6048" align="aligncenter" width="309"] ("Tudo tem princípio e fim"/ Texto e ilustrações: Marina Colasanti)[/caption]   BB: A quais grupos sociais - escola, família, comunidade - cabe a importante (e prazerosa) tarefa de “formar” leitores, de apresentar literatura às crianças? Marina: Depende do país. Se você se refere ao Brasil, cabe quase exclusivamente à escola, uma vez que, para a maioria, o dinheiro é curto; as livrarias são poucas; as bibliotecas são raras e  frequentemente mal equipadas; a família pode ser analfabeta ou não leitora...   BB: E como a senhora avalia esse fato, de que tem sido da escola o papel principal de introduzir a literatura no universo das crianças e vice-versa? Marina: Não é o ideal, porque fica faltando um elemento que sabemos ser muito importante: a vivência familiar. E o resultado é precário, porque precária é a qualidade da escola no País. Professores não leitores não fazem crianças leitoras.   BB: Que importância a senhora atribui à sua experiência leitora na infância? De que forma reverbera e reverberou em sua vida? Marina: De toda forma e maneira. Influenciou minha maneira de pensar o mundo, minhas escolhas profissionais e até a escolha do meu marido: sou casada com Affonso Romano de Sant'Anna, poeta e professor de literatura.  

“O Brasil não lê porque não acha importante”.

  BB: Em seu livro Como se fizesse um cavalo, a senhora conta, muito sensivelmente, de que formas os livros contribuíram para a sua formação. A senhora disse, certa vez, que a literatura e a narrativa são necessidades humanas formativas da alma, como o alimentar-se é para o corpo. Quais são os desafios para que essa experiência tão singular e fundamental seja, de fato, fruída por mais crianças e mais pessoas em um país como o Brasil, em que 44% das pessoas declaram não ter o hábito de ler e 30% da população jamais comprou sequer um único livro? Marina: Não é difícil. Como se faz, todo mundo sabe. Há uma imensa bibliografia, há decálogos, há experiências comprovadas. Outros países fizeram a escolha da leitura e tiveram êxito; exemplos não faltam. O que falta é vontade política, é reconhecer a leitura como uma alavanca primeira de desenvolvimento e civilização. O Brasil não lê porque não acha importante.   BB: O que pode significar essa lacuna, essa falta de experiência literária, para um país, para uma geração, para a infância? Marina: O que significa, estamos vendo! O quadro do Brasil é muito eloquente.   BB: De que formação estamos falando quando falamos que literatura é formativa? Está claro que não se trata de “formação moral”, visto que a senhora já declarou muitas vezes -e inclusive por intermédio de sua obra- que não acredita que literatura infantil e juvenil têm a finalidade de “ensinar” lições morais às crianças. Poderia falar um pouco, por favor, sobre isso?   [caption id="attachment_6049" align="aligncenter" width="309"] ("Tudo tem princípio e fim" / Texto e ilustrações: Marina Colasanti)[/caption]   Marina: A literatura é formativa porque transmite o sentimento da pluralidade, porque nos dá a conhecer o outro, porque analisa os sentimentos humanos, porque nos oferece diversas visões temporais, porque está entretecida de filosofia, porque é a arte da linguagem. Os livros "finalistas" [aqueles que têm uma “finalidade” que não apenas a fruição artística] são pobres porque não exigem a participação do leitor: por sua própria natureza, são pratos feitos que apresentam, de maneira necessariamente óbvia, uma única idéia. E são questionáveis porque os princípios morais que defendem nem sempre são universais, e, frequentemente, são passageiros.  

“Professores não leitores não fazem crianças leitoras.”

  BB: Yolanda Reyes, escritora colombiana, especialista em literatura e fundadora do Instituto Espantapájaros, de formação de leitores, defende que tornar-se leitor, na infância, está ligado às possibilidades de brincar, simbolizar, elaborar histórias livremente, organizar emoções e pensamentos nesse brincar e por intermédio da literatura. As crianças brincam cada vez menos, e a própria leitura, em geral, adentra a vida das crianças como uma obrigação. Em que medida isso pode prejudicar a experiência da criança com a arte, com a literatura como arte? Marina: Yolanda, minha amiga querida, sabe tudo sobre leitura e está certíssima. Mas o Brasil é muito diferenciado. Não tenho certeza, por exemplo, de que as crianças fora dos grandes centros estejam brincando menos.  Nem que a leitura entre na vida delas como obrigação, quando entra. Isso é coisa de centros maiores. Quanto à arte, vale dizer que a experiência das crianças brasileiras com a arte é muito limitada, o único contato frequente é com arte popular. Os museus são pouquíssimos e, mesmo nas cidades que os têm, as escolas não levam as crianças para visitá-los. A esmagadora maioria dos professores não tem nenhum conhecimento de arte erudita, assim como não sabe distinguir um livro de uma obra literária.   BB: Qual é a importância e a contribuição dos contos de fadas e dos contos maravilhosos para o universo simbólico e intelectual das crianças, jovens e adultos? Marina: Há uma extensa bibliografia sobre isso. Freud, Jung e seus seguidores se debruçaram sobre os contos de fadas mostrando seu poder estruturante e a força do diálogo que mantêm com o inconsciente. Eu própria já escrevi a respeito. Tentando resumir: as crianças, que ainda não aprenderam as fórmulas adultas de comunicação, vivem ainda muito próximas do imaginário, pensam simbolicamente, brincar é fundir realidade e imaginação, é tomar uma coisa por outra, é pura metáfora; para elas é espontâneo aceitar os contos e introjetar seu conteúdo, sem fazer análises e sem trazê-los à consciência. Os adultos fazem outro tipo de leitura. A riqueza dos contos maravilhosos é justamente a multiplicidade de significados, que os tornam apropriados para qualquer idade e em qualquer latitude.   BB: A senhora é artista plástica, ilustra seus livros, foi gravurista. Que importância atribui às artes plásticas e gráficas nos livros infantis e juvenis? Como avalia a produção para crianças e jovens nesse sentido? Marina: Temos hoje, no mercado, uma predominância da imagem sobre o texto. Livros álbum maravilhosos visualmente, mas por vezes de conteúdo questionável. A parte gráfica é importantíssima, quando está em consonância com o texto.  

