Quando eu era sereia

16/01/2018

 

Por Índigo

Nasci longe do mar, numa cidade de interior. Durante meus primeiros anos de vida, morei num apartamento. Lembro apenas do carpete roxo, do sofá amarelo e de uma cortina verde. Anos 1970, muita cor solta pelo mundo. Muita liberdade no ar. Eu, recém-chegada ao planeta, me sentia aprisionada.

Enquanto o sol brilhava e hippies rolavam pela grama, meus pais trabalhavam numa empresa e eu passava o dia na escola. Por dentro, intuía que algo estava errado. Meu lugar não era em sala de aula. Certamente a vida havia reservado algo melhor para mim. Mas, o quê? Faltava referência. Não havia internet naquela época. A programação da TV era tão fraquinha... Mesmo assim eu sabia que meu lugar não era ali.

 

 

Até que um belo dia, surge uma viagem de férias. Destino: Ubatuba. Isso é uma das coisas boas de ser criança. Férias surgem do nada, como um presente dos céus. Quando dei por mim, estava no banco traseiro do Chevette branco, sentindo uma brisa gostosa e um cheiro diferente. Meus pais deixam de trabalhar, eu recebo alta da escola e não há mais compromissos, horário, obrigações. Meu pai tira o terno. Minha mãe veste um biquíni florido e corremos para a areia. Cada um me segurando por um braço, e nos jogamos na água.

Meu pai me joga para o alto e brinca comigo como se a criança fosse ele. Minha mãe dorme estirada numa esteira de palha, sem se preocupar com o almoço ou com minha lição de casa. Não há mais lição de casa!

Sou tomada por uma alegria tão imensa, tão divinal. Finalmente meus pais entenderam o verdadeiro sentido da vida. Eles entenderam o motivo de Deus ter nos criado, assim como criou o mundo e a natureza. Era isso que deveríamos ter feito desde sempre, brincar nas ondas do mar, comer peixinho frito, passar o dia todo juntos, como uma família que segue o curso natural da vida.

Depois do terceiro dia dessa rotina perfeita, enquanto nado sozinha no mar, percebo que sei muito pouco a meu respeito. Lembro de tudo que já vivi, e identifico onde errei. Sinto, no fundo da minha alma, que não sou cem por cento humana. Sou um peixe, não posso mais aceitar as imposições de antes: tênis, banho quente, comer bife acebolado e ir para a escola, onde me obrigam a ficar sentada, prestando atenção, sem sair do lugar. Tudo isso é violento demais. Sim, sou um bicho. Essa é a minha verdade. Sinto tamanha confiança na minha nova identidade que saio da água para informar meus pais. Eles precisam saber.

Encontro os dois num papo animado, comendo camarão no palitinho. Não consigo interromper a conversa. Espero. Quando finalmente me manifesto, eles acham graça e me abraçam. Seguem conversando. Eu volto para o mar, sem rancor, sem frustração. Estou aliviada por ter dito a verdade. Confio neles. Sei que gostam de mim e agora que sabem de tudo, não vão me obrigar a voltar para o apartamento ou mesmo sair da água depois que o sol se pôr.

***

Índigo nasceu em Campinas e formou-se em jornalismo pela Mankato State University, nos Estados Unidos. Foi vencedora do Prêmio Literatura Para Todos, do Ministério da Educação, na categoria “contos” com o livro Cobras em compota. Atualmente mora numa chácara, em São Lourenço da Serra, com o marido e dois gatos. É autora de Saga animalA maldição da moleira e Perdendo perninhas, entre muitos outros livros. Pela Companhia das Letrinhas, publicou Glauber e Hilda. Sua produção teve início na internet, onde publicou os primeiros contos em 1997. Para saber mais sobre Índigo e seus dilemas: www.livrosdaindigo.com.br.

 

 

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