Meio-oeste dos Estados Unidos, um homem telefona para o departamento de artes de uma universidade. Pede por uma artista disposta a visitar a prisão, onde ele se encontra desde os 17 anos de idade e ficará para o resto da vida. A artista, por sua vez, era Charlotte Alston, hoje contadora de histórias profissional que visita São Paulo para participar do 8o Boca do Céu – Encontro Internacional de Contadores de Histórias. Na época, ela nunca tinha contado histórias em um centro de detenção.
Ao final da visita, um presente dos presos à artista: poemas escritos pelos grupo. “Acredito que as histórias podem servir para validar nossa humanidade comum e reconhecer os desafios que os seres humanos enfrentaram ao longo do tempo”, conta Alston, que ficou emocionada com a homenagem. É claro que contar histórias não é uma panaceia para os problemas do mundo, como ela bem pontua. “Mas, sim, acredito que a partilha de histórias pode ser um meio de quebrar barreiras artificiais, revelando nossos pontos comuns como seres humanos no mesmo planeta”, defende.
Isso tudo com uma ressalva: contar histórias é uma atividade que requer um contador e um ouvinte. É preciso que haja alguém do outro lado disposto a ouvi-las “com ouvidos e corações abertos”. Tanto que decidiu espalhar a sua arte entre os mais necessitados de esperança. Foi até um campo de refugiados no norte do Senegal, uma experiência que pretende contar em seus encontros durante o Boca do Céu, evento com a curadoria de Regina Machado, autora de Nasrudin.
O que nos adianta sobre isso é a facilidade que teve em narrar histórias em muitos países africanos, onde as narrativas orais ainda guardam muita força na cultura. Ali, as crianças estão mais acostumadas a ouvir histórias. Esse é, aliás, um aprendizado que teve com o estudo das tradições africanas de narração de histórias, em especial com os griots da África Ocidental: “A importância de preservar, recontar e repassar a história – particularmente nos casos em que o impacto da colonização resultou em esforços para suprimir ou deturpar a história dos povos indígenas e deslocá-los com a versão do colonizador da história”.
Nos Estados Unidos, essa prática veio na voz dos tios de sua mãe, espalhados pelo país. Quando reuniam-se, as histórias que percorriam as conversas de família eram sempre animadas, engraçadas, coloridas e barulhentas, mostrando o que há de melhor no dialeto afro-americano sulista e na ancestralidade de sua família, que viveu os anos 1900 na zona rural da Virgínia.
Já na Namíbia, por exemplo, as histórias transmitidas de forma oral repassam também valores e ensinamentos. Entre o grupo étnico Ju/Hoansi, são os princípios de não-violência defendidos pelo povo que são transmitidos. “Muitas vezes, as histórias validaram a identidade e a conexão das crianças com o seu povo. Eles começam a ouvir as histórias e músicas quando chegam ao mundo”, explica Alston, cuja mãe musicista e pai literato logo a aproximaram das palavras, sons, sonhos e fabulação.
Leia a seguir o bate-papo que tivemos com Charlotte Alston.
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Você teve contato com a narrativa oral muito cedo. Com seis, sete anos, já decorava histórias e contava para as pessoas. Que lugar as histórias têm na sua infância?
Charlotte Alston – Uma vez que aprendi a ler aos 6 anos, li tudo o que pude. Minha mãe era musicista. Como organista e corista da nossa igreja, ela tocava piano e órgão de tubos. Ela nos expôs à música cedo, as aulas de piano começaram para cada criança lá em casa por volta dos seis anos de idade, logo depois que a gente aprendia a ler. Meu pai não tinha muito talento musical, mas tinha uma paixão pela linguagem, pela literatura e pela palavra falada. Adorava estar perto do meu pai – mesmo quando ele tentava reservar algum tempo para escrever. Abria a porta do quarto e me sentava no chão em silêncio, só para estar perto dele. Com o tempo, ele começou a ler em voz alta passagens de literatura e poesia. Um dia, ele me deu para ler um livro de poesia. Li várias vezes e o memorizei. Quando ele viu a rapidez com que memorizei os poemas, ele começou a escrever monólogos cômicos para eu aprender, assim como outras ‘histórias em forma de poema’. Comecei a recitar essas peças na igreja e em eventos da comunidade.
