Literatura não é manual de boas intenções

11/06/2018

 

Políticas de incentivo à leitura, formação de professores leitores, o ensino da literatura na sala de aula, as narrativas e seu poder de desacato: esses são temas que permeiam as obras teóricas da brasileira Ana Maria Machado, que escreveu Pontos de fuga: conversas sobre livros (Companhia das Letras), e da argentina María Teresa Andruetto, autora de A leitura, outra revolução (edições Sesc). São também assuntos de uma amistosa conversa entre as duas escritoras, ambas vencedoras do Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantojuvenil.

Nas impressões trocadas pelas duas escritoras por e-mail, ambas comentaram as relações entre política, educação e leitura. “Cada vez menos acredito em burocratas que não leem, mas têm a obrigação ou a pretensão de ficar formulando políticas de leitura para governos”, afirma Ana Maria Machado. A autora que integra a Academia Brasileira de Letras também apresentou o que acredita ser uma distorção do mercado editorial nos últimos anos, remetendo ao cenário da literatura infantil brasileira desde a época da ditadura militar, e comentou as relações entre a literatura brasileira e as literaturas dos demais países da América Latina.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

A premiada escritora brasileira, autora de livros como A princesa que escolhia e O príncipe que bocejava, entre outros, questiona a tendência pela “publicação de textos uniformizados e aguados, medíocres e bem comportados, com objetivos comerciais dos modismos do momento, que não ousam desafiar os modelos impostos e se comportam como se literatura fosse apenas um veículo de boas intenções – não mais conservadoras, é verdade, mas superficiais e por vezes constrangedoramente simplórias”.

Já María Teresa Andruetto, autora de Por uma literatura sem adjetivos (editora Pulo do Gato), expôs algumas políticas públicas implementadas na Argentina, lamentando como também no país vizinho as iniciativas pontuais, individuais ou de pequenos grupos de professores, parecem tomar o lugar de políticas sistemáticas e duradouras de governo. Atuante na formação de professores e mediadores de leitura há mais de trinta anos, ela problematiza a relação entre arte e escola, espaço de “transformação social” e questiona as limitações de uma educação sistemática, que “tende ‘colocar na caixa’ certas formas de pensar e atuar”. Nesse sentido, defende o ensino de obras canônicas em sala de aula, mas de forma que elas não sejam uma “tumba, uma seleção inerte, rígida, que jamais se mova”.

A escritora argentina cita a “emboscada” ou “armadilha pedagógica” que coloca a literatura como produto utilitário, que “resulta de princípio ao fim autoritário, vertical, predeterminado, quando a literatura propõe uma interpelação ao outro, certo espaço “vazio” em que o leitor possa regressar, um silêncio provocador, um desvio do esperado que converta a essa leitura em um ato de liberdade e de resistência à uniformidade”.

Confira a seguir conversa completa entre as duas premiadas escritoras, Ana Maria Machado e María Teresa Andruetto.

María Teresa Andruetto – É muito forte (e algo que particularmente me interessa) no seu pensamento a relação entre política e arte, entre literatura e sociedade, e há a convicção de que tanto a escrita como a leitura estão atravessadas pelo ideológico e não podem entender-se fora daí. Nesse contexto, quero perguntar sobre essa relação entre política e literatura no campo dos autores e livros destinados às crianças e aos jovens leitores no Brasil. Como você vê essa relação no que se publica e se reflete hoje e se isso mudou com o tempo em um sentido ou em outro?

