A espanhola Lara Meana passou a infância escutando histórias contadas pela avó. Alfabetizou-se ávida por livros e foi com eles mundo afora conhecer novas paisagens e narrativas. Depois, de volta à Espanha, formou-se bibliotecária, mediadora de leitura, escritora e livreira.
Escritora e mediadora de leitura, hoje ela dirige sua própria livraria, a
El Bosque de la Maga Colibrí. De frente para o mar, a loja está localizada em Gijón, cidade natal de Lara, na província espanhola de Astúrias, norte do país.
Lara esteve no Brasil nos dias 9 e 10 de março de 2018 para o curso
Vamos buscar um tesouro: grandes livros para pequenos leitores, realizado pelo
Instituto Emilia com apoio da
Editora Brinque-Book. Apaixonada por literatura, ela concedeu, por e-mail, a entrevista abaixo ao
Blog da Brinque.
Blog da Brinque: Vou começar com uma pergunta bem básica, introdutória: por que lemos para as crianças? Por que ler para elas?
Lara Meana: Parece uma pergunta básica e, no entanto, não é fácil de responder. Ocorrem-me muitas razões pelas quais ler para os pequenos, mas todas elas, de alguma forma, cairiam no utilitarismo. Se eu te perguntasse por que dar um presente a alguém, a resposta seria evidente: dar um presente é um ato de generosidade, de amor, sem esperar nada em troca. Ler em voz alta, contar uma história, é um presente. E o é não só para as crianças, mas para nós, adultos, também. Nos presenteamos com o tempo compartilhado, com a cumplicidade, com as risadas, com as reflexões inesperadas, perguntas as quais responder juntos...
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A livraria "El Bosque de la Maga Colibrí", dirigida por Lara. Foto: Acervo da autora[/caption]
BB: Ler para as crianças garante que elas sejam ou que se tornem leitoras?
Lara: Um dos exercícios que costumo fazer nos cursos de formação sobre leitura consiste em pedir que cada um dos participantes reconstrua sua biografia leitora, buscando em que momento reconheceu-se a si mesmo como leitor e quais fatores influenciaram neste processo. É curioso, porque é algo sobre o que os mediadores de leitura não estamos acostumados a refletir, embora seja uma fonte de informação muito útil para entender a formação leitora. Os leitores de ficção reconhecem, em geral, que houve uma história, um conto ou uma novela em particular que marcou um "antes" e um "depois". Alguns a escutaram de seus pais ou avós; outros a leram por si mesmos em sua infância ou adolescência. Coincidentemente, muitos tardaram a aproximar-se da leitura porque o processo de alfabetização foi traumático ou porque os livros oferecidos eram ruins e pouco interessantes. No caso de livros informativos ou de não-ficção, o gatilho para se aproximar da leitura foi a curiosidade. Ler em voz alta para as crianças, seja ficção ou seja não-ficção, cercá-las de histórias ou de informação que as interesse não é garantia de que irão continuar lendo, mas transforma-as em leitores no presente. Quando uma criança escuta uma história ou se senta ao nosso lado para ver as imagens do livro ou ouvir as palavras que as acompanham, também está participando da leitura, está lendo ainda que sem saber ler.
"Não sou muito a favor das leituras obrigatórias, a menos que haja uma razão poderosamente literária para isso"
BB: O que falamos quando falamos de infância? Que criança é essa a que nos referimos hoje?
Lara: A infância, como a juventude e a vida adulta, é, por definição, diversa. Assim somos os seres humanos. Além das diferenças pessoais, somam-se muitos fatores: sociais, econômicos, étnicos, familiares, de acesso à tecnologia, do tipo de relação com os adultos. Às vezes, tendemos a homogeneizar as crianças como coletivo, porque dessa forma nos é mais fácil estabelecer pautas, recomendações ou desenhar ações educativas. É certo que, como mediadores de leitura, tendemos a buscar livros universais, que possam agradar a uma maioria de crianças. É importante buscar também, no entanto, a maior diversidade possível, para que cada criança possa encontrar esse livro em que reconhecer-se, em que construir-se. Livros para rir, para assombrar-se, para perguntar-se, para reafirmar-se, para emocionar-se, para viver aventuras, para brincar.