“As crianças vivem ainda muito próximas do imaginário, pensam simbolicamente, pura metáfora”.

  BB: Como a senhora analisa o mercado editorial brasileiro no geral e, mais especificamente, o mercado de literatura para crianças? Em que avançamos e em que falta avançar ou mesmo em que pontos regredimos? Marina: O infantil representa a maior fatia do bolo editorial. Mas a quantidade de porcarias que recheiam essa fatia é espantosa. Ainda assim, podemos dizer que avançamos muito. Temos autores e ilustradores respeitados no mundo todo. E melhoramos a qualidade física dos nossos livros. Quando comecei, os livros nem lombada tinham, era canoa grampeada, capa mole, papel de má qualidade e a maioria das editoras não trabalhava com cores, só preto e branco e uma única cor primária. Hoje já temos livros muito bem produzidos. Mas, como um todo, ainda estamos longe dos grandes países leitores.   BB: Como enfrentar essa questão do acesso à literatura, mesmo por quem pode comprar, uma vez que a maioria das ofertas para crianças é composta por livros-brinquedo, de entretenimento, licenciados? Como ampliar a participação da literatura infantil e juvenil propriamente, do livro literário? Marina: Uma boa educação ajudaria bastante. Mas não nos enganemos, o mesmo fenômeno ocorre na área adulta. Vivemos o momento do entretenimento, todos de mãos para o alto agitando os bracinhos nos shows. As pessoas querem se distrair, se divertir, have fun. E o entretenimento dá dinheiro, o que faz com que o mercado aposte nele.   BB: Literatura tem idade ou “adjetivo”? Existe literatura para crianças ou literatura é literatura? Marina: Existe literatura para crianças, mas só pode ser considerada literatura quando, não sendo "infantilizada", toca leitores de qualquer idade.  

“Os únicos elementos indispensáveis numa casa são o colchão, o fogão e uma estante”.

  BB: No “mercado”, a literatura infantil ainda é considerada “menos importante” que a “literatura”. Qual é o papel que a literatura infantil ocupa ou deveria ocupar?  Marina: O mercado é uma entidade controladora importante. Mas não é a única. A literatura infantil e juvenil é estudada com absoluta seriedade nas universidades, é objeto de teses e de estudos críticos. Muitas instituições se ocupam dela. O IBBY [International Board on Books for Young People, uma das principais organizações internacionais sobre o tema, que concede o prêmio Hans Christian Andersen de literatura infantil], por exemplo, é um organismo internacional muitíssimo respeitado, representado no Brasil pela FNLIJ [Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil]. Quanto à importância, basta dizer que, sem ela, dificilmente haveria leitores adultos.   BB: Há uma estética literária que a senhora busca quando escreve para crianças e jovens? Marina: Sou uma pessoa ligada à estética. Minha proposta nunca foi sujeito/verbo/predicado. Nunca desejei apenas contar uma história. Sempre pretendi ser uma escritora de linguagem. Busco o frescor da palavra, a sua palpitação. E isso vale para qualquer idade, porque qualquer idade se beneficia com uma linguagem mais rica.   BB: A senhora contou em muitas oportunidades que, quando criança, lia títulos que não eram considerados “para crianças”. Comentou também sobre a riqueza que uma leitura ampla ofereceu à senhora e a outros escritores e escritoras. Como apresentar leituras variadas às crianças, para além das qualificações “infantil” ou “juvenil”? Marina: Sempre, quando tiveram acesso à escolha, crianças e jovens leram o que os adultos achavam "não apropriado" para eles. Isso só lhes fez bem. Mas, para isso, é preciso que tenham variedade de livros ao alcance do olhar e do desejo, que frequentem bibliotecas e livrarias, que os bibliotecários da sua escola sejam suficientemente inteligentes para não regular as escolhas.   BB: Como fica claro para a senhora se a obra que vai escrever ou está escrevendo tem como interlocutor crianças, jovens, adultos? A senhora se coloca no lugar desse leitor quando escreve? Marina: De forma alguma! Seria impossível. Fui uma criança do século XX, europeia e africana, vivi uma guerra tremenda, tenho 80 anos. E escrevo para crianças do século XXI, brasileiras, moderníssimas. Qualquer tentativa de entrar na pele delas seria uma falsificação e um fracasso. Escrevo como sou, com a minha idade e com a parca compreensão de mundo que consegui.  

