Formar leitores hoje: que desafio é esse?

28/08/2018

 

Ana Carolina Carvalho

Que a escola é um dos principais dispositivos para formar leitores, todos nós sabemos. E que se forma leitores por meio da circulação e das vivências de práticas sociais de leitura dentro da escola, muita gente já sabe, dado o fato de que essa é uma informação que está cada vez mais presente nas formações de professores e nas discussões em torno do assunto da leitura. Que a formação de leitores autônomos e competentes, ou seja, leitores que não apenas entendem o que leem, mas conseguem fazer relações com outros textos lidos, exprimir sua opinião sobre o que leu, trocar ideias com outros leitores, ouvindo e pesando pontos de vista distintos, ainda é um desafio, também sabemos. E que as práticas sociais de leitura tão necessárias para a formação de leitores nem sempre circulam pelas escolas também é algo que se sabe, principalmente nos meios em que se discute criticamente o assunto. Há mudanças, há avanços visíveis, mas ainda temos um longo caminho a percorrer.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Atualmente, outras questões contribuem para o grande desafio de formar leitores na escola. Quando estou com professores, sobretudo aqueles que trabalham com adolescentes, em geral sou questionada: “É possível algum êxito na formação de leitores de literatura em meio a nossa cultura da mídia?”.  Converso muito com professores e mediadores de leitura que costumam apresentar uma visão corrente que coloca a internet, o celular, o mundo imagético e fragmentado como experiências que contrariam ou se opõem à formação desejada do leitor literário, comumente entendido como aquele leitor envolvido com a literatura canônica e que vivencia a leitura literária como experiência solitária, silenciosa, profunda, cumulativa, íntima e sempre por meio do (re)conhecido suporte: o livro. É frequente ouvir: sempre foi difícil formar leitores, hoje em dia, então...Tarefa impossível! Será?

Antes de pensarmos a relação entre a leitura e as condições de existência e de construção da subjetividade na contemporaneidade forjadas na cultura da mídia na qual estamos imersos, talvez tenhamos que considerar outra tensão, mais extensa e que diz respeito ao conflito existente entre o modo de ser da escola e a experiência fora dela a que estão expostos os jovens alunos. A escola envelheceu. Aquela brincadeira que costumamos ouvir em relação à escola como o único lugar que seria reconhecível por alguém que teria ficado adormecido por algumas centenas de anos é exagerada, mas contém um fundo de verdade.

Ao analisar a afirmativa um tanto batida de que “a escola está em crise”, a antropóloga Paula Sibilia conclui que a própria tecnologia escolar deve ser historicizada como um maquinário da época moderna. De acordo com a autora, todo o “classicismo” da instituição já vem dando sinais de desgaste ao longo do século XX, mas é neste milênio que o descompasso entre o modelo escolar e as formas de ser na contemporaneidade vivem sua tensão máxima.

A fenda é profunda, nas palavras de Paula: “A primeira década do novo milênio foi decisiva nesse sentido, e é provável que o sejam ainda mais as que virão. Esta constatação ocorre justamente quando se está soldando um encaixe quase perfeito entre, de um lado, esses mesmos corpos e subjetividades e, de outro, um novo tipo de maquinaria, bem diferente da parafernália escolar e talvez oposta a ela. Referimo-nos, é claro, aos aparelhos móveis de comunicação e informação, tais como os telefones celulares e os computadores portáteis com acesso à internet, que alargaram num abismo a fissura aberta há mais de meio século pela televisão e sua concomitante cultura audiovisual”. (Sibilia, 2012)

Desde esse ponto de vista, não se trata apenas do modelo de leitura e a sua necessidade de concentração, atenção, introspecção e silêncio, mas todo o modelo escolar – sobretudo marcado pelo ensino da língua, pela escrita e pela leitura – que está em crise.

O apego da escola a seu modelo tradicional, um tanto apartado do mundo extramuros também nos é revelado por Néstor Garcia Canclini, que problematiza a própria polarização entre leitura e tecnologias midiáticas: “Os professores continuam falando de um divórcio ou curto-circuito entre, de um lado, escola e leitura e, do outro, o mundo da televisão, cinema e outros passatempos audiovisuais. Essa visão antagônica entre leitura e tecnologias midiáticas vem sendo recolocada há vários anos, tanto nos estudos sobre cultura como nos que são feitos sobre comunicação. Os saberes e o imaginário contemporâneo não se organizam, faz pelo menos meio século, em torno de um eixo letrado, nem o livro é o único foco ordenador do conhecimento. Muitos, porém, relutam em traduzir essas mudanças no conceito de uma escola que admita a interação da leitura com a cultura oral e a audiovisual-eletrônica”. (Canclini, 2008)

Bem, se a escola está se colocando em separado da cultura de mídia, talvez seja ela a oferecer resistência em relação aos alunos, suas vontades, seus desejos, suas preferências, sua realidade, inclusive de constituição subjetiva neste mundo em que oralidade, escrita e imagens em movimento prevalecem de maneira híbrida, não como formas separadas ou isoladas de expressão, como “ilhas de conhecimento”.

