Foi só a professora da Samira contar que todo mundo tem um esqueleto dentro do corpo para que a escola se tornasse uma cena de dar arrepios. De repente, as pessoas viraram amontoados de ossos horripilantes, dignos de filme de terror. Já pensou? A escritora e ilustradora norueguesa Camilla Kuhn já. Para a sorte dos leitores, que agora vão poder rir disso, uma coisa que parecia maluca (e é) se transformou em livro, Samira e os esqueletos, lançado pela Brinque-Book, que tem como protagonista uma menina que parece ter o que se convencionou chamar de “compreensão literal”.
Ilustração do livro "Samira e os esqueletos", de Camilla Kuhn
O nome complicado serve para nomear algo mais simples, são pessoas que entendem tudo ao pé da letra (e aqui vale dizer que “ao pé da letra” é em si mesma uma expressão que, se interpretada palavra por palavra, perde o sentido). Conversamos com a neuropsiquiatra Raquel del Monde, especialista em neurodesenvolvimento em crianças e adolescentes, para entender o que é a compreensão literal, até que fase são esperados comportamentos literais nas crianças e como acolhê-los sem constranger a criança, e ao mesmo tempo estimulando sua imaginação.
Inspirados na obra de Kuhn – que caiu tanto no gosto dos leitores que ganhou um prêmio internacional superimportante, o IBBY – vamos refletir sobre como é tentar ler o mundo literalmente. É preciso se preocupar se os pequenos continuam a reproduzir padrões literais de interpretar o mundo? Qual a maneira mais saudável de responder a isso?
Tim tim por tim tim
“Nó em pingo d´água”, “dor de cotovelo”, “olho do furacão”, “acertar na mosca”. Expressões idiomáticas ficam esquisitas se tentarmos entender o seu sentido, mas, como já naturalizamos o seu uso como frutos da linguagem viva do dia a dia, a maioria das pessoas não pensa no que significam. Acontece que muitas pessoas sim, principalmente crianças. “Me dá uma mãozinha?”. “O quê?!”. Uma conversa comum, no contexto da compreensão literal, pode virar um grande absurdo.
Ao elevar ao extremo a imaginação desenfreada de uma garotinha muito impressionada, Samira e os esqueletos conversa diretamente com uma porção de crianças – e também adultos – que têm facilidade em dar corda para as histórias sem pé nem cabeça que às vezes aparecem na cachola. Mas até onde vai essa capacidade de inventar enredos mirabolantes? Será que isso pode ser nocivo para as crianças?
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Vicenzo Zandoná tem 8 anos e já se habituou aos usos contextuais de algumas expressões, metáforas e analogias. Mas, quando era menor, não podia ouvir alguém dizer “estou morrendo de fome” sem cair no choro. O pequeno está no espectro autista, uma condição que costuma apresentar comportamentos específicos em relação à linguagem. Uma delas pode ser a compreensão literal, que dificulta o entendimento de figuras de linguagem (como as metáforas muito usadas no dia a dia), ironias, piadas e perguntas retóricas. “A inflexibilidade e rigidez que são típicas do autista dificulta a compreensão, e isso independente do nível de inteligência da pessoa”, explica Raquel.
Até quando vai a compreensão literal?
Porém, essa chave de entendimento que caracteriza o comportamento autístico não é limitado somente a eles. Toda criança é, em um dado momento, literal. “As crianças aprendem, desde bebês, por meio dos sentidos – visão, audição, paladar, olfato, tato – e assim vão nomeando o que elas conseguem ver, ouvir, sentir, e partir de experiências concretas. Se elas veem um animal que as pessoas chamam de gato, aos poucos vão entendendo que existem outros tipos de gatos, que há famílias de felinos. Ou seja, o conhecimento vai acontecendo em camadas cada vez mais complexas e sofisticadas. Então, quando elas aprendem o significado das coisas, há sempre uma compreensão literal, porque é preciso um repertório para entender o que é cada coisa. Como o repertório da criança pequena é muito concreto, ela vai ter uma linguagem literal”, diz a médica.
Del Monde explica que as crianças, à medida que vão ganhando experiência de vida e aprofundando seu convívio social, passam a assimilar o discurso dentro de um contexto amplo e subjetivo, e não mais de significados objetivos. “A aquisição da linguagem e da compreensão abstrata vai se dando a partir de uma série de contextos, que são habilidades intrínsecas da pessoa. Por exemplo, o potencial de inteligência, que é a capacidade de absorver novas informações e combinar com outras prévias, fazer inferências e hipóteses e levar tudo isso para o comportamento. É o que chamamos de cognição verbal, que é a capacidade de manipular mentalmente os significados das palavras”, pontua a psiquiatra.
