Ler um livro e ler o mundo são atividades contínuas e que se complementam, como já disse o educador Paulo Freire. “Ao ler um livro, você dá lugar a diversas opiniões e a diferentes leituras frente a uma linguagem. O livro pode ser um convite a se pensar e conversar sobre as questões do mundo. A leitura de um livro desperta a imaginação e dá lugar ao possível”, diz Camila Feltre, que lançou recentemente É um livro…? Mediações e leituras possíveis (editora Cultura Acadêmica).
Na obra, disponível para download gratuito, ela reflete sobre o papel da mediação de leitura, a partir de oficinas que realizou com crianças em vários espaços culturais da cidade. Durante a experiência, percebeu as diferentes percepções na leitura de um livro. “O grande segredo para a mediação de leitura é a escuta. Se o mediador estiver atento, presente e com escuta ao que as crianças dizem (ou ao silêncio), ele vai saber até onde instigar e o momento de parar”, explica.
Ilustração Marcelo Tolentino
A obra É um livro, de Lane Smith, em que um burro e um macaco dialogam sobre as funcionalidades do objeto, disparou muitas questões na pesquisadora. O livro se tornava uma "linguagem a ser experimentada, algo a ser explorado com liberdade, pensando na sua materialidade, ou seja, explorando formato, cores, tamanhos, formas de encadernar". O objeto livro “pode ampliar as possibilidades de leitura, encontrando na materialidade elementos da narrativa”.
Em sua pesquisa, foram surgindo muitas questões: “Como posso contribuir para a leitura a partir do meu olhar sobre ele?” “Como cada um pode participar da história de forma que verbalize o seu pensamento, a sua leitura?” “O que você acha que o livro pode despertar nas crianças? Você já observou uma criança lendo? Se atentou as suas reações, expressões e falas?”
Outras perguntas surgiram da leitura de outros autores que tratam do tema. “E se, em vez de exigir a leitura, o professor decidisse de repente partilhar sua própria felicidade de ler?”, questiona o escritor Daniel Pennac. Já Regina Machado vai além: "Como manter vivo dentro dos meus olhos esse ‘brilho que a razão não devassa’ sabendo que essa chama permanece acesa porque não parei de ler e de me deixar tocar pelas palavras poéticas? Qual foi o último livro que li que me deixou em estado de encantamento?”.
Uma série de medidas podem ser tomadas para tentar proporcionar esse "encantamento”. Podemos nos atentar ao ambiente, à escolha dos livros, ao tempo desse encontro, ao acolhimento dos pequenos leitores. Mais do que falar, podemos estar entregues à escuta. É o que Camila aprendeu em sua experiência de leitura com as crianças e compartilhou conosco.
Leia a conversa completa abaixo.
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O livro é um objeto em constante transformação. Como lidar com isso ao fazer uma atividade de mediação de leitura?
Camila Feltre -- Levando esses diferentes olhares para o livro. Como posso contribuir para a leitura a partir do meu olhar sobre ele? Como cada um pode participar da história de forma que verbalize o seu pensamento, a sua leitura? Acredito que as constantes transformações que o livro vem passando pode ser uma questão a mais a ser trabalhada na mediação de leitura.
Muito do seu livro veio a partir das oficinas que você deu na Casa das Rosas, certo? O que você aprendeu com as crianças?
Camila Feltre -- Sim, a pesquisa começou na Casa das Rosas, onde atuava como educadora e realizava oficinas para famílias. Comecei a perceber durante os encontros que alguma coisa acontecia entre as crianças e os livros, tanto durante a leitura, quanto no momento de criação dos livros. Percebi as diferentes possibilidades de leitura de um livro, em que cada criança poderia ter uma percepção frente a algo que o livro poderia oferecer, e a riqueza da leitura estava nesse compartilhar de interpretações. Já na proposta de criação, observei o livro como linguagem a ser experimentada, algo a ser explorado com liberdade, pensando na sua materialidade, ou seja, explorando formato, cores, tamanhos, formas de encadernar. Além do fato de que criar um livro poderia ser algo enriquecedor para as crianças, que afetaria nas relações criadas com ele.
Para as crianças, o poder do objeto livro durante a experiência de leitura é muito maior, como você mesma diz em sua obra: “Percebo que, para elas, não há separação entre o objeto e a história, entre a forma e o conteúdo; se elas apreenderam a história, a materialidade do livro também foi experienciada.” Poderia falar sobre a importância de incentivar essa relação também com o objeto?
