Ler para se libertar

11/07/2018

 

Foi de uma conversa com leitoras numa penitenciária paulista que a escritora Noemi Jaffe, autora de romances como Írisz: as orquídeas, ouviu o depoimento mais marcante sobre o poema Ausência, de Carlos Drummond de Andrade. "Eu tenho tudo, porque eu não tenho nada. Eu sou cheia de ausência", disse uma das participantes do Projeto de Remição da Pena pela Leitura, promovido pela Companhia das Letras.

Desde a criação dos Clubes de Leitura nos presídios paulistas, em 2015, diversos outros autores, como Antonio Prata, Martha Batalha e Rodrigo Lacerda, participaram de encontros com leitores da população carcerária envolvidos no projeto, desenvolvido em 12 unidades prisionais paulistas, onde os integrantes se revezam para ler 12 obras selecionadas anualmente pela editora. Esse é número máximo que pode ser registrado para a remição da pena pela leitura; cada livro lido garante ao leitor quatro dias a menos de privação da liberdade.

 

 

Os benefícios da leitura nas penitenciárias, no entanto, ultrapassam o privilégio da remição de pena, segundo Rafaela Deiab, coordenadora  do projeto. "Poder falar de si sem falar de si, se expor não se expondo, já que você está conversando sobre os personagens e as histórias. É um momento protegido pela obra artística. São esses espaços de troca efetiva que estão faltando, de saber nomear as coisas, os incômodos e as revoltas nesse universo da violência, que é um universo de silêncio, não expresso."

 

Rafaela Deiab fala sobre o projeto durante encontro na Unibes Cultural, em São Paulo

 

Para que essas leituras possibilitem o contato das pessoas que estão privadas de liberdade com outras realidades, a curadoria buscou obras que retratem histórias de diferentes contextos. No ciclo 2016-2017, por exemplo, contou com títulos como Maus, de Art Spiegelman, A revolução dos bichos, de George Orwell, e Anarquistas graças a Deus, de Zélia Gattai. "Procuramos uma diversidade geográfica e histórica para efetivamente produzir uma ampliação, para possibilitar que eles se repensem a partir de outras experiências literárias e percebam que o mundo é amplo, que há outros universos, contextos e formas de pensar", explica.

Uma crítica dos participantes é com relação ao limite de 12 obras por ano, total máximo instituído pelo Conselho Nacional de Justiça para a remição de pena. Os mediadores contam que parte dos integrantes dos Clubes de Leitura são leitores assíduos – alguns chegam a ler cinco livros por semana. Esse, aliás, é um dos critérios comuns para a escolha de quem fará parte do projeto. A preferência é para aqueles que já costumam frequentar a biblioteca da unidade prisional. Além disso, o integrante do Clube de Leitura deve ter bom comportamento e ser alfabetizado.

O perfil mais detalhado dos participantes foi detectado em uma pesquisa recente realizada pela Companhia das Letras. Usando os mesmos critérios do IBGE, o grupo descobriu que 47% desses leitores se autodeclaram brancos; 40%, pardos e 11%, pretos. Com relação à faixa etária, 31% têm entre 35 e 45 anos, maior faixa etária seguida daqueles com 30 a 34 anos, que representam 26% dos participantes. O que mais se destaca, no entanto, é o fato de 51% das pessoas em situação de privação da liberdade no Brasil, segundo dados da Infopen, apresentarem o Ensino Fundamental incompleto. Já nos Clubes de Leitura, 36% dos participantes possuem Ensino Médio completo, e 24%, Ensino Médio incompleto.

 

Participantes de debate sobre o projeto de fomento à leitura nas unidades prisionais paulistas

 

Os participantes do grupo são escolhidos pela própria administração da unidade prisional, em parceria com mediadores da Funap (Fundação Dr. Manoel Pedro Pimentel), instituição vinculada à Secretaria de Estado da Administração Penitenciária. Todos escrevem uma resenha sobre o livro compartilhado no mês, que depois é encaminhada à editora e passa pela análise de um parecerista, cuja função é verificar se a obra foi realmente lida. De volta para a Funap, chega às mãos de um juiz, que realiza o parecer final, garantindo ou não a remição da pena.

Para escrever uma resenha sobre a obra lida, com o objetivo de pedir a diminuição da pena, os participantes recebem orientações sobre técnicas de redação durante os momentos de mediação, logo depois que a obra é discutida pelo grupo, o que varia de acordo com a unidade penal.

Das resenhas chegam grandes surpresas, como conta a parecerista voluntária Maria Elena Roman de Oliveira. “Na primeira vez que eu participei, tinha uma parecerista mais experiente, e ela leu uma resenha que tinha um recado no final agradecendo o tempo que a gente estava perdendo do nosso dia a dia para que eles [os participantes] ganhassem outro tempo fora da prisão. Virou um objetivo de vida estar aqui.”

 

Rafaela Deiab, Mariane Fernandes, Fabiane Reginaldo e Pedro Schwarcz, participantes do projeto

 

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