Ana Maria Machado – Creio que sim, essa situação se modificou de alguma maneira ao longo do tempo. Na década de 1970, durante a ditadura militar, era arriscado escrever certas coisas, combater o autoritarismo, defender a liberdade, a justiça e a igualdade. Os autores, no entanto, faziam isso com paixão e intensidade, e de forma criativa, com ironia, humor, metáfora, poesia. Muitas vezes os editores hesitavam em publicar ou simplesmente recusavam, por cautela ou sensatez. Mas fomos furando esses bloqueios, formou-se uma ponte com os professores que queriam essas obras. E os livros se vendiam bem, mais do que era esperado. Então fomos começando a ter editores que eram fracos em termos de catálogo infantil e juvenil, e autores que aproveitavam as brechas e se impunham, amparados num público entusiasmado. Fomos descobrindo ilustradores e crescendo juntos. Com a redemocratização e a posterior expansão de programas de bibliotecas, escolas e vendas aos colégios, os editores que passavam a atuar nessa área começaram a se organizar, a criar setores para influenciar em adoções e até na formulação de currículos, em vendas especiais com tiragens enormes. O que era inicialmente uma expansão muito positiva  e necessária começou a sofrer distorções, a focar exageradamente o mercado, a atrair grupos editoriais internacionais. Pequenas editoras foram engolidas,  houve fusões de todo tipo. E os autores de literatura foram tendo seu espaço reduzido frente ao crescimento de preocupações dirigistas, às vezes nitidamente importadas de experiências internacionais voltadas a mecanismos de se impor nas escolas – sobretudo espanholas. Os editores  (e sobretudo seus departamentos de vendas e de relações institucionais) foram ficando muito mais fortes que os autores. Paralelamente, o modelo norte-americano de melindres com o politicamente correto foi se impondo nos meios acadêmicos, às vezes ao ponto de se converter em censura e exercer uma pressão muito grande sobre o conteúdo ou a linguagem dos livros para adequá-los a propostas pedagógicas ou, simplesmente, evitar que se desviassem de modelos externos. Os grandes nomes autorais mantiveram seus espaços, mas tudo ficou muito difícil para os mais novos, forçados a obedecer ou ficar de fora. É claro que há exceções e novidades notáveis. Mas o risco de converter literatura em palavras de ordem se somou ao medo de melindrar diferentes setores e trouxe uma certa tendência à preferência pela publicação de textos uniformizados e aguados, medíocres e bem comportados, com objetivos comerciais dos modismos do momento, que não ousam desafiar os modelos impostos e se comportam como se literatura fosse apenas um veículo de boas intenções – não mais conservadoras, é verdade, mas superficiais e por vezes constrangedoramente simplórias. A instigação a refletir dá lugar a uma certa repetição previsível, o que é uma lástima.

Ana Maria Machado – Parece-me que um ponto crucial para a democracia é que a escola possa ser um espaço de construção de oportunidades igualadoras, como dizem Graciela Montes e você. Em nossos países, isso é fundamental. Mas, a meu ver, se os professores não são leitores, é quase impossível esse trabalho democratizador. Em sua opinião, que caminhos ou práticas poderiam ser incluídos na formação do magistério para incentivar o desenvolvimento de professores leitores?

María Teresa Andruetto – Na Argentina, há alguns anos, durante a gestão anterior do governo, foi implementada a jornada estendida em escolas públicas (duas horas agregadas para disciplinas artísticas, leitura, atividades físicas) e a ampliação da carreira de magistério, primeiro de dois a três anos de ensino superior, e logo de três a quatro anos, com o qual o primeiro favorece um espaço dedicado à leitura e o segundo permitiu ou ao menos possibilita uma maior e melhor formação em leitura e literatura dos futuros professores. Claro que aqui preciso fazer um desvio: a formação dos professores na Argentina é uma formação de nível terciário, não universitário, que está nas mãos de instituições diversas com níveis de formação também diversos (às vezes acentuados por condições geográficas ou institucionais) e ao mesmo tempo trata-se de um espaço de formação que, por encontrar-se fisicamente também em lugares separados das grandes cidades e pelo seu sistema de assistência às aulas (geralmente vespertino ou noturno), permite que pessoas provenientes de setores que não poderiam ter acesso a outras carreiras (basicamente mulheres, muitas são mães, que sustentam seus lares e provêm de setores econômico/sociais deprimidos) ingressem à formação de magistério. Isso que, em termos sociais de melhora das condições trabalhistas de muitas mulheres, em si mesmo é muito bom, tem como contrapartida que quem tem acesso aos estudos de magistério chegam, na maioria das vezes, com escassa condição leitora e nem sempre alcança o espaço de formação para criar essa consciência e salvar essa falta.

