As ilustrações do artista português João Vaz de Carvalho não poderiam ter melhor inspiração: foi nas memórias de infância e na saudade que sente desse tempo que recorreu para ilustrar Saudade, livro escrito por Claudio Hochman. Era nessa época, por exemplo, que ele visitava a praia para assistir ao teatro de fantoches que mais tarde inspirariam os traços marcantes de personagens que não revelam a alma por completo.
A marca não é apenas característica desse livro, mas de diversos outros que conferiram a João os prêmios de sua carreira como ilustrador, dentre os quais destaca-se o White Ravens em 2013. Isso porque começou o ofício apenas depois de estrear como pintor aos 27 anos, na década de 1980, e de trabalhar com projetos ligados à cerâmica e às marionetes. A carreira de ilustrador veio então tardiamente e de forma autodidata. Hoje, tem seu trabalho publicado em variados países, como Portugal, Brasil, Espanha, França, Itália, Suíça, Inglaterra, China e Coreia do Sul.
Seus livros são conhecidos ainda pelos tons sóbrios presentes na paleta de cores, que dão às histórias a atmosfera nostálgica como a de Saudade, publicada originalmente pela Bags of Books. A obra é também marcada pelo elemento do contraditório, típico em seus personagens que carregam altas doses de humor. Em entrevista, contou ao Blog da Letrinhas sobre o seu processo criativo, alguns elementos do seu trabalho e do cenário da ilustração em Portugal. Saiba mais a seguir!
Referências
João cita como principal referência para esse trabalho a sua infância e a saudade que sente desse tempo. “É sempre desse patrimônio emocional que procuro extrair as imagens que me ajudam a dar expressão a textos especiais como este, que o Claudio escreveu para o seu próprio filho.”
Cores e técnica
A ilustração foi feita com pintura de tinta acrílica sobre cartão prensado. João conta que a pintura sempre foi a técnica favorita dele, mas que, nesse caso, decidiu utilizar o cartão cinzento prensado como suporte para sugerir o ambiente de um tempo passado, pela sua cor e textura. A paleta de cores utilizada na pintura também carrega esse intuito, com tons de castanho, preto, branco e cinza.
Antiguidade
João conta que sempre há algo de “geneticamente antigo” em seu trabalho, sempre repleto de recordações. “As minhas vivências e muitas das imagens a que recorro são patrimônio da minha memória pessoal. A sua presença é recorrente e incontornável em todo o meu trabalho. Ao ilustrar o texto do Claudio, inconscientemente procurei as minhas identificações pessoais com a história. Foi a partir delas que desenvolvi as imagens.”
Humor
Outra característica bastante presente em seu trabalho é o humor, que, segundo o ilustrador, surge de forma natural, sem intenção. “Mas não julgo que seja apenas humor, há também ausência e alheamento (da realidade) que podem ser alguns dos traços bastante caracterizadores. Sinto que há algo de contraditório nesses personagens que crio e que não me preocupo em definir completamente. Mas humor, sim, há certamente.”
Teatro de fantoches
Para falar da expressão característica de seus personagens, de olhos marcantes, João logo volta à infância, quando ia à praia assistir aos espetáculos de teatro de fantoches. “Eram um mistério para mim aqueles personagens. Uma das coisas em que reparava era nas suas expressões fixas, muito marcadas, que não coincidiam quase nunca com os estados de alma que era suposto revelarem durante a peça”, diz, reconhecendo o potencial dessa expressão petrificada. “Em certa medida é daí que vêm as expressões das minhas figuras. São como máscaras, para além da aparência, nunca se sabe muito bem o que lhes vai na alma.”
A ilustração portuguesa
Por fim, reconhece a importância que a ilustração portuguesa tem tido nos últimos 15 anos. Atribui isso à dedicação e à competência dos profissionais envolvidos no processo do livro (editores, diretores gráficos e ilustradores). Além disso, cita o surgimento de pequenas editoras de álbum ilustrado, que “apostam sobretudo na qualidade dos seus projetos, valorizando o trabalho dos ilustradores, apesar das dificuldades”, e a imprensa, que “se interessou muito pelo trabalho dos ilustradores apesar de, neste momento, haver um decréscimo da presença de ilustração em revisas e jornais”. Finaliza: “Um dos resultados positivos desse desenvolvimento é a constante publicação do trabalho de ilustradores portugueses em editoras estrangeiras. Outro indicador bastante revelador é a frequência com que a ilustração de autores portugueses vem conquistando prestigiados prêmios internacionais”.