Geotinta: da terra para a literatura infantil

21/01/2022

Vocês já ouviram falar de geotinta? É isso mesmo que o nome sugere: a tinta que vem da terra. Ainda que pareça novidade, o uso dos pigmentos da terra como material de pintura é uma técnica milenar, que nossos ancestrais utilizavam para representar e ressignificar suas experiências em cavernas, por exemplo. E foi com a geotinta que a multiartista visual pernambucana Ianah Maia criou as ilustrações do livro Uma aventura do Velho Baobá (Pequena Zahar, 2022), da escritora Inaldete Pinheiro de Andrade, que é potiguar e vive no Recife há mais de cinquenta anos.  

 

 

O personagem principal do livro é o Velho Baobá, que cruza o oceano, da África ao Brasil, para conhecer os parentes que acabaram vindo parar aqui. Para sua surpresa, Velho Baobá descobre que os baobás não foram bem recebidos nestas terras e, ainda hoje, enfrentam de tudo para sobreviver. Com a ajuda dos parentes que encontra um a um, a grande árvore vai chegando aos seus, cada um com uma questão: um deles fica espremido na calçada, outro, no meio de um muro e acorrentado, um terceiro vive na beira do rio assoreado. Mas, felizmente, apesar dos impedimentos, os baobás também conseguem florescer.

“Como é uma história que fala a respeito de conexões ancestrais, de diáspora, isso tem a ver com as pesquisas que eu ando fazendo no campo artístico, no meu trabalho mais autoral. Então, acho que conectou muito com o meu momento, com a fase artística que estou vivendo agora. Foi bem incrível poder fazer esse livro, eu fiquei muito satisfeita e muito feliz com o resultado”, contou a artista ao Blog.

 

Para fazer as ilustrações de Uma aventura do Velho Baobá, Ianah fez, primeiramente, um rascunho digital em sua mesa digitalizadora, desenhando diretamente no computador e utilizando como referência sua paleta disponível de cores de geotinta. “Foi uma simulação do que viria a ser a pintura final. Depois desse processo aprovado, eu passei para a parte da pintura com a geotinta diretamente no papel, que depois foi escaneado, digitalizados e, no computador, eu fiz os últimos ajustes, algumas correçõezinhas e intervenções digitais em algumas cores, que a autora sentiu que precisava ter mais”, descreve a ilustradora. “Então, a base geral é a geotinta, mas nesse livro temos também algumas intervenções digitais. O maior desafio técnico realmente foi manter a originalidade das cores e da técnica que eu utilizo e, ainda assim, fazer algumas alterações digitais, mas sem perder tanto da essência”.

 

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Cada terra tem a sua cor

Obtida a partir do barro e da argila, a geotinta tem tudo a ver com a temática do livro, trazendo a técnica milenar, tão ligada à geografia particular de cada lugar e à firmeza da terra que sustenta os baobás, também para a narrativa visual. E isso ainda se conecta à forma como a artista se relaciona com a natureza e com sua maneira de fazer arte. Isso porque a geotinta é um material sustentável, que gera poucos resíduos tanto na produção quanto no uso, além de ser acessível financeiramente. O material também potencializa os traços mais orgânicos da ilustração de Ianah, porque tem em sua textura e em suas cores irregularidades e variações por ser feita de terra.

 

“Ela foi se tornando uma das principais técnicas com as quais eu trabalho pela questão ecológica e pela viabilidade financeira, porque é uma técnica que vem do barro, tem a natureza como matéria-prima. A minha busca pela geotinta tem a ver também, para além de tudo, com minha autonomia enquanto artista, de não depender tanto da indústria para ter materiais para trabalhar, já que eu mesma fabrico as minhas tintas”, Ianah conta.

E, claro, por ser uma tinta que vem da terra, também carrega uma simbologia relacionada ao local de onde foi coletada. “Ela se tornou muito parte do meu trabalho também por uma questão de relação com os territórios, porque toda todas as tintas que eu tenho têm uma ligação muito forte com o lugar em que foram coletadas. Trazem uma história. A paleta que eu usei em Uma aventura do Velho Baobá foi quase que inteiramente coletada no Nordeste, então tem uma ligação muito forte com esta terra daqui”, relaciona Ianah.

 

Possibilidades ampliadas de criação

Da mesma forma, ela relata que, para uma arte urbana em um posto salva-vidas da praia de Boa Viagem, no Recife, coletou a terra da tinta na Ilha de Itamaracá. “Me foi solicitado que eu pintasse sobre a temática da ciranda, que é um ritmo tradicional da Ilha de Itamaracá. Então eu fui até lá fazer a coleta do barro que seria utilizado nesse mural, porque para mim fazia muito sentido que o território estivesse presente nessa referência a essa manifestação cultural que é tão típica desse lugar”.

Para a multiartista, outro benefício da geotinta é a paleta de cores mais limitada. Isso acontece porque as cores têm uma relação muito direta com os territórios de onde vêm. Ela explica que, “no Chile, por exemplo, se encontra uma cor mais azulada, um cinza meio azulado da terra que quase não tem ocorrência aqui no Brasil, por exemplo. Tem uma relação muito direta com a geografia do lugar, com o fato de ser uma região vulcânica, com os minérios presentes na terra, tudo isso influencia nas cores. Então cada lugar tem sua cor muito especial”.

Pode parecer que essa característica -da paleta ser mais limitada aos tons da terra local- engesse o processo de certa forma, mas Ianah explica que ela abre muito mais possibilidades criativas. Isso permite que ela explore formas de representação menos usuais: “Um mar que eu pinte não necessariamente precisa ser azul, ele pode ser roxo, por exemplo. Um céu que eu pinte pode ter uma outra coloração também. A gente está acostumado a se referir ao céu como sendo azul, mas ele pode ter infinitas cores, a depender do horário do dia”.

 

Como é produzida a geotinta?

Ianah faz coletas de barro poucas vezes ao ano, o que já garante a ela um bom estoque de tintas. “Eu faço coletas por onde eu passo. Muitas das cores que eu tenho foram coletadas na região metropolitana do Recife, porque é onde passei a maior parte do tempo desde que trabalho com a geotinta. Então, muitas das tintas eu nomeio de acordo com os bairros e lugares onde eu coletei, como a Várzea, Rua da Aurora, Aldeia. Às vezes essa coleta é feita por mim e às vezes eu ganho”.

Depois da coleta, ela faz um processo de diminuição da granulometria, peneirando e misturando o barro a um aglutinante, que pode ser cola ou baba de linhaça, por exemplo. “É uma tinta que dá um pouco mais de trabalho de preparar, visto que você tem que passar por todo o processo de diminuir a granulometria, de fazer as misturas. A tinta precisa ser misturada no momento em que vai ser utilizada, então eu não posso guardá-la pronta. Para algumas pessoas, isso dá muito trabalho, não é um benefício. Mas eu considero parte do processo criativo, inclusive: parar para pensar na paleta, fazer um uso racional dos meus materiais. É muito difícil eu desperdiçar as tintas que eu faço, porque faço na medida para o que vou precisar.”

Além disso, Ianah conta que a geotinta tem um ritmo muito próprio. “Precisa de um tempo de secagem completo para que eu veja o resultado. Ou seja, o barro, quando está molhado, é de uma cor; quando seca, fica de outra cor. E a mesma coisa acontece quando eu estou pintando com o barro, é preciso esperar secar completamente para ver o resultado. Não é algo que aparece já de cara, como uma aquarela, uma acrílica, um óleo. É uma técnica que requer muita paciência”, define a artista.

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