Por Janaina Tokitaka
Maria Tatar, grande especialista em folclore e mitologia, diz que todo conto de fada é a história de uma família disfuncional. A frase soa ainda mais verdadeira se aplicada ao conto “A pequena Branca de Neve”, dos irmãos Jacob e Willhem Grimm. Mas por que essa disfunção em particular parece incomodar e fascinar o público na mesma medida?
A versão mais conhecida de Branca de Neve é a animação de 1937 dos estúdios Disney. “Branca de Neve e os Sete Anões” foi um enorme sucesso de público e crítica. O filme mudou a história do cinema, arrecadou a maior bilheteria até então e abriu espaço para a realização de obras como “O Mágico de Oz” e “Pinóquio”, do mesmo estúdio. Sergei Eisenstein nomeou Branca de Neve “o maior filme de todos os tempos”. Judy Garland, Marlene Dietrich, Federico Fellini e Charlie Chaplin foram igualmente arrebatados por seus encantos. Mesmo assim, o filme não foi unanimidade. Wanda Gag, ilustradora de livros infantis, por exemplo, detestou o tom “trivial, estéril e sentimental” que Walt Disney usou para contar a história da menina de pele branca como a neve e cabelos negros como o ébano.
Ilustração Janaina Tokitaka
Mais tarde, já na década de setenta, feministas e amantes de contos de fada concordaram com Gag, criticando a voz açucarada e ingênua da princesa. Angela Carter dizia preferir mil vezes a madrasta, personagem cheia de energia, capaz de elaborar planos inteligentíssimos e cruéis. É uma escolha compreensível. A cena em que Branca de Neve canta, feliz, enquanto realiza inúmeras tarefas domésticas é mesmo de fazer qualquer mulher ranger os dentes. Mas é bom lembrar que na animação os sete anões também cantam, despreocupados, em seu caminho até as minas, uma das formas mais detestáveis de trabalho braçal. Na fantasia de Disney, todos os cantos de trabalho transfiguram-se em canções agradáveis, alegres e inócuas, talvez de forma um pouco perversa.
Voltando para a questão da representação feminina, é difícil acreditar que qualquer família preocupada com igualdade de gênero eleja a Branca de Neve como uma personagem inspiradora. Sua domesticidade, ingenuidade e equivalência entre beleza e virtude são completamente anacrônicas e indesejáveis para as meninas de 2017, ainda que essas características estejam mais presentes na personagem da animação do que na princesa dos irmãos Grimm. A Branca de Neve do conto original não é exatamente independente ou inteligente, mas, justiça seja feita, ela não “é" muita coisa, não possui características mais profundas do que sua descrição física. Branca segue a tradição dos personagens de conto de fada e não tem nenhuma densidade psicológica, o que não quer dizer que ela seja neutra ou inócua.
Mas o que é, então, a Branca de Neve e por que ela é tão incômoda? O título do conto dos irmãos Grimm, “A pequena Branca de Neve”, talvez ofereça uma chave para esse mistério. A Branca de Neve é bela, sim, mas, principalmente, ela é jovem. Seu poder vem da união dessas duas características. É o que comove o caçador encarregado de matá-la e é o que faz com que os anões não a enterrem mesmo quando a julgam morta, permitindo, por fim, que ela sobreviva e seja feliz para sempre.
Ser bela e jovem também é o que enraivece sua madrasta, enchendo-a de inveja e sentimentos de inadequação. Essa narrativa, infelizmente, não é tão anacrônica assim. Maria Tatar, novamente, aponta semelhanças entre a famosa relação disfuncional entre as duas personagens folclóricas e tantas outras relações reais entre mães e filhas, documentadas (ainda que exageradamente) em reality shows americanos. Envelhecer certamente nunca foi fácil, mas também nunca causou tanta ansiedade. A obsolescência parece estar sempre ali, à espreita, cada vez mais perto e cada vez mais rápido. Com alguma honestidade, não é difícil criar empatia com a madrasta da Branca de Neve.
Contos de fada mudam com o tempo. Quem sabe se adaptar sobrevive, e é notável a permanência desses contos durante os séculos. O filme de Walt Disney completa, neste mês, oitenta anos. O conto dos irmãos Grimm, duzentos e cinco. Desejo, então, uma boa velhice à Branca de Neve. Torço para que, em suas próximas encarnações, ela e sua madrasta possam dividir o espelho, usando sua superfície mágica para fazerem, juntas, todo tipo de perguntas interessantes.
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Janaina Tokitaka escreve e ilustra livros infantis. Seu primeiro livro como autora, Tem um monstro no meu jardim, foi publicado em 2010 pela Escrita Fina. Desde então, publicou mais de trintas outras obras para o público infantil e juvenil. Pela Companhia das Letrinhas, já ilustrou Nove Chapeuzinhos, Caldeirão de poemas e O mercado dos Goblins. Ministra cursos livres sobre literatura e ilustração em instituições como MIS e Escola do MAM. Foi a ilustradora selecionada do Brasil para o workshop BIB - Unesco 2016, da Bienal internacional de Bratslava.