Um leitor no topo das árvores

18/10/2018

 

Por Marcela Fernandes de Carvalho

A primeira vez que li um livro para uma criança foi em um recém-instalado assentamento do MST. Depois de algumas brincadeiras com o corpo, palavras e objetos, uma amiga abriu uma mala de livros. Um menino de uns quatro anos de idade escolheu um livro da mala e me entregou a publicação. Sentou-se no meu colo e começou a ler junto, esperando que as palavras saíssem da minha boca. Compreendia tudo sobre aquele ritual.

 

Ilustração Marcela de Fernandes Carvalho

 

Foi um dia inesquecível, inaugurei algo importante. As crianças brincavam, pulavam, corriam, subiam nas árvores e liam. O livro era mais um brinquedo, como o corpo e como o graveto. Anos depois, a amiga que abriu a mala naquele dia abriu outras malas, outros caminhos, e me pediu que fizesse um relato sobre literatura infantojuvenil e leitura. Logo lembrei um livro: O barão nas árvores, romance de Italo Calvino.

A maravilhosa trama é enredada por um suspense que se prolonga em uma rede de fios cruzados. O menino Cosme, primogênito do barão, durante um jantar em família em repúdio às exigências disciplinadoras e aristocráticas do pai, sobe no carvalho do jardim bem diante do palácio e nunca mais desce, passando o resto de sua vida no alto das árvores. A cada aventura do personagem jovem, adulto e velho, o leitor espera que ele escolha descer e trocar o desconforto dos galhos pelo cotidiano comum no chão. Mas sua escolha é sempre ampliar a trama de encontros em seu reino no alto.

Um dos encontros de Cosme é com o personagem João do Mato, um bandido temido e perseguido na vila. Ao se esconder um dia na floresta, João se depara com o barão lendo, reconhece sua vasta biblioteca e fica muito interessado. Começa a fazer perguntas sobre livros e leituras. Por fim, leva alguns exemplares emprestados para seu esconderijo. No outro dia, João do Mato traz os livros lidos, tece comentários e pede novos títulos. O ritual se repete inúmeras vezes. O leitor se torna cada vez mais voraz e exigente enquanto o barão, agora formador de leitor, precisa ler ainda mais e buscar outras fontes e fornecedores de livros, pois é ameaçado de morte pelo bandido quando lhe falta a leitura.

Nunca fui ameaçada por não entregar o livro exigido pelo leitor que veio ao meu encontro em bibliotecas ou em outros espaços. Mas, certamente, já me encontrei na situação de Cosme, o barão nas árvores, tendo que ler mais, mais e mais... Buscando atender à demanda coletiva por leituras. No encontro do que é pedido por um leitor, por um ouvinte, por um colega professor que reconhece um encanto de sua turma por determinado tema e pergunta por ele no acervo da biblioteca, percebo que venho tecendo um percurso na literatura infantojuvenil.

Voltando ao personagem de Calvino, João do Mato lia sem parar e, tomado pelas leituras, foi deixando de roubar e matar; mal tinha tempo de planejar um sequestro ou uma boa fuga, só lia, só queria ler. Um dia, terminou preso, e pediu ao amigo Cosme que lesse pra ele o final do livro que estava lendo no ato de sua detenção. O barão toma o livro nas mãos, diz que o final é triste e lê em voz alta articulando cada palavra, contando que o personagem principal morrerá enforcado. João do Mato também morre, logo após ouvir a leitura também na forca, da mesma maneira que o personagem da sua última ficção.

Na cena final de João do Mato, há um livro dentro do livro, uma história dentro de uma história, dentro de uma história... Pude me identificar com o barão nas árvores, lendo para um amigo, o destino de sua vida real e vivida. Tantas vezes, na escola, trouxe para nossos alunos destinos possíveis para eles naquele momento. Por exemplo, li: “e então o capitão reuniu seu bando!”, e vi três amigos sentados juntos que, ouvindo a história, se entreolham e passam os braços pelos ombros uns dos outros, unidos, formando o bando. Em outra turma, contamos: “Naquela manhã de sol, ele bocejou e se espreguiçou...”. E bocejando e me espreguiçando longamente, convidei aquele que já tinha pego a maior almofada a finalmente se recostar e, quem sabe... pegar no sono. E quem nunca adormeceu ouvindo uma história?

***

Marcela Fernandes de Carvalho, formada em Design e mestre em Literatura pela PUC-Rio, é educadora, contadora de histórias. Autora da tese de mestrado Comprida história que não acaba mais: do tecer ao texto e vice-versa. Ilustrou diversos livros, como A linha e o linho”, do compositor Gilberto Gil (Escrita Fina Edições), e é autora de Lampião e o Vovô da Vovó na cidade de Mossoró (Escrita Fina Edições).

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