Por Patricia Auerbach
Já não existe dúvida quanto à importância da leitura durante os primeiros anos de vida de uma criança. A neurociência e a psicologia têm uma infinidade de justificativas inquestionáveis para isso, e não seria difícil reunir uma lista de educadores capazes de comprovar com pesquisas e números o impacto positivo da leitura para crianças pequenas.
Apesar disso, quando me convidaram para falar sobre esse assunto no Salão da FNLIJ (Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil), que acontece no Rio de Janeiro até o dia 5 de julho, só consegui pensar no quanto a leitura na primeira infância era importante para tirar o livro do pedestal em que a cultura adulta o colocou. A leitura nos primeiros anos de vida, antes e durante a alfabetização, aproxima o livro das crianças. Nessa fase, a leitura é muitas vezes feita de forma compartilhada, por um adulto leitor em um momento de criação de vínculo e entrega. A leitura ganha, assim, contornos de acolhimento, tanto em casa quanto no espaço escolar.
Ilustração Marcelo Tolentino
Quando lê de forma independente, a criança pequena dificilmente respeita os rituais convencionais. Ela não conhece padrões de leitura e por isso tem mais liberdade ao manusear o livro que, para ela, não passa de um objeto-brinquedo como outro qualquer. A manipulação curiosa gera grandes descobertas e pequenas subversões. A criança pula páginas e inverte a ordem da leitura sem se preocupar porque para é seu desejo que guia as ações. É o desejo que a faz abrir ou fechar o livro. É o desejo que a leva pra dentro da história e borra os limites entre a realidade e a ficção.
Conhecer os direitos imprescritíveis do leitor escritos por Daniel Pennac foi pra mim libertador. Sempre tive muita dificuldade de abandonar um livro na metade. Sentia como se estivesse enganando alguém – ou a mim mesma. Depois de ler Pennac, isso melhorou bastante porque eu tinha alguém sabido autorizando minhas pequenas transgressões.
O curioso é que, para crianças pequenas, os direitos defendidos por Pennac são desnecessários. Elas não têm receio de pular páginas nem de abandonar o livro, muito menos de ler 30 vezes a mesma obra, mesmo sabendo que tem mais 200 títulos na estante. Crianças obedecem ao desejo e assim ganham intimidade com o objeto livro – e todo o universo escondido em suas páginas. A gente cresce e estraga tudo.
A imagem do livro no mundo adulto é muito associada ao estudo e à erudição. Um adolescente que ainda não foi seduzido pela leitura vê no livro um símbolo da sua frustração, do saber inacessível e da obrigação acadêmica. Mas a criança, independentemente da sua classe social, da escolaridade dos seus pais ou do número de obras na estante de casa, olha para o livro como um brinquedo.
Essa não é uma brincadeira qualquer. Literatura não é apenas fruição. A boa leitura tira o leitor da zona de conforto. Quando uma criança pequena ouve uma história, ela não sabe se as palavras a conduzirão às lagrimas, ao riso ou ao medo. O livro é uma viagem ao desconhecido, com escalas em emoções que nem sempre o leitor conhecia ou saberia nomear. Por isso ler é tão importante. Por isso é tão rico. Por isso é tão necessário.
A pesquisadora Teresa Colomer diz que “Literatura não se ensina, se provoca o contágio”. E o contágio só é possível com o encantamento que pressupõe a experiência. Colomer fala também que a “visão da literatura como atividade de ‘marginalização’ das formas habituais de socialização (música, esporte) se acentua na adolescência e contribui para seu repudio”. A questão aqui é que essa percepção não se aplica àqueles que já foram contagiados. Para eles, estar à margem é não ler.
Como fazer então para resolver o dilema e começar a girar essa engrenagem no sentido certo? Lendo! Lendo desde cedo, para crianças, com crianças. Permitir que os pequenos leitores experimentem os livros da maneira como lhes parecer conveniente, sem os nossos filtros e sem noções pré-estabelecidas de boa conduta literária, que só fazem colocar o livro num pedestal e torná-lo enganosamente inacessível e aborrecido.
Temos uma imagem para dissolver. O livro visto como símbolo de conhecimento erudito e estudo obrigatório afasta leitores. Queremos bibliotecas cheias, e títulos sendo emprestados. A solução está nas mãos das crianças pequenas e na sua forma natural e espontânea de experimentar a leitura.
A nós, adultos leitores, cabe a tarefa de garantir que os livros estejam acessíveis. Não numa caixinha na secretaria da escola, não numa prateleira alta da sala de estar. Livro, sobretudo livro infantil, precisa estar por perto, precisa estar em volta, precisa estar ao alcance das mãos, mesmo que essa proximidade gere algumas folhas amassadas e páginas com digitais infantis. Os pequenos já adoram os livros, nossa tarefa é cuidar para que esse amor não se perca com o tempo.
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Patricia Auerbach é escritora e ilustradora, autora de obras como Direitos do pequeno leitor (2017), Histórias de antigamente (2016) e Pequena grande Tina (2013).