Quem eram as mulheres que escreviam contos de fadas?

14/05/2018

 

Era uma vez uma francesa chamada Madame D’Aulnoy. Assim como outras aristocratas do século XVII, ela gostava de ouvir os contos populares que ressoavam nas bocas de suas cozinheiras e das criadas que cuidavam das crianças da casa. Passou a escrevê-los na forma de narrativas longas e com mais complexidade. Chamou suas histórias de “contos de fadas”. Duquesas, condessas e marquesas da época passaram a escrever esse gênero, já que a vida de mulheres aristocratas lhes proporcionava tempo para a dedicação necessária. Ficaram conhecidas como “as preciosas”.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Foi apenas alguns anos depois, na década de 1690, que Perrault percebeu a potência que essas histórias poderiam ter para a escolarização das crianças e decidiu fazer a sua própria compilação. Contos da mamãe gansa ficou então conhecido como um marco nesse tipo de coletânea. Surgiram os trabalhos dos Irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen. As mulheres que teceram essas histórias, por sua vez, caíram no esquecimento.

Quem resgata essa memória é a pesquisadora Susana Ventura. “Em qualquer livraria do Ocidente, 70% do acervo é igual. Se eu for procurar contos de fada, vou achar primeiro os irmãos Grimm, segundo Perrault e, com um pouquinho menos, vou achar o Hans Christian Andersen. Não vou achar mais nada.” Os folcloristas locais terão vez apenas em seções de antropologia ou folclore. Mesmo assim, apenas nomes masculinos aparecem. “A minha possibilidade é conversar sobre as obras dessas mulheres, o que está editado no Brasil e o que não está, mas que eu posso mostrar a partir de traduções que eu mesma fiz.”

Ela conta que, no Brasil, há apenas uma obra que contemple essas escritoras do século XVII. É A Bela e a Fera, da editora Zahar. Das histórias que permaneceram em nosso imaginário fixo, como Rapunzel, João e o Pé de Feijão e João e Maria, essa foi a única escrita inicialmente por mulheres. A obra traz duas versões da história, contadas por Madame de Villeneuve e Madame de Beaumont, esta última sendo a versão mais famosa, utilizada como base para a popular animação da Disney.

Capa de A Bela e a Fera na versão de texto original e edição de luxo

A Bela e a Fera em edição de Clássicos da Zahar

 

Contos de fadas feministas

Nas últimas décadas, no entanto, outras mulheres têm se dedicado a recolher essas histórias. Como explica Susana, “a história dos contos de fadas é a história das edições que temos dos contos de fadas”. No mundo moderno do século XX, um exemplo de edição é o trabalho realizado pela escritora britânica Angela Carter, 103 Contos de fadas, publicado no Reino Unido em 1992, ano de falecimento da autora. Na sua última obra, ela traz contos populares dos mais diversos países em que a mulher ocupava o lugar de protagonista da história, fosse retratada como boa ou má. Não alterou nenhuma das histórias trazidas nessa coletânea.

Outra obra que traz essa mudança de perspectiva dos contos populares é Chapeuzinho esfarrapado e outros contos feministas do folclore mundial, organizado por Ethel Johnston Phelps em uma época contemporânea ao trabalho de Carter. A abordagem de Ethel já é diferente: ela reconta as histórias a partir de critérios feministas, evitando estereótipos como o da mulher bonita.

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A pesquisadora explica que autoras como Angela Carter e Ethel Phelps só ganharam expressão porque são de um momento social diferente. “No Brasil, por exemplo, achamos os contos da Marina Colasanti surpreendentes. Só que apenas a enxergamos porque ela está perto, viva agora mesmo. Eu mesma não percebia isso antes de começar essa longa investigação. Houve pessoas antes dela que também fizeram contos inusitados, só que essas pessoas desapareceram.” Por isso o esforço de resgatar essas histórias desaparecidas, de mulheres que não puderam usufruir das lutas do movimento feminista. “Coincidentemente ou não, eu imagino que não, a maior parte dessas mulheres nós nem conhecemos. Não há edição no Brasil. Foram publicadas à época, chegaram ao formato livro em seus países, mas isso não fez tradição.”

Um exemplo é o trabalho de Laura Gozenbach em Contos sicilianos, publicado na Alemanha na segunda metade do século XIX. A história, traduzida pela própria pesquisadora, é de uma menina que é estuprada pelo príncipe e como ela lida com essa violência. Como hoje essa literatura costuma ser voltada para crianças e jovens, acontecimentos fortes como esse são editados, reforçando ainda a máxima de que a história dos contos de fadas é a história da edição dos contos de fadas. “As mulheres, ao menos aquelas que me interessam mais, são muito menos sutis em relação a isso”, diz. “Muitas delas deixam em suas obras um aspecto grande dessa dureza do mundo, da complexidade do humano.”

 

(Texto atualizado em 12/4/2022)

 

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