Uma disputa entre grandões e pequenininhos

20/02/2018

 

Glauber e Hilda são um casal nada convencional. Ele, um ácaro, e ela, uma pulga, já habitaram os mais inóspitos ambientes. O lugar da vez é o planeta Matilda (nome da cadela em que vivem), um ambiente medieval. Cansados do temperamento dos bichos com quem convivem, decidem explorar todo o universo – que compreende, na verdade, a casa de Dona Tocha (uma artista de circo aposentada) e Américo (um hippie surfista).

Esses mundos esquisitões em breve poderão ser visitados numa série de TV inspirada em As aventuras de Glauber e Hilda, livro de Índigo publicado em 2014 pela Companhia das Letrinhas. O projeto integrou recentemente o Núcleo Criativo da Singular, Mídia & Conteúdo, contemplado pela Ancine e liderado por Beth Carmona, produtora infantojuvenil que já passou por canais como TV Cultura, Discovery Latin America e The Walt Disney Brasil. Uma equipe de roteiristas (Vanessa Fort, Keka Reis, Marcus Aurelius Pimenta e a própria Índigo) trabalhou na criação de novas peripécias para essa dupla divertidíssima e excêntrica. No momento, o projeto conta com a parceria entre as produtoras Singular, Elo Company e Birdo Studio para entrar em fase produção – vamos torcer para que logo chegue na telinha.

 

Imagem dos personagens Glauber e Hilda, com o visual da série de TV

 

Como se dá esse encontro entre a literatura e a televisão? “A literatura infantil brasileira tem vários escritores interessantes para a gente se aproximar e é sempre bom quando uma obra já tem personagens ou no mínimo uma história com uma força argumental grande para nos inspirar na hora de criar um projeto audiovisual”, conta a líder do núcleo, que desenvolveu outras séries envolvendo autores de livros infantis.

 

Acima, os personagens ilustrados por Caco Galhardo para o livro

 

Na série, “Glauber e Hilda são uma dupla de heróis que vive num planeta chamado Matilda, uma cadela”, conta Índigo. “É um mundo medieval, com costumes arcaicos que já não fazem o menor sentido para Hilda. Ela é neta da Rainha Olenka, uma tirana muito doida e um pouco caduca. Glauber vem de outro planeta e conhece praticamente a galáxia inteira. Ele é um cara moderno, ousado e fora da caixinha. Juntos, eles vão explorar todos os planetas daquele microcosmo”, explica a escritora, que acredita que a criança fala tão bem a língua do humor porque ainda não tem ainda a “mania ridícula, que os adultos têm, de se levar a sério".

A série traz uma disputa acirrada entre seres grandes e pequenos. Ou, como diz a coordenadora de roteiros Vanessa Fort, também roteirista, trata sobre poder, “só que com um frescor de uma animação com tonalidade nonsense e cheia de humor”. Ela explica que essa disputa por poder reflete um pouco a relação crianças e adultos. “Podemos dizer que a infância está tentando fazer valer a sua voz, tentando ser escutada, tentando imprimir um tipo de olhar. Mas os adultos ficam insistindo que sabem mais do que as crianças, que têm que mandar e resolver de uma forma autoritária suas vidas”, completa. A ideia é subverter um pouco essa ordem hegemônica em que os adultos, os "grandes", os poderosos, exercem sobre os "pequenos".

Segundo a diretora de arte Luciana Eguti, do estúdio de animação Birdo, a série de TV também foi ampliada do ponto de vista visual. Com a possibilidade de recursos como gags físicas, entonação e linguagem corporal, a animação tem a necessidade de recursos dramáticos diferentes daqueles utilizados em um livro. Por isso, as características visuais do casal microscópico mudaram em relação ao desenho original, criado pelo cartunista Caco Galhardo. Os personagens continuam em uma dimensão de cartum, com uma expressão referencial marcada, sem muitas abstrações. A técnica pensada para a animação foi a 2D.

Em um momento de muita oferta audiovisual para as crianças, a originalidade conta como um diferencial. "No mercado brasileiro, as séries que têm sido desenvolvidas contribuem para entender um pouco mais que a criança tem opinião, que ela pode escolher e criticar a partir de coisas que vê", pontua Beth Carmona. "Hoje, temos condições de achar projetos que oferecem boas contribuições para a formação audiovisual da criança", completa a produtora, que destaca que a série promete conquistar tanto crianças quanto adultos.

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Confira abaixo o papo que também tivemos com a escritora Índigo, autora de As aventuras de Glauber e Hilda.

Para começar, poderia nos contar um pouco sobre a história de Glauber e Hilda? De onde surgiu a ideia de criar esse casal e como foi inventar essas aventuras?

Índigo - Glauber e Hilda são um ácaro e uma pulga, respectivamente. No livro, eles são casados e superapaixonados um pelo outro. A ideia veio da vontade de trabalhar com personagens “invisíveis”. Livros sobre gatos, cachorros e coelhinhos existem aos montes. Eu queria escrever um livro sobre o tipo de bicho que nunca receberá um afago, uma palavra amiga, um carinho. Quem gosta de ácaro e pulga? Ninguém. No entanto, imagino que se você se colocar na pele de deles, descobrirá que também têm sentimentos e uma vida complexa, como qualquer criatura viva. Acho que no fundo a ideia veio de uma vontade de vestir uma roupagem diferente e totalmente inusitada. Nos meus livros anteriores eu já havia vestido a pele de cachorro, de gato, de iguana, até de escargot. Mas em Glauber e Hilda eu queria ousar um pouquinho mais. Explorar novos mares.

A pulga e o ácaro vão virar série de TV. Pode falar sobre o projeto?

