Desde pequenas, as crianças vivem num “ecossistema ficcional”, em que há narrativas permeadas por diferentes linguagens. “É um ecossistema, é um bosque onde há literatura, cinema, música. A música às vezes é narrativa, às vezes não. A literatura às vezes é em papel, às vezes é uma história contada por um narrador oral. E aí há toda a coisa digital, para enriquecer o contato que as criaturas têm com a ficção.” Nesse bosque, a ficção digital é só "um animal a mais", que ainda tem de encontrar o seu espaço para conviver em harmonia com os outros tipos de arte.
Essa é a leitura do pesquisador Lucas Ramada Prieto, estudioso da ficção digital na Universidade Autônoma de Barcelona e no Gretel, grupo de estudos sobre literatura infantil e juvenil dirigido por Teresa Colomer. Ele participou na última quinta-feira (15) do Seminário Arte, palavra e leitura na primeira infância, realizado pelo Sesc e pelo Itaú Social, com curadoria do Instituto Emília e da Comunidade Educativa Cedac. Defendeu a importância da leitura crítica das narrativas digitais, além da mediação junto às crianças desde cedo, a partir dos dois anos de idade.
Foto publicada pela revista Emilia; Lucas Ramada durante seminário
Afinal, "uma narrativa é uma narrativa", ele explica. A diferença entre essa nova linguagem e as demais é a sua constante transformação. Uma página de um livro sempre será fisicamente a mesma. Na ficção digital, a história varia de acordo com inúmeros fatores, a começar pelas escolhas do leitor. "São narrativas em que talvez não haja uma história fixa, mas eu que tenho que encontrá-la, que buscá-la", diz Lucas, que cultiva a página de Instagram @estonovadelibros, projeto que resultou do seu doutorado, espaço em que seleciona e recomenda obras digitais e infantis de qualidade.
Foto publicada pela revista Emilia; palestrantes durante conversa sobre mundo digital e infância
Para entender essa nova linguagem, o pesquisador sugere que a exploremos, enfrentando o medo natural de algo ainda desconhecido, para então podermos construir uma curadoria dessas obras, uma leitura crítica, uma mediação consistente e um enriquecimento no universo cultural das próximas gerações. Enquanto esses espaços não estão consolidados, Lucas aposta na participação em comunidades virtuais para conhecer o que está sendo criado e tentar compreendê-lo. Cita o Twitter como a sua plataforma preferida para esse tipo de interação. A ficção digital é complexa, já que envolve ao mesmo tempo música, cinema e jogo.
A seguir, confira entrevista com o pesquisador, realizada após sua participação no seminário.
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Como você sente e lida com essa resistência ao digital que as pessoas ainda têm, inclusive educadores?
Lucas Ramada – Temos que entender que há quinhentos anos de história do impresso, do livro. E agora, em dez, quinze anos, de repente, tudo é digital. Uma parte do aprendizado de nossas vidas é o que vivemos. E o que que vivemos também é cultural, histórico. Portanto, há pessoas que nasceram em um entorno culturalmente impresso e que o digital é novo. Se é novo, as pessoas não entendem e, se não entendem, têm medo. Portanto, é normal. Não fico bravo, mas tento explicar. E quando elas entendem, se reconhecem. O digital é fácil, porque no final a relutância, o medo, é desconhecimento. Quando veem um vídeo como os que trouxe no seminário, as pessoas percebem que ficção digital é ilustração, é música, é jogo. As pessoas entram nisso sem nenhum problema.
E como pais e como educadores podem fazer essa mediação da ficção digital?
Lucas Ramada – É igual [a mediação do livro], mas é um pouco diferente. É igual, porque você está fazendo mediação literária, é a mesma coisa. Trata-se de compartilhar o que você gosta, de falar, de fazer perguntas, de escolher obras boas e ruins. Nesse sentido, é o mesmo. Mas você tem que entender que as linguagens utilizadas são diferentes e que muitas vezes não as conhecemos.
Poderia falar um pouco sobre as potencialidades das narrativas digitais? Quais são as similaridades com os games, com o cinema?
Lucas Ramada – Uma narrativa é uma narrativa, te conta algo. A diferença é que a narrativa, normalmente, é linear. Começa em um ponto A, acaba em um ponto B, e sempre seus pontos intermediários são iguais. Se eu abro um livro na página 25, ela vai ser sempre a mesma. Na obra digital não é assim por muitos motivos. Como eu participo da história, pode-se conhecer diferentes caminhos, ou os fragmentos podem se organizar de diferentes maneiras, ou a história pode mudar. Claro, as possibilidades são muitas, são narrativas em que talvez não haja uma história fixa, mas eu que tenho que encontrá-la, que buscá-la. Talvez seja uma narrativa que me faça definir o futuro dela, como os videogames, em que você é um personagem ativo e vira parte dela. Mas também tem aquelas que o dominam totalmente e que você não pode fazer nada, pois vão mudando. São novas formas de contar histórias, mas que também requerem novas habilidades de leitura. Encontro muitas professoras para quem você mostra essas experiências; elas ficam como se estivessem com medo. Portanto, temos de treinar. Temos de crescer como leitores e desenvolver estratégias específicas de leitura.
E como esse tipo de leitura pode ajudar no desenvolvimento da cognição da criança na primeira infância?
Lucas Ramada – De zero aos dois anos, consideramos que não [é indicado]. Mas depois temos que introduzir essas leituras como uma parte a mais do que eu chamo de ecossistema ficcional, porque tendemos a separar o todo e não é assim. É um ecossistema, é um bosque, é uma selva onde há literatura, cinema, música. A música às vezes é narrativa, às vezes não. A literatura às vezes é em papel, às vezes é uma história contada por um narrador oral. E aí também há toda a coisa digital, para enriquecer o contato que as criaturas têm com a ficção, que no final é o mesmo. É um animal a mais no bosque. É simplesmente encontrar um espaço onde não incomode as outras coisas, para que se possa conviver tudo junto.
Existe algum espaço em que as pessoas podem encontrar obras de qualidade para apresentar às crianças?
Lucas Ramada – Tenho um canal no Instagram que se chama Esto no va de libros, em que seleciono coisas. Mas há um problema de que as lojas virtuais são complicadas. Têm coisas demais. Eu vejo tudo, vou escolhendo e recomendando. Também se pode pertencer a uma comunidade de jogadores ou leitores. É muito rico. Eu aprendo muito no Twitter porque tem muita gente jogando muitas coisas. Às vezes, em uma perspectiva diferente que me faz pensar sobre isso. O que eu mais gosto quando leio um livro não é a leitura, mas é o momento posterior de falar com alguém sobre ela. Portanto, o que se pode fazer é pertencer a uma comunidade, e animo as pessoas a participar dessa comunidade de leitura digital, de jogo, para aprender. No final, talvez, depois desta entrevista, eu pergunte o que você gosta de jogar, e você me dirá um jogo que não conheço. Se trata disso, de conhecer os mediadores, os críticos, mas também de pertencimento comunitário.