Camila Feltre -- Acredito que os livros podem ser lidos como um todo, ou seja, lemos as palavras (quando estão presentes), as imagens e a sua materialidade. O olhar para o objeto livro, atentando ao seu design gráfico, pode ampliar as possibilidades de leitura, encontrando na materialidade elementos da narrativa.
Como o espaço de leitura afeta nesse momento?
Camila Feltre -- O espaço onde acontece a leitura tem papel fundamental para a relação que se cria com o livro. Durante a pesquisa de mestrado, entre 2013 e 2015 na Unesp em São Paulo, realizei duas oficinas no Espaço de Leitura, dentro do Parque da Água Branca, e ficou nítido como o ambiente interfere na experiência leitura. O fato de estarmos em um parque, sob imensas árvores, ao som de galos cacarejando, sentindo uma brisa leve, afetou a nossa maneira de ler. Precisamos de espaços prazerosos para ler, para criar uma aproximação prazerosa com o livro. O corpo estabelece essa relação com o livro.
Como fazer a abordagem com a criança? Até que ponto interferir em sua leitura?
Camila Feltre -- O grande segredo para a mediação de leitura é a escuta. Se o mediador estiver atento, presente e com escuta ao que as crianças dizem (ou ao silêncio), ele vai saber até onde instigar e o momento de parar. Acho que assumir uma posição de mediador, que tem intenções, que contribui e que também está presente e quer trilhar um caminho junto com as crianças, é muito importante para entender esse lugar no encontro da criança com o livro.
No seu livro, você também fala da importância do momento de leitura como uma experiência para a criança. Como provocar essa experiência?
Camila Feltre -- A experiência a que me refiro no livro é um conceito do autor espanhol Jorge Larrosa. Segundo ele, a experiência não pode ser planejada, e “não pode ser antecipada como um efeito a partir de suas causas, só o que se pode fazer é cuidar de que se deem determinadas condições de possibilidades [...]”. Assim, nunca temos o controle sobre ela, o que podemos fazer, é pensar em algumas possibilidades para que ela tenha lugar. Durante as oficinas, tenho algumas intenções, com o objetivo de que o encontro faça sentido para mim, como educadora, e para os participantes envolvidos. Então, estou atenta ao ambiente, a disposições dos espaços, à escolha dos livros, penso nos materiais para a criação, no tempo de encontro, no acolhimento dos participantes.
Poderia dar dicas a pais e professores que estão nessa jornada de aproximar a criança da leitura?
Camila Feltre -- Acredito que há vários caminhos possíveis para a aproximação da criança com o livro e que cada um que está em contato com a criança pode encontrar o seu, ou melhor, inventar a sua maneira, já que cada criança e cada adulto tem as suas particularidades. Para contribuir com adulto nessa busca, acredito que se relacionar com o livro, em primeiro momento, pode ajudar. Se a mãe, pai, ou professor tiver se envolvido com o livro de alguma maneira, seja pelo afeto, ou desafeto, por gosto, curiosidade ou qualquer outro tipo de relação, será uma maneira de convidar a criança a se apropriar dele também, considerando que as possibilidades de leituras são muitas.
Você participou da feira Miolo(s), cujo tema percorre a pergunta “O que o livro pode despertar nas crianças?”. Como você responderia essa pergunta?
Camila Feltre -- É uma pergunta muito ampla, até pensei que seria difícil responder com algo concreto. O que você acha que o livro pode despertar nas crianças? Você já observou uma criança lendo? Se atentou as suas reações, expressões e falas? Temos muitas respostas. Acredito que o livro e a leitura possibilitam diferentes olhares para o objeto e para o mundo. Trazendo as palavras de Paulo Freire: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Assim, “linguagem e realidade se prendem dinamicamente”. Ao ler um livro, você dá lugar a diversas opiniões e a diferentes leituras frente a uma linguagem. O livro pode ser um convite a se pensar e conversar sobre as questões do mundo. A leitura de um livro desperta a imaginação e dá lugar ao possível. É um momento em que a criança pode conhecer algo que não está diretamente ligado à sua realidade e de alguma forma, a partir desta leitura, pode se relacionar com isso.