Índigo - Vamos lá. Tenho uma superstição de só falar do que é certo. Se a coisa ainda não foi concretizada, prefiro não falar. O que temos de certo até o momento é que, sim, já iniciamos o desenvolvimento da série, graças à parceria de gente muito talentosa: [as produtoras] Singular e Birdo. Na equipe de roteiristas: Keka Reis, Marcus Aurelius e eu, com a supervisão da Vanessa Fort. Tudo isso sob o comando da Beth Carmona e André Antunes. Sobre negociação com canais, por enquanto é melhor não revelar nada. Tenho formigas tatuadas na perna. Elas representam o jeito como eu funciono. Trabalho coletivo, constante, incansável e harmonizado. Somos pequenininhos e silenciosos. Vamos trabalhando dia após dia, discretamente, num modo praticamente artesanal. Mas o resultado é surpreendente. De repente, vem um humano grandão e pergunta: “Mas de onde veio isso?”. Com Glauber e Hilda, será assim.

Quais serão as aventuras vividas por Glauber e Hilda na série? Quais são os principais desafios? Como o universo foi ampliado?

Índigo - Na série, Glauber e Hilda são uma dupla de heróis que vive num planeta chamado Matilda. No caso, uma cadela. É um mundo medieval, com costumes arcaicos que já não fazem o menor sentido para Hilda. Ela é neta da Rainha Olenka, uma tirana muito doida e um pouco caduca. Glauber vem de outro planeta e conhece praticamente a galáxia inteira. Ele é um cara moderno, ousado e fora da caixinha. Juntos, eles vão explorar todos os planetas daquele microcosmo, que é na verdade a casa de Dona Tocha e Américo. Ela, uma artista de circo aposentada. Ele, um velho hippie surfista.

Você tem trabalhado em outros roteiros de histórias suas, certo? Como vê as atuações como escritora e roteirista?

Índigo - Como escritora, trabalho sozinha por meses e meses, num processo caótico, passional, apaixonado, experimental e pouco racional. Quando visto o chapéu de roteirista, é como se tivesse virado uma engenheira de usina nuclear. Tudo é pensado e planejado nos mínimos detalhes. Trabalho com uma equipe de profissionais superexperientes e talentosos. Escrevendo livros eu entro em crise o tempo todo. No roteiro, a crise pode até vir, mas não dura mais que um par de dias. No entanto, as duas coisas se complementam. A parte escritora do meu cérebro permite que eu tenha um cuidado especial com a linguagem, com a escolha das palavras e com a veracidade dos diálogos, por exemplo. A parte roteirista começa a influenciar os livros que escrevi depois dessa virada. Agora tenho planejado a estrutura das histórias, os movimentos, a dinâmica entre os personagens. Uma área só enriquece a outra.

Parece que o seu primeiro livro, Saga animal, também vai virar animação. Pode falar desse e de outros projetos em andamento?

Índigo - Tenho quatro livros que estão em processo de adaptação para produções audiovisuais. Saga animal e As aventuras de Glauber e Hilda vão virar séries de animação. Perdendo perninhas será uma série live-action e Um pinguim tupiniquim vai virar um longa-metragem de técnica mista, live-action com stop-motion. Esse é o que está mais adiantado. Começamos a filmar em 2018. Já conseguimos captar boa parte do recurso para a produção, e o projeto está fluindo superbem. Entrei como roteirista em todos eles e cada processo foi único. O mais fiel ao livro é Perdendo perninhas, por ser live-action e por ser uma história mais realista. Fala do dia a dia de quatro amigas que entram no sexto ano e enfrentam as mudanças típicas dessa fase da vida. Uma história sobre amadurecimento, entrada na adolescência e amizade. As animações foram adaptações mais livres, pois tivemos de pirar bastante para atingir a qualidade de humor das produções atuais que são referência na Nick e Cartoon. O longa-metragem Um pinguim tupiniquim foi um processo interessante porque começou numa oficina de roteiro, ministrada por Marcelo Starobinas. Cheguei na oficina sem saber nada sobre roteiro. Comecei a trabalhar do zero: ideia, sinopse, escaleta, cenas, um passo de cada vez. Gostei da brincadeira. Resolvi fazer o segundo módulo. Ao final, tinha um roteiro pronto e muitos contatos de pessoas que já trabalhavam com isso. Exigiu uma dedicação considerável de tempo e energia, mas valeu porque rapidinho encontrei uma produtora que curtiu o roteiro e agora estamos nessa etapa de pré-produção. Dito assim, parece tudo muito fácil e suave, mas o processo começou lá em 2013. Foi pura persistência e vontade de fazer. A verdade é que eu amo escrever. Depois que termino o livro, gostaria de poder continuar escrevendo, e o roteiro me permitiu voltar aos meus personagens, seguir contando a história deles num novo formato.

O humor é ingrediente sempre presente em suas histórias. Como o humor é tratado nessas adaptações audiovisuais?

Índigo - Nas adaptações audiovisuais o humor, que já estava presente no livro, é elevado à enésima potência. Nessa mídia temos a possibilidade de gags físicas, de entonação, linguagem corporal, mais ênfase nos diálogos. Nas animações, por exemplo, a gente pira demais. Durante o processo de criação havia dias, na sala de roteiro, que a gente chegava a chorar de rir, tamanha a quantidade de bobagem que conseguíamos pensar numa tarde. Que eu tinha um talento especial para bobagens eu já sabia. O bom é que pela primeira vez na vida estou ganhando dinheiro com isso. Estão levando meu humor a sério. Pra mim, parece piada. Ou milagre.

Por que a criança fala tão facilmente a língua do humor?

Índigo - Porque ela ainda não pegou a mania ridícula, que os adultos têm, de se levar a sério.

 

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