Quanto aos professores em exercício, necessitamos destacar a formação de uma sociedade leitora é/deveria ser uma questão de Estado, na busca de uma sociedade mais consciente de si, dos seus direitos e da sua condição no contexto social. Nesse sentido, é de se esperar que o Estado se comprometa a partir de um plano nacional e planos provinciais de leitura, seleção transparente, compra e fornecimento de livros de qualidade a todas as escolas do país, fornecimento de livros a partir da rede de bibliotecas populares e de outros programas de socialização de livros e leitura. Várias dessas coisas foram feitas nos primeiros anos de recuperação democrática (entre 1984 e 1986) e nos dois períodos mais recentes (entre 2005 e 2015), coisas que lamentavelmente neste momento do nosso país têm sido perdidas, não se voltou a fazer compras estatais de livros para as escolas e encerraram o Plano Nacional de Leitura (alguns planos provinciais de leitura substituem, outros também foram encerrados) e outros espaços de contribuição de livros e de formação gratuita estatal para os professores em exercício. As condições de trabalho dos professores (fechamento de escolas rurais com poucos alunos, ameaça de fechamento de escolas primárias no Delta, relocação de professores e alunos em novas zonas com o consequente prejuízo para os transferidos, questões todas, além das lutas por melhores salários, que estão na cabeça das reclamações sociais neste momento do país) e muito especialmente a remuneração se tem visto, nestes dois últimos anos muito desvalorizada (um professor ingressante ganha um salário que está bastante abaixo da linha da pobreza), com o qual pouco poderia hoje um professor comprar por sua conta livros para a sua capacitação e muito menos pagar espaços de aperfeiçoamento e atualização. De modo que, voltando à sua pergunta, querida Ana Maria, é difícil conceber melhoras sem uma intervenção do Estado Nacional e dos Estados provinciais. Quase tudo o que se faz nas escolas (e em termos humanos individuais ou de pequenos grupos, poderia dizer que se faz muito) é paliar essa retirada do governo com esforços individuais, sempre a ponto de acabar, de perder-se.

María Teresa Andruetto – Há nos seus ensaios referências ao lugar que a literatura brasileira ocupa no contexto da América do Sul, outra língua, outra história, uma literatura frequentemente afastada do que se estuda como "literatura latino-americana" e, contudo, uma literatura de um vigor, uma presença e uma capacidade de inovação muito forte. A pergunta seria como acredita que se poderiam acrescentar pontes com outras literaturas da América Latina, que políticas deveriam acontecer, que ações você acredita que poderiam ser levadas adiante tanto do Brasil para o resto dos países da América Latina como dos países da América Latina de língua castelhana para o Brasil.

Ana Maria Machado – Precisamos nos traduzir cada vez mais para nos conhecer melhor. Mas não sei que políticas oficiais poderiam ajudar nisso. Participei como consultora em algumas Conferências de Cumbre Iberoamericanas, em que se conseguiu que fossem feitas recomendações, em documento oficial, para haver maior intercâmbio de livros entre nossos países e inclusão de literatura infantil na formação dos professores. E também esses documentos insistiram na importância de se reconhecer o direito da leitura de literatura e à informação para todas as crianças do continente. Na prática, não passaram de palavras vazias. Nenhuma dessas recomendações, em qualquer de nossos países, jamais se converteu em medida prática. Cada vez menos acredito em burocratas que não leem, mas têm a obrigação ou a pretensão de ficar formulando políticas de leitura para governos. Seus interesses, na melhor das hipóteses, é apenas em uma imagem marqueteira ou na apresentação de estatísticas que podem impressionar, mas não têm qualquer condição de promover uma modificação que melhore a realidade.

Ana Maria Machado – Conhecer o cânone é um direito inalienável de cada cultura, e todo cidadão deve ter a oportunidade de se aproximar dele. Ao mesmo tempo, é fundamental que identidades variadas façam parte desse cânone. Como garantir esse equilíbrio sem impor conceitos de correção política alheios à força própria da literatura e, ao mesmo tempo, sem deixar de incorporar novas vozes e experiências identitárias diversas?

María Teresa Andruetto – Difícil a questão, porque, como você bem diz, conhecer o cânone é um direito inalienável de cada cultura e todo cidadão deveria ter a oportunidade de ter acesso a esses livros canonizados, livros que consideramos que não devemos perder, livros que acreditamos ser necessário oferecer aos outros. A escola e os espaços de formação são espaços de canonização ou por onde é natural que circulem os livros canonizados. Ao mesmo tempo, também necessitamos que esse cânone não seja uma tumba, uma seleção inerte, rígida, que jamais se mova, mas que dialogue com outras zonas mais novas, novos autores, novas experiências de escrita, novos assuntos e explorações de linguagem, com um ar de inovação que revise periodicamente o já canonizado e faça interagir com o possível de canonizar. Para isso, é desejável que cada professor arme o seu próprio cânone, feito do que já é considerado clássico e do novo, feito de diversos gêneros e contribuindo por escritores de gerações e geografias/culturas diversas. Mas, para que isso seja possível, devemos voltar às questões antes mencionadas, à intensa e lenta transformação leitora dos professores e a um aporte inteligente do Estado em matéria de livros de diversas estéticas, épocas e autores.

María Teresa Andruetto – Uma questão nunca encerrada: quais são as diferenças entre escrever para crianças e escrever para adultos? Ou em que consiste a especificidade (se é que ela existe) da literatura destinada a leitores crianças ou jovens, nos assuntos, na linguagem, no ponto de vista do relato, na extensão…?