BB: Como você avalia as estratégias de formação de leitores nas escolas de infância e educação fundamental?
Lara: Creio que nas escolas em geral exista uma instrumentalização excessiva da leitura e dos livros para fins educativos e, às vezes, também moralizantes. Por um lado, a ênfase na aprendizagem leitora está colocada na aquisição de conhecimentos. Por outro, os livros que se selecionam devem transmitir uma série de valores morais, muito mais que oferecer qualidade literária ou uma narrativa que interesse ao leitor. Na realidade, creio que não estamos formando leitores. Para mim, ler vai muito além de decodificação e compreensão. Ler tem a ver com o prazer estético, com a capacidade de relacionar o que lemos com o que vivemos, de expressar ou produzir um discurso novo. A leitura tem a ver com o assombro, com a curiosidade, com a identificação. A escola deveria despertar tudo isso e dar o impulso que vai colocar esse processo em movimento. Nós temos que colocar bons livros nas mãos do leitor. A criança fará o resto.
BB: Os professores e pais brasileiros leem pouco, conhecem muito pouco de literatura propriamente. Como formar leitores quando não se é leitor?
Lara: O gosto pela leitura é como um vírus: não se pode transmiti-lo se não se tem. Também é difícil recomendar leituras que não se tenha feito, das quais não se tenha desfrutado. Quem sabe o desafio esteja justamente em famílias e professores descobrirem os prazeres da leitura. De todo modo, às vezes nos esquecemos que grande parte de nossa bagagem cultural está na literatura tradicional, passada oralmente de geração em geração. Nem toda a literatura está nos livros. Compartilhar histórias é algo inerente ao ser humano, temos necessidade de contar e contar-nos. Quiça necessitamos voltar a nos conectar com essas histórias que nos habitam desde sempre e iniciar o caminho aí, compartilhando-as.
"Ler em voz alta, contar uma história, é um presente. E o é não só para as crianças, mas para nós, adultos, também"
BB: O que é importante, na sua opinião, para formar leitores na escola?
Lara: Respeito ao ritmo leitor de cada criança, leitura em voz alta por parte do professor, fomentar conversas literárias em aula, deixar de focar a avaliação para escutar as opiniões das crianças sobre as leituras...
BB: E em casa?
Lara: Não há experiência mais mágica que compartilhar um conto, um poema ou uma canção com uma criança. É um momento de afeto e comunicação incomparável; quando as famílias o descobrem, não querem deixar de vivê-lo. E, no entanto, a pressão da escola para que as crianças "leiam sozinhas" depois de alfabetizadas faz com que adultos deixem de ler para os filhos, pensando que poderiam retardar o processo ou tornar as crianças "preguiçosas". Quando continuamos compartilhando a leitura, o que acontece na realidade é o contrário, o hábito se consolida, e os pequenos se tornam leitores mais competentes.
BB: Nas escolas, as crianças têm livros obrigatórios. Elas poderiam participar da escolha desse acervo? Como ajudá-las a escolher melhor literatura em casa e na escola?
Lara: Não sou muito a favor das leituras obrigatórias, a menos que haja uma razão poderosamente literária para isso. Em geral, o que acontece é que essas leituras são escolhidas mais por interesses comerciais ou dos adultos do que por interesse literário para a infância. Apesar da minha avidez leitora quando criança, odiava essa imposição para ler determinado livro. Prefiro oferecer às crianças uma lista ampla de leituras onde possam escolher e, em outras vezes, deixar que frequentem a biblioteca e que elejam suas leituras sozinhos. Na minha casa, por exemplo, tinha um pacto com meus filhos: nos alternávamos na escolha do livro que íamos ler em voz alta. Uma vez lidos três capítulos, qualquer um podia exercer o direito a veto se algum dos membros da família não estivesse gostando da leitura escolhida. Também seria interessante fazê-los partícipes nas escolhas do acervo da biblioteca: se aprendem a avaliar os critérios de seleção, escolherão melhor que os adultos, de acordo com seus interesses. Sou favorável de deixar as crianças vetarem aqueles livros da biblioteca que lhes parecem leituras ruins, desde que saibam argumentar nesse sentido.
BB: Quais são os principais critérios para se escolher livros literários para crianças?