Minhas lembranças de ouvir histórias quando criança vieram de duas fontes. Uma eram as tias e tios da minha mãe. Eles viviam em vários estados diferentes, mas, quando se reuniam durante as férias em nossa casa ou na casa da minha avó, suas histórias de infância e juventude eram animadas, coloridas, engraçadas e BARULHENTAS! Eu amava o som do seu dialeto rural sulista afro-americano. Minha Tia Maggie tinha a risada mais alta que já ouvi! Aprendemos muito sobre a história da nossa família e nossa ascendência familiar e muito de como eram suas vidas na zona rural da Virgínia no início dos anos 1900, a partir de suas histórias.
A segunda fonte foi minha professora do segundo ano, a Srta. Alexander (mais tarde, Dra. Mitchell). Quando voltávamos para a sala de aula depois do almoço, ela costumava dizer: "Meninos e meninas, se vocês fizerem todo o seu trabalho – e façam-no em silêncio – vou ler para vocês alguns contos do Br’er Rabbit!". Fazíamos o nosso trabalho tooooodo – bem rápido! A Srta. Alexander então pegava da estante um livro gigante, puxava uma cadeira e começava a ler / contar sobre as travessuras de Br'er Rabbit, Br'er B'ar e todo o elenco de personagens! Digo “ler / contar” porque, embora ela estivesse lendo o livro, ela dava vida aos personagens com sua voz maravilhosamente expressiva! Ainda ouço a voz dela na minha cabeça.
Você não conta histórias apenas para crianças, mas também em lugares como prisões, centros de detenção e até em um campo de refugiados. Falando a partir do que você já observou, qual é a potência das histórias tradicionais na vida dessas pessoas, que passam por momentos tão difíceis?
Charlotte Alston – Minha primeira experiência contando histórias para detentos foi em uma prisão de segurança máxima em um estado do Midwest americano! Um homem que havia sido condenado à prisão perpétua aos 17 anos de idade telefonou para o departamento de artes da universidade onde eu estava em residência e perguntou se o artista estaria disposto a ir para a prisão. Ele conseguiu reunir homens que se alinhavam com vários grupos: caucasianos, latinos, americanos nativos e afro-americanos. Eles foram todos muito atenciosos e, no final da minha apresentação, “me deram um presente”. O homem condenado à prisão perpétua tinha pedido aos homens que escrevessem ou encontrassem algum poema e o recitassem para mim, como um presente. Foi muito emocionante. Acredito que as histórias podem servir para validar nossa humanidade comum e reconhecer os desafios que os seres humanos enfrentaram ao longo do tempo. Estou sempre atenta para incluir uma história que mostre o personagem encontrando e atravessando circunstâncias difíceis. Certa vez, no final de uma apresentação de contos em uma instituição para meninas, tivemos uma sessão de perguntas e respostas, e no final da sessão uma mão disparou no fundo da sala. A jovem parecia ter cerca de 15 anos de idade. Sua pergunta era: "Como é tocar o coração das pessoas?". Quanto ao campo de refugiados, acredito que as histórias são algo com o qual é fácil se relacionar – e em muitos países africanos, as crianças estão acostumadas a ouvir histórias. As histórias lhes permitem suspender temporariamente seus sentimentos de dor, perda ou incerteza – e simplesmente rir enquanto seguem as artimanhas dos personagens. Posso contar minha história sobre essa experiência no festival deste ano.
As histórias têm a capacidade de quebrar barreiras? Como funciona essa conexão?
Charlotte Alston – Não quero sugerir, de forma alguma, que contar histórias seja uma panaceia para os problemas complexos do mundo, mas, sim, acredito que o compartilhamento de histórias pode ser um meio de quebrar as barreiras criadas pelo homem e revelar nossas semelhanças como seres humanos no mesmo planeta. Mas é preciso que haja reciprocidade. Contar histórias requer um contador e um ouvinte. Quando nos reunimos para compartilhar nossas histórias, as conexões podem ser feitas facilmente se os ouvintes vierem com ouvidos e corações abertos. Dito isso, uma voluntária que me levou de escola em escola durante uma residência de uma semana no estado de Ohio, me ligou na última noite. Com uma voz um pouco trêmula, ela reconheceu que tinha preconceitos fortes em relação aos afro-americanos, mas, depois de ouvir minhas histórias ao longo da semana, ela disse: “Você me transformou”. Eu consideraria essa experiência como uma exceção, mas ainda assim a considero. Você nunca sabe o impacto que pode ter em seu ouvinte – se eles vêm com os corações abertos ou fechados. Eles nem sempre vêm até você e te dizem.