Ana Maria Machado – Durante muito tempo, eu respondia a essa pergunta dizendo que não havia diferença entre escrever para adultos ou crianças. Mas fui percebendo que não era bem assim. Acho que não existe diferença no assunto, na atitude, no respeito ao que o texto pede, na exigência que a história faz. E também não creio que a diferença esteja exatamente no tom ou na linguagem, embora hoje eu reconheça que um vocabulário com excesso de palavras abstratas pode ficar muito distante do universo da criança de idade mais tenra. É sempre melhor lhes mostrar situações e falar de coisas concretas do que começar a divagar com termos grandiloquentes. Por outro lado, com o tempo e a prática fui verificando que existe, sim, uma grande diferença. Trata-se de uma cumplicidade que o texto pode estabelecer por meio do repertório de alusões, referências culturais, cultura acumulada pelo leitor. Creio que toda literatura, sempre, está dialogando com o restante da cultura. Ou seja, não vejo como pode haver um texto literário sem intertextualidade, ainda que não seja intencional – e na maioria das vezes, não é. Mas acontece que o repertório de referências acumulado pela criança ainda é bem menor do que o do adulto, e isso passa a ser uma dificuldade muito marcada ao se  escrever para crianças. O autor tem de encontrar essas alusões em elementos ao alcance desse público – cantigas infantis, contos tradicionais, adivinhações, parlendas (retahillas), brincadeiras e jogos que sejam conhecidos dos pequenos leitores ou ouvintes, eventualmente algo do universo pop (mas essa área é muito difícil, pois saem de moda com rapidez vertiginosa). E essa é uma dificuldade muito delicada, pois o acervo cultural disponível no conjunto das crianças ainda está em formação e é muito menor do que o do adulto. E também porque as desigualdades de informação que existem em nossa sociedade se tornam muito nítidas nas faixas etárias dos menorzinhos.

Ana Maria Machado – Gosto muito de suas observações sobre a linguagem na literatura, sobretudo na poesia, em que as palavras não têm como prioridade o desejo de “ser úteis”, mas são livres para fazer “outra coisa”.  E destaco a coerência dessa noção de desvio do utilitário com o seu conceito de que literatura é desacato. Como seria possível transmitir essa concepção a burocratas e pedagogos formuladores de políticas de leitura nas escolas?

María Teresa Andruetto – Acredito que essa seja – no que diz respeito à formação de leitores na escola – a questão mais espinhosa. Arte (e ponho aqui a literatura) e pedagogia constituem pontos de tensão, têm muito frequentemente objetivos diferentes, opostos às vezes. Por uma parte, precisamos da escola como instituição do Estado, porque ela é um lugar por onde passam todas as crianças, as que vêm com uma bagagem de leituras de casa e as que chegam sem ela. Todos passam pela escola e a escola é – como você tem dito e a nossa querida Graciela Montes em numerosas ocasiões – a oportunidade de uma transformação individual e, na soma de indivíduos, também a oportunidade de uma transformação social. Mas a escola, a educação sistemática que se transmite nas escolas, tende a “colocar na caixa” certas formas de pensar e de atuar, numa tentativa de funcionalidade social que é por um lado útil/necessária para o indivíduo e por outro lado, muitas vezes recorta/cerceia a criatividade das pessoas. Finalmente, os funcionários, os quadros políticos da cultura e da educação, muitas vezes não compreendem isso e outras vezes, mesmo que compreendam, demandam resultados visíveis e rápidos para sustentar os seus projetos. Tudo isso vai de encontro a isso que eu digo e sobre o que você me pergunta, de encontro a esse lugar de desacato que propõe a arte em geral e a boa literatura em particular (porque também nos encontramos com o problema de que tantas vezes se editam livros que tentam satisfazer o acato que o sistema propõe). Minha experiência em terreno (trabalhei muito em projetos de formação leitora com professores e logo fui/vou a muitas escolas – especialmente escolas públicas gratuitas – apoiar projetos de leitura que valorizo e que levam adiante professores que tentam romper com os acatos pedagógicos, com o “dever ser”, para se abrirem e abrir seus alunos a essa experiência de desvio, de desacato, do não utilitarismo que propõe a literatura) me diz que isso só é possível se o professor mesmo se transforma, se permite esses desvios e por sua vez isso apenas é possível sustentando encontros de leitura e discussão sobre livros com professores de uma escola ou de uma região em tempos prolongados. Nenhuma transformação individual se faz de um dia para outro, em apenas uma jornada. Entre os anos de 1998 e 2004, anos muito difíceis para o meu país, me envolvi de modo honorário em um projeto de capacitação leitora a professores de escolas situadas em regiões marginais de Córdoba, eram quatro encontros quinzenais em que líamos bons livros e discutíamos algumas questões com os professores e logo eles levavam suas ações para as aulas. Houve muitas transformações nesses professores, nas pessoas e em seu modo de pensar e de ler durante esses anos, mas logo, oito, dez anos mais tarde, tive a sorte de que me convidaram como autora a algumas dessas escolas e pude comprovar quanto havia ficado de tudo isso na instituição, em muitos casos não estavam mais aquelas professoras, mas outras que haviam aprendido com elas. Enfim, quando pensamos na transformação leitora da sociedade, deveríamos pensar no macro e no micro, o Estado contribuindo com seus recursos e gerando políticas de leitura, contribuição de livros, planos nacionais de leitura, programas nacionais de capacitação e a promoção de ações pequenas no interior das escolas ou articulando com professores de escolas próximas, para que possam lentamente produzir transformações pessoais, já que uma coisa não funciona sem a outra. Um professor consciente, mas sem livros pode fazer pouco e pouco fazem os livros se não podem apropriar-se deles, em sentido profundo, os professores.