"Existe literatura para crianças, mas só pode ser considerada literatura quando, não sendo 'infantilizada', toca leitores de qualquer idade.

  BB: Ziraldo disse, em uma entrevista que fez com a senhora, que a senhora é “multimídia”, provavelmente referindo-se ao fato de que é artista plástica, jornalista, já atuou como publicitária e na TV, também é ensaísta, cronista e, na literatura, é ficcionista para crianças, jovens, adultos, escreve poesia, prosa… Em quais dessas áreas sente-se mais à vontade? Marina: Se eu não me sentisse à vontade em alguma delas, pulava fora.   BB: A senhora lançou recentemente o livro de poemas para jovens leitores Tudo tem princípio e fim (pela Editora Escarlate, do Grupo Brinque-Book). É possível identificar nessa obra uma coerência temática que perpassa os poemas, mesmo sendo eles independentes, assim como a senhora faz em muitos dos seus livros de contos, em que um tema é explorado de muitas formas a partir dos pequenos textos. Era essa a intenção? Marina: Os sentidos se complementam porque, no processo de criação, um poema puxa o outro, a sensibilidade entra em uma determinada frequência. Minha intenção é, sempre, ser coerente comigo mesma. Isso, possivelmente, se transfere à escrita. Ao contrário do que possa parecer pela diversidade de gêneros com que trabalho, acho a minha obra muito homogênea. Não apenas pela temática, mas pela forma de abordá-la.   [caption id="attachment_6051" align="aligncenter" width="415"] ("Conte uma história, Estela" / Texto e ilustrações: Marie-Louise Gay)[/caption]   BB: Em muitas de suas obras -e em muitas entrevistas que a senhora concedeu sobre elas- parece claro o seu interesse pelo cotidiano, pelas “pequenas” histórias, pelos detalhes repletos de afeto e subjetividade. Tudo tem princípio e fim parece repleto desse olhar apurado para o que é pequeno, mas enorme... Marina: Eu olho o pequeno porque sei da minha pequena dimensão e porque o pequeno contém o grande. Olho a beleza do detalhe, sempre acessível, e nela repouso o meu olhar.  

“Qualquer tema é difícil quando não é bobo, e as crianças têm enorme curiosidade pela vida.”

  BB: Este livro fala de questões delicadas, como a passagem do tempo, a morte, o crescimento, o processo… Como é tratar dessas questões para esse público? Marina: Sem ter que vestir colete salva-vidas, trato qualquer tema que me pareça importante. E o mesmo vale para qualquer idade.  Não é o tema que faz a diferença, é a maneira de lidar com ele.   BB: A literatura para crianças e jovens tem tratado com cada vez mais profundidade e delicadeza de temas ditos “difíceis”. Como a senhora avalia isso? Marina: Qualquer tema é difícil quando não é bobo. Mas a dificuldade à qual você se refere é fabricada pelos adultos. A morte, a doença, a diferença e a infelicidade fazem parte da vida. E as crianças têm enorme curiosidade pela vida.   BB: Em Minha guerra alheia, a senhora retoma memórias de infância e um ponto de vista muito singular - o da criança - sobre um tema muito árido. Estamos vivendo um momento no mundo repleto de conflitos, crise de refugiados. Em que o olhar das crianças - atento, observador - pode contribuir para elaborarmos coletivamente esses dramas? Marina: O mundo sempre foi repleto de conflitos, a vida nunca foi fácil, e as crianças sempre estiveram de olhos abertos. Mas é evidente que crianças mais preparadas têm maiores possibilidades de se tornarem cidadãos conscientes.   BB: Adolescentes (ainda) leem poesia? Marina: Bastante -e a fazem.   BB: Deslocar, viajar aparece em sua obra e também em sua biografia. Literatura é deslocar-se? Pode levar a deslocamentos? Desejáveis? Marina: Sem dúvida, literatura é uma viagem. O deslocamento mental é decorrência inevitável. Quanto ao físico, depende de vários fatores e das agências de turismo.   ---   *Publicado em 2012 pela Editora Pulo do Gato, Como se fizesse um cavalo traz duas conferências de Marina Colasanti. Em uma delas, a autora relembra como se deu sua “construção” como leitora e como pessoa. *Breve história de um pequeno amor foi editado pela Editora FTD em 2013.
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