Por que lemos?

17/09/2018

 

 

Há algumas semanas temos assistido a polêmicas em torno de livros destinados às crianças e aos jovens. Um candidato à presidência da República declara, em rede nacional, que certo livro é inadequado (portanto, proibido) às crianças de seis anos de idade (as quais achava serem público-alvo do livro, que, na verdade, era para adolescentes) por fazer apologia ao sexo; e uma mãe preocupada (e desinformada) espalha pelas redes sociais que seu filho leu um livro indicado pela escola que induz ao suicídio e que é preciso proibi-lo de circular por aí. Assisti, mesmerizada, a tudo isso, me lembrando de uma oficina que ministrei para pais e filhos chamada “Escrever para gostar de ler”, em que conversarmos e produzimos materiais sobre a leitura e a escrita.

(Leia também: Quem tem medo de falar sobre sexo?)  

Esse exercício instigante e revelador nos fez pensar nas razões que temos para ler. E eu gostaria de descrever aqui algumas das respostas que aquele grupo – e eu também – deu para a questão “Por que lemos?” e assim possamos tentar compreender os episódios polêmicos acima apontados.

 

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Nós lemos para...

  • Aprender a ler;

  • Aprender a escrever;

  • Aprender tudo o que não sabemos;

  • Perguntar o que queremos saber;

  • Entendermos o outro (e a nós mesmos);

  • Ficarmos mais curiosos;

  • Conversarmos sobre o que lemos com nossos amigos;

  • Acalmarmos o medo que temos de tudo o que não sabemos e não conhecemos;

  • Não nos sentirmos sós;

  • Viajarmos para lugares onde nunca poderemos ir de verdade;

  • Conhecermos pessoas que jamais poderíamos conhecer de outro jeito;

  • Vivermos experiências incríveis que acontecem só quando lemos um livro;

  • Sermos livres pra pensar, ver e sentir o que quisermos;

  • Lembrar de coisas que não queremos esquecer;

  • Esquecermos do que não conseguimos parar de pensar;

  • Gostarmos mais ainda de ler...

 

E por aí vai!... A lista seria imensa e se voltássemos a nos encontrar agora, com certeza mais motivos teríamos para explicar por que lemos.

Essa diversidade toda, essa amplitude quase que abissal das inúmeras razões pelas quais os seres humanos leem, se deve ao fato de que a leitura é um ato absolutamente único, pessoal e intransferível. E aí reside seu mistério, magia e potência. A leitura de cada um é incontrolável, totalmente livre e talvez seja isso que tenha incomodado os personagens do nosso artigo. Eles simplesmente querem controlar os inúmeros significados dessas obras e é claro que jamais poderão fazê-lo.

O exercício da leitura é um ato transgressor por si só, que confere ao leitor o poder de ler, reler, pular trechos, ler outras “n” vezes, de começar e não terminar o livro etc. Muito antes da mídia digital, a leitura já era interativa, sempre foi. Como diz o grande escritor Umberto Eco, para cada obra há sempre um “leitor implícito” e por isso ela é aberta, porque cada leitor faz dela, entende dela, o que melhor lhe aprouver.

Afirmar que tal livro induz a determinada atitude, que tal obra de arte desperta sentimentos obscuros ou incontroláveis, nada mais é do que a incapacidade de apropriar-se do seu verdadeiro lugar de leitor. Aquele que exerce o tão famoso quanto abominável “não li e não gostei” torna-se míope, recusando a ler/ver quantas leituras possíveis existem em uma obra. Está abrindo mão do direito e do prazer de significar e ressignificar aquele texto, quadro, música, de ampliar a sua visão do mundo, exercitando a delícia do poder viver quantas vidas quiser.

Nesse sentido, lamento por esses equívocos. Sinto muito por eles, que querem silenciar sua própria voz, ignorando sua necessidade de compreender o outro e a si próprios. Como disse Sílvia García Esteban, autora do texto Literatura juvenil: uma etiqueta forçada: “Podemos pensar em muitas causas de leitura como seres humanos que leem em nosso planeta, porque um leitor nasce de uma necessidade que estará intimamente ligada à história desse sujeito, que procede, como disse Isabel Escudero, dessa fonte que não é de água, mas de sede. Ser leitor não consiste apenas em ler muito, é tornar-se um intérprete da realidade, é estar disposto a se deixar seduzir pelo sussurro das palavras, pelas infinitas construções possíveis que a linguagem nos oferece, é buscar nos nomearmos e, ao fazermos isso, cavar um oco próprio para nossa existência, é aceitar um pacto fictício e dar-lhe consistência para nele habitar”.

Quanto mais leitores emparedados em suas ideias truncadas tivermos, mais restrita será a nossa condição humana. Seremos mais tristes, mais raivosos, mais amargos. Não teremos outras possibilidades de viver, sonhar e nem de transformar o mundo. Por isso, é urgente e necessário reaprendermos a ler, e compreendermos por que lemos. Esse deve ser nosso pacto real, e uma boa causa para lutarmos, aqui e agora.

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Januária Cristina Alves é jornalista, infoeducadora e escritora, com mais de 50 livros publicados.

www.entrepalavras.com.br


 

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