María Teresa Andruetto – Finalmente, uma questão muito presente no campo da literatura destinada às crianças. A tão mencionada relação entre literatura e educação: por uma parte, como salvar de algum modo a necessidade de levar livros à escola para alcançar setores da população que de outro modo não teriam acesso. Nesse contexto, de que modo você acredita que se pode levar a literatura para a escola sem que a primeira se veja desativada, fique prisioneira das demandas da segunda. E em relação a isso, você fala do subversivo da arte. Como acredita que ele opera – ou como poderia operar para não ser desativada – essa potência subversiva da arte na literatura destinada às crianças.

Ana Maria Machado – Concordo inteiramente com sua premissa: essa é uma questão fundamental, principalmente em sociedades como a nossa.  E não acho que seja possível levar a cabo de maneira satisfatória qualquer ação efetiva e eficiente nessa área enquanto os próprios docentes não forem capazes de desenvolver sua própria capacidade de ler literatura para si mesmos e então perceberem do que se trata. Durante alguns poucos anos, na Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro (gestão Cláudia Costin), existiu um programa de estímulo ao Professor Leitor de Literatura, em que se distribuíam a eles livros de qualidade, bem selecionados (incluindo a participação deles na escolha), de adultos, capazes de interessar a eles e permitir um encantamento com a palavra literária. Depois essas obras eram discutidas livremente em Clubes de Leitura com o apoio e a mediação de leitores experientes e entusiasmados ou em encontro com os autores. Os professores liam uns seis ou sete bons livros por ano, dessa forma. Logo o resultado se refletiu nas crianças, nos alunos, na sua atitude e na sua compreensão leitora. Pena ter durado apenas dois ou três anos. Não acho que um professor que não lê seja capaz de transmitir a seus alunos o  encantamento que a literatura é capaz de despertar. Sou muito cética em relação a burocratas e políticos que não sejam leitores, mas que tenham a responsabilidade de formular políticas de leitura ou impor escolhas nessa área. Ou tenderão a se portar como militantes e tentar fazer proselitismo ou se arriscam a optar por um certo paternalismo – nos dois casos, sem qualquer critério de compreensão do fenômeno literário e de sua necessidade para cada ser humano, desde a mais tenra idade. Quem não costuma ler literatura não deveria querer definir e impor o tipo de livro que as crianças vão ler, é um caminho certo para consequências desastrosas na relação futura dos cidadãos com a arte literária.

Ana Maria Machado – Como desmontar a armadilha pedagógica que procura descobrir uma mensagem em cada texto, um significado único? E, ao mesmo tempo, evitar cair na super-interpretação, que se alarga ao ponto de desprezar qualquer coerência na criação literária?

María Teresa Andruetto – A isso eu me referia na resposta da pergunta anterior, a essa emboscada, essa armadilha pedagógica que pede a interpretação, a explicação de tudo, e especialmente o utilitarismo ao extremo dos textos literários (o conto A é para tal questão, o conto B serve para X coisa, etc.) e que resulta de princípio ao fim autoritário, vertical, predeterminado, quando a literatura propõe uma interpelação ao outro, certo espaço “vazio” em que o leitor possa regressar, um silêncio provocador, um desvio do esperado que converta a essa leitura em um ato de liberdade e de resistência à uniformidade.

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