Uma heroína em busca de sua identidade

24/04/2018

 

Aimó, a menina que ninguém sabe quem é. Essa é a heroína criada pelo escritor e sociólogo Reginaldo Prandi em seu último lançamento, que leva o nome da pequena africana trazida como escrava para o Brasil. Separada de sua família, morre ainda criança. Sem grandes feitos em vida e sem uma família para recordá-la, chega ao Orum, plano dos mortos e dos orixás, e descobre que não pode voltar ao Aiê, plano dos vivos, até descobrir a sua identidade. A partir de então, sai em uma jornada em busca de seu orixá.

 

 

A narrativa acontece no contexto do candomblé, religião que Reginaldo estudou quando trabalhou no Cebrap, instituição criada em 1969 onde atuavam professores universitários afastados de seus trabalhos pelo AI-5. Estava no início da carreira. Mais tarde, na livre docência na Universidade de São Paulo, retomaria o tema da sociologia da religião, sua especialidade. Escreveu o clássico Mitologia dos Orixás e, mais tarde, adentraria o universo da literatura infantil. Trouxe alguns mitos às crianças, inicialmente em uma trilogia: Ifá, o adivinho; Xangô, o trovão e Oxumarê, o arco-íris.

 

 

Agora o autor busca discutir a identidade a partir dessa perspectiva. “Aimó é o negro brasileiro buscando a identidade que foi roubada dele pela escravidão, que lhe tirou a família, a origem, o nome, a crença, a própria língua”, conta o escritor sobre o livro, que aproxima o jovem leitor do universo dos orixás. “Aimó é o negro na construção da cultura brasileira.”

Mistura de “tradição e invenção”, como aponta o escritor em nota no livro, a obra tem cuidados sutis. Cada capítulo do livro, por exemplo, tem seus temas principais prenunciados por desenhos que marcam um odu (“capítulo do conjunto dos poemas de Ifá; sinal do destino”). Ao final da obra, uma tabela com cada odu e a quais orixás ele remete ajuda o leitor a se localizar na narrativa, que segue a estrutura do oráculo.

 

 

O autor também apresenta o leitor a personagens caros ao universo do candomblé, como os orixás Ifá e Exu, verdadeiros guias da menina de identidade perdida. Na narrativa, Exu é mostrado como orixá esperto, atrapalhado, zombeteiro, guloso, intrometido, nada relacionado à figura diabólica com a qual por vezes é confundido. “Exu é um mensageiro. Só que ele leva as mensagens boas e as ruins, e cobra para fazer o serviço dele, porque ele é um carteiro. Por isso sempre foi visto como uma figura esquisita, identificado com o diabo. No livro, não.”

 

 

Se o autor acredita que a literatura possa mudar de alguma forma esse preconceito? “Individualmente, não. Mas se você pensar na obra como elemento de uma cultura mais ampla, se incorporado na cultura corrente, acho que sim”, afirma o sociólogo.

Confira a seguir um bate-papo com Reginaldo Prandi.

 

Como nasceu o livro Aimó?

Reginaldo Prandi – Aimó teve uma trajetória muito difícil. Foi feito inicialmente a pedido da Cosac Naify. Quando eu fiz Os príncipes do destino, tinha feito um contrato para dois livros. Então trouxe a ideia de Aimó. Faz uns três anos mais ou menos. Sei que fomos produzindo o livro, ele já estava diagramado, todo pronto para ir para a gráfica e ser lançado dali a dois meses quando a Cosac Naify fechou. Foi quando eu tive uma reunião na Companhia por outro assunto e contei que estava com esse livro abortado. Levei [os originais] para a editora, e eles disseram que iam publicar e que gostaram muito das ilustrações. Mudaram toda a diagramação, mas recontrataram o ilustrador, o Rimon Guimarães.

O livro estava pronto quando a Júlia [Schwarcz] leu com as filhas dela, e falou "Olha, o livro está ótimo, mas eu não concordo muito com o último capítulo". Eu falei: “Eu, nesta altura, também não concordo”. Reescrevi o último capítulo e cheguei mais perto de onde eu queria. Foi até bom que ele foi abortado, que saiu em uma versão de que gosto mais. E ainda fiz um anexo falando como funciona o oráculo. Essa é a história de Aimó, é um livro que foi abortado e que renasceu, exatamente como aconteceria com a personagem.