Lara: Qualidade literária do texto, qualidade artística das imagens, diálogos enriquecedores entre texto e imagem, veracidade e rigor no caso dos livros informativos, verossimilhança e credibilidade em ficção, que não haja intenção moralizadora nem educativa, fugir de histórias e personagens estereotipadas... E confirmar nossas escolhas diretamente com as crianças.
BB: Por que é importante ter critérios, fazer esse trabalho de curadoria?
Lara: As bibliotecas (públicas, escolares e familiares) têm capacidade limitada de espaço, pressuposto para a compra de livros. Isso nos obriga a realizar uma seleção entre os livros que se publicam e eleger qual se tornará parte de nosso acervo. Nossos objetivos devem ser atender as diversas necessidades dos possíveis leitores, oferecer a maior variedade possível de obras de qualidade para todos os gostos. Para tanto, precisamos nos perguntar quais são nossos critérios, tanto os conscientes quanto os inconscientes.
BB: Como é seu processo de curadoria em sua loja de livros infantis? Pode compartilhar um pouco
dessa experiência conosco?
Lara: Na livraria [
El Bosque de la Maga Colibrí], nos acontece o mesmo: não podemos ter todos os livros. Na Espanha, no geral, o que domina o mercado são as novidades. No entanto, na
Bosque, desde o começo decidi que era mais importante para mim ter uma livraria com um acervo estável de livros que se consideram imprescindíveis - ainda que não sejam os mais vendidos. Quando recebemos livros novos, como trabalhamos habitualmente com crianças em escolas e bibliotecas, podemos "colocá-los à prova" diretamente com elas. Se funcionam, incorporamos ao nosso acervo permanente. Claro que, então, há o trabalho de formação dos adultos que compram, que têm de confiar em nosso critério, mesmo que aqueles livros não sejam os que comprariam aos pequenos (porque as ilustrações são ousadas, porque têm pouco texto, porque lhes parece pouco infantil...). Quando levam um livro para casa, para a escola e/ou biblioteca e comprovam que interessa às crianças e as motiva a ler, se tornam clientes fiéis.
"É importante buscar também, no entanto, a maior diversidade possível, para que cada criança possa encontrar esse livro em que reconhecer-se, em que construir-se"
BB: Pode compartilhar conosco um pouco do processo criativo de Maya & Selou? Em que se
inspirou? Em que infância se inspirou?
Lara: O início do livro teve muito de brincadeira. Uma ideia que rondava minha cabeça em busca de uma estrutura em que pudesse funcionar. Quando encontrei o formato, fiz um pequeno roteiro, sem saber muito bem o que queria contar exatamente. Pensava na diversidade da infância: como duas crianças da mesma idade podem ser tão diferentes, tanto por seu desenvolvimento quanto pela personalidade, ainda que aparentemente estejam brincando da mesma coisa, fazendo as mesmas coisas. É a magia do jogo simbólico, em que a ação pode ser a mesma, o brincar pode ser o mesmo, mas o pensamento é muito diverso. De certo modo, acredito que queria - talvez não tão conscientemente - revelar aos adultos o mundo interior tão rico e complexo das crianças, muito além de sua autonomia, de sua etapa de desenvolvimento, do que nos mostram com suas ações. Queria revelar o quão difícil se torna apreciar as crianças pelo pouco que escutamos, pelo pouco tempo que nos dedicamos a elas. Trabalhar com a ilustradora María Pascual [de la Torre, que assina o livro com Lara] foi maravilhoso: logo se somou ao projeto e passamos três anos intensos de criação conjunta, de conversações intermináveis sobre personagens, representação da infância, ritmo, brincadeira... até que conseguimos terminar o livro.
BB: Que livros, filmes, artes, artistas, experiências te inspiram e como essas inspirações estão
presentes na sua curadoria, na sua relação com a literatura infantil, nos seus livros?
Lara: Creio que todas as leituras que fazemos, as experiências culturais que vivemos são bagagens das quais não podemos nos separar. Vão se somando e tecendo-se com nossas experiências vitais; nos formam como pessoas e também como profissionais. Às vezes, nem somos conscientes de nossas referências. Há autores e atristas que admiro muito, mas também pessoas que conheço me servem de inspiração. Paisagens, odores, sabores... é um conjunto.