Por isso mesmo, Néstor Canclini prefere não falar apenas em leitores, mas sim utilizar a expressão combinada leitor-espectador-internauta, uma vez que estas experiências de contato com o mundo não acontecem em separado, mas sobrepostas, coexistindo, bem como coexistem os leitores – em um só, diante de muitos textos e suportes, e em muitos, diante de preferências e necessidades pessoais – blogues, mensagens de celular, de textos curtos como o twitter, de livros mais extensos, de poesia em público, de cartazes e outdoors publicitários, de histórias em quadrinhos etc.

É sabido que a internet também promove experiências leitoras e atualmente temos ouvido que nunca se leu ou escreveu tanto como hoje, justamente por este contato amplo e diário com os meios eletrônicos, incluindo nesta afirmação em especial os jovens e adolescentes. Claro que o formato da internet influencia nossas experiências leitoras, assim como aconteceu em diversos momentos históricos, em que os leitores forjavam práticas de leitura que eram influenciadas pelos diversos suportes em que circulavam os textos escritos, no livro e além dele. 

Ao pensar a formação dos leitores na escola, consideramos que os alunos fazem parte e são constituídos neste mundo fragmentado, ágil, tecnológico, com pouco espaço e tempo para experiências mais contemplativas? Ao mesmo tempo em que nosso cotidiano está cada vez mais atravessado pelas mídias eletrônicas, em que a leitura aparece na vida em consonância aos audiovisuais, em que diferentes modalidades de leitura convivem cotidianamente, a escola, muitas vezes, ainda procura reforçar as cercas de uma fronteira cada vez mais fragilizada.

Para o historiador do livro Roger Chartier, não se trata de lamentarmos a perda de uma determinada experiência de leitura em detrimento de outras, como falou em uma palestra: podemos achar isso – a leitura na tela, o texto atravessado pelo audiovisual – ruim, mas há coisas que dependem de nós, outras, não. É o caso da presença dos aparatos eletrônicos que impõem modos, formas, práticas diferentes de leitura, que podem, inclusive, coexistir com as que conhecemos hoje. Cada forma impõe uma relação particular com o texto. Sabemos que existem diferenças grandes entre gerações: os jovens de hoje entram em contato com a cultura escrita por meio da tela. A questão não é nos aferrarmos às práticas desejadas de leitura, mas procurar considerar a dimensão sociológica: de que maneira a tela eletrônica vai organizar toda a nossa relação com a cultura escrita?

A questão que se coloca é a inserção das diferentes modalidades e dos diferentes suportes que sustentam e definem as distintas experiências de leitura. A escola é parte da sociedade e suas práticas, assim como suas saídas, alternativas e sucessos estão sempre em diálogos múltiplos com um contexto maior, e só são possíveis se o contexto e a realidade do aluno forem considerados. O aluno que temos na escola é de fato este sujeito que passa por transformações, que vive em uma cultura atravessada por múltiplas linguagens, é esse leitor também visual, de internet, é este telespectador da TV e do youtube, de excertos de filmes, das séries para a televisão, de livros, das adaptações dos clássicos em histórias em quadrinhos etc.

Nessas múltiplas linguagens, os jovens vêm sendo educados em sua sensibilidade, formas de pensamento, preferências. Vêm interagindo com outras lógicas. Desenvolvem modos diferentes de leitura, que se cruzam e se complementam. São leitores em construção. Não tenho respostas prontas, mas lanço a questão para todos aqueles que estão envolvidos com o assunto: considerando nossa realidade, como formar efetivamente o leitor no contexto escolar? Como fazer valer um diálogo do texto impresso com a leitura nas telas? Como considerar a bagagem do jovem leitor? E quais são as práticas de leitura no mundo contemporâneo que devem estar na escola?

Precisamos pensar nessas questões como desafios para a tão almejada formação de leitores.

(Este texto foi escrito a partir da minha dissertação de metrado: Posso dar uma ideia? Cada um pega o livro que quer..., sobre a formação de leitores na sala de leitura, Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, 2015).

Quer saber mais? Aqui estão os textos consultados e citados:

Canclini, Néstor Garcia. Leitores, espectadores e internautas. Tradução: Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008.

Chartier, Roger. A aventura do livro, do leitor ao navegador: conversações com Jean Lebrun. Tradução: Reginaldo Carmello Corrêa de Moraes. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Editora UNESP, 1998.

Sibilia, Paula. Redes ou paredes – a escola em tempos de dispersão. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

Palestra – O livro para além de qualquer plataforma, com Roger Chartier e José Castilho, mediação de Rodrigo Villela. Seminário Conversas ao Pé da Página, 21 de agosto de 2013, no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, SP.

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Ana Carolina Carvalho é psicóloga, mestre em Educação e formadora de professores.

 

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