Você também estuda desde 1999 as tradições da África Ocidental de contar histórias. O que a tradição dos griôs tem a ensinar a nós, ocidentais? Quais foram os maiores ensinamentos compartilhados nesses anos de pesquisa?
Charlotte Alston – O que me vem à mente, em primeiro lugar, é a importância de preservar, recontar e transmitir a história – particularmente nos casos em que o impacto da colonização resultou em esforços para suprimir ou deturpar as histórias dos povos originários e substituí-las com a versão do colonizador. Além disso, as histórias eram o modo pelo qual os valores e costumes culturais compartilhados eram enfatizados e ensinados às crianças. Em alguns grupos étnicos, como o Ju’hoansi da Namíbia, seus princípios de não-violência são transmitidos através de suas histórias. Muitas vezes, as histórias validavam a identidade e a conexão das crianças com o seu povo. Eles começam a ouvir histórias e músicas assim que chegam ao mundo.
Você narrou histórias em muitas orquestras e tem a característica do ritmo bem marcado em suas apresentações. Como você vê a relação entre as histórias orais e a música? Essa característica sua vem também dos griôs?
Charlotte Alston – Acredito que o contato inicial com a música que meus irmãos e eu recebemos de minha mãe, combinado à escolha de meu pai de transmitir e nutrir em mim as sementes da narrativa, veio à tona na primeira vez em que me pediram para narrar com uma orquestra. Cada colaboração que faço, até hoje, é uma oportunidade de unir música e narrativa falada nos mais altos níveis artísticos. Ao longo da existência humana na terra, a música, a linguagem falada e a dança têm sido meios de expressão criativa e comunicativa – independentes umas das outras e em conjunto. Na tradição dos griôs da África Ocidental, a história era frequentemente contada em uma combinação de palavra falada, canto e acompanhamento instrumental. Hoje, como sempre, as crianças respondem imediatamente ao ritmo; a músicas e canções de pergunta e resposta. Os jogos infantis são cheios de música, ritmo e rima. Muitas vezes, nossa primeira experiência com música é a nossa mãe cantando uma canção de ninar logo depois que nascemos!
Você estuda diferentes instrumentos musicais africanos, como o djembe, a mbira, o shekere e a kora de 21 cordas. Como eles contribuem no momento de contar histórias? Como utilizá-los?
Charlotte Alston – Quando conheci a tradição oral da África Ocidental, quis explorar maneiras de incorporar alguns dos seus elementos tradicionais característicos à minha própria narrativa, oferecendo ao público americano a oportunidade de ter uma experiência com instrumentos tradicionais. Eu me interessei pela kora e, aos 50 anos (20 anos atrás!), conheci um professor – o falecido Djimo Kouyaté – que se dispôs a me aceitar como aluna. A música pode definir o humor de uma história ou impulsionar o ritmo. Pode ser usada para atrair e segurar a atenção dos ouvintes. A contadora de histórias norte-americana, Angela Lloyd, o coloca dessa maneira: “A música é a água para o barco da história”. Em algumas tradições, assim que a música começa, as pessoas do lugar já sabem qual história está prestes a ser contada. É importante ter certeza de que há um equilíbrio ao usar instrumentos ou músicas com narração de histórias. A música deve servir para melhorar o conto, não para dominá-lo.
O que significa contar histórias para você? Como essa arte pode reverberar nos momentos vividos por nós hoje?
Charlotte Alston – Eu me sinto grata por ter tido a oportunidade de passar uma parte da minha vida compartilhando histórias, envolvendo a imaginação, estimulando a curiosidade, transmitindo informações e fazendo conexões de ser humano para ser humano através desse meio. Cada vez que nos abrimos para compartilhar e ouvir histórias – sejam histórias tradicionais, sejam profundamente pessoais –, abrimos verdadeiras avenidas para a conexão humana e a compaixão.