Há pessoas que têm uma cognição mais verbal que outras, o que varia muito com o ambiente e as situações sociais que a pessoa vivencia em termos de estímulo.
(Raquel del Monde)
As diferentes formas de compreensão na leitura
Ler é produzir sentido. Para que isso ocorra, é necessário que haja a relação e a interação de ao menos três fatores: o leitor (com suas estruturas cognitivas, afetivas e processos), o texto (que diz respeito ao conteúdo, à estrutura e à intenção do autor) e o contexto (que pode ser social, psicológico ou físico), segundo o Modelo Consensual de Leitura de Jocelyne Giasson (1993). Dito isto, o processo de compreensão da leitura pode ser classificado em quatro fases distintas (Català et. al, 2005):
- Literal: é a compreensão da forma como ela se encontra no texto, explícita
- Inferencial: exige raciocínio dedutivo ou indutivo, e pode também requerer conhecimento prévio e extratextual. É a interpretação não explícita daquilo que está escrito, com formulação de hipóteses sobre o conteúdo. É esta compreensão que permite a interpretação da linguagem figurada, por exemplo.
- Reorganização da informação: exige as habilidades da compreensão inferencial, mas envolve capacidade de reorganizar, classificar, esquematizar e ordenar as informações principais, além de sintetizar essa apreensão (como em resumo ou quadro)
- Crítica: uma compreensão que envolve emissão de juízo, de posicionamento frente à leitura e expressão dessa opinião.
Como acolher a compreensão literal?
Pensamento abstrato, ler nas entrelinhas, interpretar sarcasmos. Para acolher as crianças que reagem literalmente à comunicação verbal, a dica é falar de forma objetiva, evitando frases vagas, com comandos imprecisos. Ao invés de dizer “precisa de alguma coisa?” e “espera mais um pouco”, o melhor é trocar por “quer água?” e “daqui a 10 minutos nós vamos”. Raquel esclarece que, até os 4 anos, é esperado da criança uma compreensão mais literal, já que ela viveu até ali basicamente situações concretas. ”A partir da idade escolar, a criança comumente já tem um bom repertório que possibilita uma linguagem mais abstrata."
Pequenos ajustes na comunicação podem estabelecer relações sociais mais confortáveis para as crianças literais. E isso vale para todas as pessoas, não só para aquelas do espectro autista ou outros transtornos sensoriais e neuroatípicos. Na fase do desenvolvimento da linguagem, estamos em constante observação de como os outros ao nosso redor se comunicam, por isso, é bem-vindo prestar atenção em como dizemos as coisas. “O ideal é mastigar outros significados para a criança, a partir da observação atenta”, defende Raquel.
Se alguém diz ‘não põe minhoca na cabeça’, nós como adultos observamos e explicamos que aquilo é uma expressão, e damos exemplos que a criança possa reconhecer, dependendo da idade.
(Raquel del Monde)
No caso da personagem Samira, o entendimento literal rende situações cômicas. Ao ouvir a professora dizer que todo mundo é feito de carne, ela imediatamente passa a enxergar os amigos, a professora e a si mesma como um grande bife. Isso depois de tentar convencer a mãe a abrir o corpo para tirar o esqueleto que a amedrontava.
Na ficção, como no livro de Kuhn, tudo pode virar motivo de gargalhada. Mas, na vida real, nem sempre é assim. Então, enquanto seres relacionais que se constroem o tempo todo na relação com o outro, é importante praticar com as crianças cotidianamente uma linguagem empática e inclusiva, afinal, “ler” o mundo é muito mais que decodificar letras e números, mas sim compreender as sutilezas que o compõe. “A nossa compreensão da situação social envolve não apenas o uso das palavras, mas todo o domínio das características mais sutis da linguagem, como a inflexão e o tom de voz, por exemplo. Ou seja, o entendimento de um contexto também depende da linguagem não verbal”, explica Raquel.
Referências:
CATALÀ, G., MOLINA, E., & MONCLÚS, R. (2005). Evaluaciónde de la comprensión lectora - Pruebas ACL. Barcelona: Editorial Graó.
GIASSON, J. (1993). A compreensão na leitura. Porto: Edições ASA.