 

E quem é Aimó?

Reginaldo Prandi – Aimó é um africano nascido no Brasil que não sabe quem é. Pode ser qualquer um de nós. Pode ser um africano porque os primeiros humanos foram africanos, mas, na verdade, pode ser qualquer um. Aimó é uma pessoa em busca de si mesma, que não sabe quem é, mas que precisa saber a sua identidade porque é a forma que ela tem de sobrevida, de continuar a viver. Aimó é o negro brasileiro buscando a identidade que foi roubada dele pela escravidão, que lhe tirou a família, origem, o nome, a crença, a própria língua. O escravo rapidamente perdia a sua língua original. A primeira coisa feita com um escravo era dar a ele um nome cristão. Aimó é o negro na construção da cultura brasileira. É alguém que se perdeu, que perdeu suas origens. Porque nós, brancos, nós sabemos se somos italianos, sírios, portugueses ou alemães, mas o negro não sabe. Sabe que é africano. É a mesma coisa que toda a nossa ideia de identidade se resumisse ao fato de que todos nós sabemos que somos europeus. É uma contradição muito grave porque, ao contrário de nós, eles eram muito diversificados e as fraternidades deles eram fraternidades muito específicas.

 

E como foi criar personagens fictícios a partir de entidades que realmente existem no candomblé? 

Reginaldo Prandi – Os personagens sempre agem na ficção, sobretudo Exu e Ifá, que vão levar Aimó pelo mundo. Agem sempre de acordo com o estereótipo, não fogem daquilo que a tradição reza. Exu é sempre muito esperto, atrapalhado, zombeteiro, guloso, intrometido. O Ifá é aquele que acha que sabe tudo, que gosta de ser levado a sério e que fica bravo quando alguma coisa não sai do jeito que ele quer. A ideia também foi mostrar que Exu não tem nada a ver com o diabo, como as pessoas dizem. Não, Exu é um mensageiro. Só que ele leva as mensagens boas e as ruins, e cobra para fazer o serviço dele, porque ele é um carteiro. Por isso sempre foi visto como uma figura esquisita, identificado com o diabo. No livro, não.

 

Você acredita no poder da literatura para derrubar preconceitos como esse?

Reginaldo Prandi – Individualmente, não. Mas, se você pensar na obra como elemento de uma cultura mais ampla, se incorporado na cultura corrente, acho que sim.

 

Já viveu algum caso de intolerância em relação aos seus livros?

Reginaldo Prandi – Já tive livros queimados em praça pública em uma cidade do sul da Bahia. Isso porque a diretora, a professora e a bibliotecária eram evangélicas, e elas receberam do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) um pacote, viram aquilo que era para distribuir para os alunos e, quando abriram as caixas, só tinha ‘coisa do demônio’. Acho que era a trilogia Ifá-Xangô-Oxumarê. Abriram todas as caixas, separaram os livros, jogaram-nos na rua, em frente à escola, e tocaram fogo. Depois foram processadas porque estavam queimando patrimônio público. Não sabemos se a intolerância religiosa aumentou ou se foram os movimentos e as iniciativas que ganharam uma maior consciência de que têm de reagir. Acho que as duas coisas vêm juntas. Embora algumas denominações mais antigas já estejam aprendendo que têm de respeitar a diversidade, as igrejas mais novas são mais agressivas. Acontece que os terreiros também têm sido mais agressivos no sentido de se defender mais.

 

Poderia explicar o contexto em que a história se passa do ponto de vista religioso?

