Por Patricia Auerbach
Fui apresentada ao personagem Tintim quando ainda era criança. Mas a verdade é que nunca fui muito fã das aventuras do jovem belga. Até que há pouco mais de um ano meu filho caçula apaixonou-se pela série e, depois de devorar os quadrinhos, acabou descobrindo que em algum lugar no interior da Bélgica existia um museu dedicado à vida de Hergé, o autor das histórias. Dali em diante ele passou a fazer planos de como e quando conseguiria conhecer aquele templo que guardava informações preciosas sobre a vida do seu personagem favorito.
Tenho como lema de vida que sonhos possíveis devem ser realizados e esse, além de possível, era delicioso. Por isso planejamos uma viagem de férias que incluía uma parada na pequena cidade de Louvain de la Neuve. A exposição sobre a vida do quadrinista ficava em um prédio moderno com projeto de Christian Portzamparc, onde duas caixas brancas e assimétricas pareciam flutuar sobre a copa das árvores do parque à sua volta. Para fazer um passeio virtual no museu, clique aqui.
A família estava ansiosa. Foram meses pensando naquele dia e estávamos todos com medo de que, depois de todo nosso esforço para estar ali, a exposição fosse um fiasco. Mas não foi isso que aconteceu. Logo na primeira sala, fui surpreendida por originais feitos a lápis, com riscos soltos e cheios de pequenas imperfeições que mostravam para mim um Tintim diferente do que eu conhecia até então. Meu filho, eufórico, seguiu sua visita saltitando, acompanhado de perto pelo pai e pelo irmão mais velho, que ouviam atentos às explicações do nosso tintinólogo de plantão.
Já no meio da visita, entre vitrines cheias de esboços e rascunhos que eram verdadeiras obras de arte, assisti a uma entrevista gravada com o próprio Hergé falando sobre o processo de criação da série. Tintim era uma figura global e andava pelo mundo tentando desvendar grandes mistérios. Mas, para construir graficamente as aventuras, uma equipe incrível de ilustradores trabalhava duro para criar personagens, cenários, veículos e objetos que retratassem os lugares por onde passavam o herói e seu esperto cachorrinho Milu.
Sem Google, sem internet e com pouquíssimas imagens na mídia impressa, o acesso à realidade de outros países naquela época era difícil, por isso até a ilustração do uniforme de um personagem secundário como o carteiro de O caranguejo das pinças de ouro acabava virando um grande desafio. Cada nova ideia exigia uma longa busca por referências, o que, na primeira metade do século XX, significava visitar pessoalmente bibliotecas e arquivos, vasculhar jornais impressos e muitas vezes escrever cartas para embaixadas, fábricas de automóveis, correios ou amigos que pudessem dar qualquer tipo de informação sobre a cultura, a paisagem ou o uniforme do carteiro das cidades por onde passaria o herói da história.
Apesar do esforço da equipe de Hergé, o número de cartas enviadas que ficava sem resposta era enorme. Quando isso acontecia, algumas cenas tinham que ser adaptadas para que pudessem ser construídas apenas com as informações disponíveis. Segundo Hergé, muitas vezes a equipe de ilustradores precisava inventar uma ou outra pecinha para completar o quebra-cabeça de uma cena que não podia ser eliminada do enredo. Hergé não estava preocupado em ser perfeito, o mais importante para ele era garantir uma boa história.
Com o sucesso das aventuras, Tintim passou a ser traduzido e chegou de fato a muitos dos países por onde o personagem tinha passado na ficção. Em pouco tempo, o estúdio começou a receber cartas de leitores reclamando de uma vegetação que não existia em sua região, ou de um carro que aparecia em determinada história, mas nunca tinha sido visto naquele país.
O autor encarava esses pequenos “erros” com uma leveza deliciosa e, assistindo ao seu depoimento, pensei na importância do personagem, que há quase um século fez caber o mundo em suas histórias, antecipando, já naquela época, uma visão da vida contemporânea e globalizada. E ele fez tudo isso como teria feito seu próprio herói. Sem poderes mágicos, sem Photoshop, sem Google Images. Autor e personagem foram muito criticados recentemente por não estarem de acordo com a consciência ecológica do nosso tempo, mas Tintim, assim como seu criador, é um herói falível. Um personagem imperfeito, amigo de um capitão bêbado e de uma dupla de confusos investigadores. Um herói quase possível, cujo maior desafio foi vencer os excessos do politicamente correto para chegar às mãos de leitores sortudos, mas acostumados a personagens de Facebook tão tediosamente perfeitos e previsíveis.
Tintim ganhou mais um fã na família, mas não foi o mistério do Licorne que me seduziu. Foi um processo criativo que aceita o erro como parte inevitável do fazer. Foi a leveza invejável da fala de um criador assumindo suas limitações sem culpa. Foi a possibilidade de um herói inteligente e afetivo que comete erros sem perder seu encanto. Foi a deliciosa surpresa de conhecer tudo isso pelas mãos de um filho.
Naquele dia, saí do museu com um exemplar embaixo do braço, pronta para viajar pelo mundo com as aventuras de Tintim e com a certeza de que às vezes o faz de conta é muito mais verdadeiro do que a versão editada que conhecemos da realidade.
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Patricia Auerbach é escritora e ilustradora, autora de obras como Direitos do pequeno leitor (2017), Histórias de antigamente (2016) e Pequena grande Tina (2013).