“Os bons escritores quase sempre tocam a vida”

25/10/2018

 

“Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos. Estamos vivendo num tempo em que as flores tentam viver de flores, e não com a boa chuva e o húmus preto. Mesmo os fogos de artifício, apesar de toda a sua beleza, derivam de produtos químicos da terra. No entanto, de algum modo, achamos que podemos crescer alimentando-nos de flores e fogos de artifício, sem completar o ciclo de volta à realidade.”

Foi com trechos de obras instigantes como Farenheit 451, distopia escrita por Ray Bradbury em 1953, que o educador Magno Rodrigues Faria promoveu os momentos mais inspiradores da Ocupação Literária, evento organizado por um coletivo de seis editoras (Companhia das Letrinhas, Brinque-Book, Jujuba Editora, ÔZé Editora, Pulo do Gato e Panda Books), em parceria com A Taba, no Centro Cultural São Paulo, no último sábado (20/10).

 

Foto Mariana Viriato

 

No encontro que teve rodas de conversa, narrações de história e saraus, Magno, que atua em projetos de mediação de leitura, no Instituto Acaia e em outros espaços, trouxe questionamentos importantes sobre as leituras realizadas em sala de aula. “Por que que achamos que o livro é tão importante nas políticas de leitura? Por que ler? É o livro pelo livro?”, perguntou à plateia, lembrando que muitas obras voltadas ao público infantojuvenil pouco trazem de novo ou de questionador.

A censura na literatura infantil e a leitura em casa foram outros temas que renderam rodas de conversa na Ocupação Literária. O debate de Literatura: proibido para menores? contou com a participação de Janaina Tokitaka (Vovó veio do Japão) e Márcia Leite (Olivia tem dois papais), com mediação da jornalista Gabriela Romeu. Daisy Carias (blog A cigarra e a formiga) e Renato Moriconi (Bárbaro) estiveram na mesa Adultos, crianças e livros: a leitura em casa, que teve mediação de Denise Guilherme, d’A Taba.

 

Foto Mariana Viriato

 

Na mesa intitulada Relato de experiência: boas práticas de leitura na escolar, da qual fizeram parte Magno e Laís Froes, professora da rede pública de Jundiaí, com mediação de Edi Fonseca, do Instituto Avisa Lá, o mediador problematizou o fato de que, em escolas públicas, não é raro encontrar crianças alfabetizadas tardiamente, e que há de se encontrar alternativas de leitura para elas. “A leitura não é só dos livros, não é só das letras. Às vezes, trabalhando com adolescentes, tem alguns que se alfabetizaram muito tarde, com 13, 14 anos. Fizemos a leitura em voz alta do Fahrenheit 451 inteiro. As pessoas que foram alfabetizadas tardiamente, só escutando as histórias, foram as que deram as melhores conclusões sobre o que a gente estava lendo. É difícil compreender o código. A vida um pouco menos.”

Laís deu algumas dicas de projetos que realiza com alunos de quinto ano. Além da leitura em voz alta, feita diariamente, ela executa um projeto chamado Amigo leitor. Nele, a turma de alunos escolhe uma outra sala. A proposta é de que pensem em livros que os outros alunos, de outras idades, iriam gostar de ler. Depois, é feito o encontro entre os estudantes, em que as suposições são confirmadas ou não, em uma conversa sobre preferências literárias. “Eles investigam o que a criança gosta, o que ela costuma ler. Uma conversa aproxima esses dois leitores”, explica. “Depois voltamos para sala de aula, olhamos para o nosso acervo, conversamos sobre o que eles confirmaram ou não.” Ao final, uma leitura conjunta é realizada com obras que possam despertar o interesse das demais crianças, que acabam se conhecendo. 

 

Foto Mariana Viriato

 

Há também as sessões simultâneas de leitura. Elas acontecem quando as professoras selecionam algumas obras para leitura conjunta. As chamadas para os momentos de mediação são fixadas no mural da escola, com algumas informações dos títulos e, por vezes, uma pequena resenha – se alguma obra já é de conhecimento dos alunos, eles mesmos escrevem esse texto, em conjunto.

Assim, os estudantes podem participar das conversas que preferirem. “As crianças escolhem e começam a acontecer as trocas – ‘Olha, esse aqui eu já li’, ‘esse aqui é legal, vai nesse, se inscreve nesse’”, diz a professora. Depois dos momentos de mediação, de volta às salas de aula, os alunos ainda compartilham a experiência vivida. “Eles fazem esse fechamento aprendendo a se colocar, acionar ideias retomando o livro, porque ao falar do livro relemos, retomamos os nossos pensamentos, verbalizar é muito diferente de pensar, dá mais trabalho, exige mais da criança.” Os títulos são selecionados pelos professores com a preocupação de que proporcionem uma variedade de experiências, de gêneros, de reflexões, de projetos gráficos, de editoras, de autores, de ilustradores.

Ela também propõe que escritores da comunidade participem da rotinas das escolas. Que os educadores perguntem em reuniões de pais ou para os próprios alunos quem tem pai escritor e que os chame para conversar com as crianças. Segundo a educadora, é importante que os estudantes percebam que há escritores vivos. “Os escritores habitam os bairros, as cidades, eles precisam aparecer na escola. Precisam saber que no meu bairro, na minha rua tem alguém que escreve. Isso não é distante, isso não é impossível. Não é coisa de outro mundo.”

Os debates da Ocupação Literária foram iniciados e finalizados com leituras de trechos de livros, muitos deles à venda na mesa organizada pela livraria Novesete. Para encerrar a conversa sobre leitura e leitores, Edi Fonseca trouxe um poema de Manoel de Barros que está em Cantigas por um passarinho à toa, uma reedição que ganhou delicadas ilustrações de Kammal João. “Espero que todos nós, nestes dias aqui, sejamos vaga-lumes.”

Do alto de uma figueira

onde pouso para dormir

posso ver os vaga-lumes:

são milhares de pingos de luz

que tentam cobrir o escuro”.

 

 

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