Reginaldo Prandi – Segundo a concepção do candomblé, nós temos pelo menos três almas: a primeira é o orixá, que representa aspectos da natureza e que depende da linhagem da pessoa. Na África, você herda o orixá do seu pai, que era do seu avô, do seu bisavô, e assim por diante. Você tem ainda um segundo orixá, que é o da sua mãe. Como as famílias são poligínicas, os homens têm diversas esposas, os irmãos têm o mesmo orixá principal, mas não necessariamente o segundo orixá, porque podem ser filhos de mães diferentes. Essa ideia foi destruída na escravidão, em que o escravo não sabia mais de onde ele vinha, qual era a sua origem. Era impossível saber quem era você, uma questão de identidade. A religião resolveu esse problema ritualmente com o oráculo. A mãe de santo joga os búzios e diz o seu orixá. Foi uma forma de a religião resolver esse problema. Existe a segunda alma, que representa a continuidade social das pessoas (a alma que reencarna). A terceira alma é o ori, que é a sua individualidade. Representa a sua cabeça, as suas decisões, o seu temperamento. Essas três almas atuam conjuntamente para formar a pessoa. Os ritos do candomblé propiciam a melhor integração possível entre as três dimensões, inclusive porque elas podem ser conflitantes.

No candomblé, para renascer, você não pode ser esquecido. Como você não é esquecido? Tendo uma família grande, tendo feito coisas importantes. Mas a Aimó era escrava, não tinha família, morreu criança. Não pode fazer nada porque não deu tempo, não sabia de onde vinha. Estava condenada a não renascer, a viver em um mundo sem prazeres. Esse é o grande drama dela.

 

Poderia contextualizar o surgimento das religiões afro-brasileiras no Brasil?

Reginaldo Prandi – A primeira grande importação de escravos é de origem bantu, do sul da África, incluindo Angola, Congo e até mesmo Moçambique, que é do outro lado do continente. A primeira presença negra na cultura brasileira é bantu, que deu origem a muitos costumes brasileiros. Enriqueceu muito a língua portuguesa falada no Brasil, com palavras, por exemplo, como “moleque” e “bunda”. Eles eram trazidos para trabalhar no campo – na cultura da cana e nas minas. Viviam nas senzalas, nas fazendas, no interior, e sob o controle e o domínio da Casa Grande. Eram sempre muito pressionados a assimilar o mais rápido possível a religião católica. Depois vieram muitas outras etnias.

Nos últimos 60, 70 anos do tráfico, os grupos preferenciais que eram trazidos ao Brasil eram de povos iorubás e uma fração um pouco menor de um povo vizinho chamado fon, além de outras etnias próximas. Esses escravos iorubás vieram em uma época em que havia muitas mudanças no regime da escravidão. Primeiro que eles vinham para trabalhar nos serviços urbanos, não eram levados para trabalhar nos campos e nas minas, mas em atividades urbanas, como pedreiros, carpinteiros, carregadores, amas de leite. Todo trabalho urbano manual era feito por escravo, já que era considerado uma desonra para o branco. E o trabalho escravo não era voltado para o seu dono como o escravo rural, que trabalhava na fazenda ou na mina. O escravo urbano trabalhava para quem precisasse da habilidade dele e cobrava pelo serviço. Eram chamados de “escravos de ganho” porque ganhavam para os seus donos. Não moravam mais na propriedade dos patrões. Os patrões moravam nos bairros aristocratas da cidade. Os escravos moravam em bairros distantes, tinham as suas próprias igrejas católicas, tinham seus próprios pontos de encontro. Passaram a ter uma mobilidade urbana que o antigo escravo da senzala não tinha. Tinham que circular na cidade e tinham uma capacidade de se organizar, de se conhecer. É aí que a religião africana começa a se organizar. É aí que se funda a religião dos orixás com uma presença grande de iorubás e de jejes, que falavam uma língua similar e que tinham uma religião muito parecida.

Os bantus também organizaram as suas religiões, mas não tinham na África uma religião organizada como a dos iorubás, não tinham um panteão organizado. Cada aldeia tinha o seu modo de ser. Eram divindades ligadas à terra, então adotaram divindades locais. Como a religião era de antepassados ligados à terra, adotaram divindades indígenas, dando origem ao culto dos caboclos, que vai ser o candomblé de caboclo, o candomblé bantu, que depois vai dar origem à umbanda. Como os orixás tinham muito prestígio no mundo negro, eles acabam também adotando os orixás, mas com nomes bantus.

 

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