A memória como resistência

30/11/2017

 

Se há um lugar em que a literatura encontra a história, é o das narrativas que brotam das memórias. Elas são como “um teatro da narrativa, e as máscaras com as quais o narrador se apresenta vêm em camadas num sutil palimpsesto de rostos. O narrador memorialista é um fingidor, como no poema de Fernando Pessoa, ‘chega a fingir que é dor a dor que deveras sente’”, escreve Patrícia Porto, doutora em educação pela UFRRJ, em Narrativas memorialísticas: memória e literatura.

 

 

O mesmo aconteceu quando o VI Prêmio Literário LiteraSampinha propôs a crianças e adolescentes que escrevessem textos baseados em suas memórias. Participaram meninos e meninas de diversas áreas da região metropolitana de São Paulo – Guarulhos, Parelheiros, Mauá e outros. A premiação, que aconteceu neste mês, dia 11, foi ainda mais especial por ter sido realizada no Museu Afro Brasil, espaço que evocava ainda mais as memórias das crianças que lá visitavam pela primeira vez.

“Até hoje, cada vez que venho aqui, me emociono. É muito forte. Então fiquei imaginando a grandeza disso para esses meninos, que, em sua maioria, o mais longe que vão fica perto de casa. Esse é o mais longe. E é um museu que fala de um pedaço da sua história”, conta Ângela Lima, jurada do concurso, que reconheceu alguns padrões entre as narrativas de identidade das meninas negras. Muitas falaram da questão do cabelo, segundo a jurada, revelando por vezes um Brasil ainda ocultado.

 

 

Entre as narrativas, ganhou destaque o texto de Thaisa, de 13 anos, uma das premiadas, que escreveu sobre o seu processo de adoção. "Foi meio complicado, porque, no momento em que eu ia lembrar para escrever, batia uma dor forte e dava vontade de chorar e eu parava. Pensei até em desistir, só que falaram para eu não desistir, que estava bom. Aí eu continuei e ganhei", conta a garota.

Rememorar é também um tipo de resistência. Trazer as memórias à tona é uma ação capaz de ampliar seu entendimento. Assim nos conta Patrícia Porto: “As reminiscências acabam nos desvelando uma das mais poetentes facetas que há numa poética da memória: a do reinventar-se a cada novo momento de evocação e cada momento de leitura dessa evocação”.

 

 

Ao menos foi assim com Pietra, de 12 anos, que foi premiada ao se lembrar dos momentos que passou ao lado de sua falecida avó. "Foi um pouco difícil [trabalhar com o tema], porque eu não tinha muitas lembranças. Fui perguntando uma coisa ou outra para a minha mãe e eu fui escrevendo o texto", conta a menina, que fez a escrita coletivamente, em parceria com a mãe e com o professor. A narrativa traz os momentos felizes da menina com a avó e sobre como é estar sem ela hoje.

 

 

O professor de Pietra, José Aparecido Cruz, do Instituto Criança Cidadã, ainda lembra dos desafios da escrita. "Não é fácil. Uma criança, em sua inocência, não sabe que a gente vive em um mundo extremamente desigual, num mundo em que o negro, a mulher e o homossexual são discriminados. Inseri-la nesse universo não é uma tarefa fácil. Mas compensa depois", afirma. "Desde um texto mais simples, em que a menina fala do seu cachorro, até um texto mais bem elaborado, você sente essa questão da identidade presente, de estar representado no texto. E isso é muito legal. Não é o texto que o educador está ali, orientando. É uma produção em que ela consegue se ver no texto. E isso é fundamental, porque isso é para a vida toda."

 

 

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