As histórias que carregamos na mochila

29/11/2017

 

Por Beto Silva

Na minha família, sempre cheia de oralidade, a palavra escrita chegou com a entrada do meu irmão mais velho na escola. Ele trouxe o livro pra casa, assim como também introduziu as enciclopédias e a lousa, aplicando aulas de caligrafia. As aprendizagens que guardava eram compartilhadas com a maestria de quem passou a vida estudando, mas algumas delas tinham sido apreendidas há pouco pela manhã. Diria que minha relação com a letra e com conhecimento do mundo veio reforçada por ele. Aos meus professores, agradeçam a esse parceiro na minha educação.

Certa vez, ele me apresentou um livro chamado A mochila que pesava demais, de Regina Vieira. Foi nessa narrativa que conheci Pedro, um menino que não dava conta do peso de sua mochila. É que sua mochila acumulava todos os dias um tanto de ressentimento. Acompanhei toda a leitura que meu irmão fez assim que chegou da escola. Mas inúmeras vezes considerei que a história não fosse desse menino, meu irmão queria mesmo era falar de mim.

 

 

Minha relação com o livro se estabeleceu pela verossimilhança com a personagem dessa história. Eu também tinha uma mochila que pesava demais, por tudo que carregava sem uso nem função. Ela pesava pelas minhas escolhas e pelas minhas angustias e ansiedades, as que criava e as que recebia dos que me cercavam. Percebi que, assim como o menino da história, passei a guardar um “ressentimentozinho” que crescia, igual dia de parque que começa chuvoso, sorvete que vai ao chão na primeira lambida e bola que acerta o dente do cachorro bravo da rua. Que raiva!

Até o dia que ele caiu com o peso de tudo que carregava, revendo suas próprias escolhas e o peso que criou sobre si mesmo. Eu também cai e ainda hoje tropeço, tombo e caio, mas agora é de maduro que cada dia mais ando ficando. Eu nunca me esqueci dessa história.

E até hoje carrego na mochila tudo o que minha cidade demanda: guarda-chuva, lenço, uma blusa de frio e água. Junto dessas coisas sempre cabem um caderno pequeno de anotação, caneta, fone de ouvido e o livro do momento. Todos que pedem para segurar minha bolsa, ou algum amigo generoso a fim de dividir o peso, mencionam: “Esta mochila é pesada demais!”. Mas ela só dá conta do que eu realmente preciso.

Assim volto para a infância e para essa narrativa que, num efeito circular, retorna aos meus ouvidos e às minhas memórias. É óbvio dizer que esses efeitos nos dão condição de olhar para o passado, elaborar o presente e buscar sentidos logo mais à frente. Eu sei, parece estranho, mas essa narrativa me acompanha como pé de moleque em festa junina, bolinho de chuva em tardes nubladas, chá quando qualquer doença deseja se instalar e sua mãe a manda pra bem longe.

De alguma forma, essa primeira história lida em voz alta ecoa sempre em minha vida e revolve em minha memória. Passei a carregar outros tantos nessa minha mochila e buscar tantos outros semelhantes e opostos nas histórias que leio. Eu carrego histórias, carrego pessoas, carrego, portanto, um universo infinito e particular, carrego Marisa Monte também. Confessa que não fez logo essa associação? Confesso que a escuto diariamente; assim, estamos quites.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Abri minha mochila há pouco e, além do kit São Paulo City de tempos estranhos, levo dois livros: Persepólis (Marjane Satrapi), que integra o Clube de Leitura do qual participo, e Irís (Gudrun Mebs e ilustrações da Beatriz Martín Vidal), que voltou a andar comigo pela cidade. Ainda pouco parei para me conter da emoção de reler esse livro que havia me pego naquela primeira vez e agora nesta segunda. Ainda não me acostumei com o relato de uma criança sobre a situação de sua irmã, nem tão pouco como é complexo e cheio de significados sua maneira de explicar as dores da vida. Ai, ai... chorei mesmo!

Tudo eu guardo, mas por algum tempo: livros são lidos; guarda-chuvas, trocados; cadernos, gastos; fones de ouvido, substituídos. Tudo é passageiro. É meu mundo adicionado em minhas costas e ainda me lembro dos desejos que colocaria, como fazia Raquel com sua bolsa amarela – aquela personagem criada pela Lygia Bojunga. Eu também li esse livro na minha infância.

Atualmente, ando guardando todos os meus desejos para nunca esquecê-los, a expectativa é botar o pé na estrada para que todos sejam realizados, mesmo que seja um desejo de comer um cachorro-quente na escadaria do Teatro Municipal de São Paulo, esparramar-me na cama fazendo qualquer dia da semana virar domingo ou conhecer pessoas e lugares. Nem a bolsa verde de Pedro nem a bolsa amarela da Raquel, a minha é cinza, igual a minha terra. Nela guardo isso e tudo mais que eu precisar para viver.

***

Beto Silva é pedagogo e psicopedagogo. Consultor e assessor de projetos nas áreas de leitura, literatura e juventude, já atuou em projetos nas áreas de educação, cultura, saúde e assistência social. Foi coordenador geral de leitura na DLLLB/MinC, assessor do Programa Prazer em Ler, do Instituto C&A, educador do Projeto Criança Fala, técnico na A Cor da Letra, membro da construção do Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas de São Paulo e educador no Projeto Criança Fala. Atualmente, é presidente do Instituto Clio – Cultura, Leitura e Juventude e analista de projetos no Instituto Crescer. É jurado em prêmios e projetos e curador da seleção de livros para lista de acervo para empresas públicas e privadas e colaborador em programas, projetos e ações nas áreas de atuação. Criador do @dedicoaosleitoresquevi e @dedicoaoslivrosqueli. Paulistano, leonino e passarinho.

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