“Raiva e paciência são precisas
para se soprar nos pulmões do poder
o fino pó mortal, moído
por aqueles que aprenderam muito,
que são exatos, por ti.”
É com um poema do alemão Hans Magnus Enzensberger que Fabíola Farias, figura importante na promoção de leitura em Belo Horizonte, ressalta a árdua batalha de implantar políticas públicas no campo das bibliotecas. Em São Paulo, Bel Santos Mayer, gestora da rede LiteraSampa, apoiadora de bibliotecas comunitárias, lembra que sua luta pelo direito à leitura conta com uma herança familiar: “Quando eu nasci terceira filha de um jovem casal de migrantes nordestinos, minha mãe deve ter conjugado o verbo ‘esperançar’ bem alto e em todos os tempos do futuro”.
Ilustração Marcelo Tolentino
Duas relevantes ativistas em prol dos espaços de leitura públicos e comunitários no país, Bel e Fabíola foram convidadas a uma conversa especial, uma espécie de entrevista cruzada, em que uma tece questões à outra. Numa prosa política e poética, elas deixam transbordar memórias das leituras mais antigas, das primeiras bibliotecas que compuseram a infância dessa duas ativistas. E também falam dos enfrentamentos devidos e necessários, das ações cotidianas que encurtam distâncias entre leitores e livros, da importância das bibliotecas para o cumprimento dos direitos humanos, do diálogo e da diversidade promovidos nos espaços de leitura.
A seguir, confira a conversa entre essas duas mulheres tão inspiradoras.
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Bel Santos Mayer – Fabíola, você me disse que não tem lembranças de bibliotecas em sua infância e no início da adolescência. Sabemos que as memórias envolvem palavras, espaços, sensações, cheiros, afetos. Você poderia compartilhar alguma memória de leitura da sua infância? (Onde estava? Com quem? O que leu ou leram? Quais sentimentos estavam envolvidos?) Já entrou em alguma biblioteca que acariciasse essa lembrança?
Fabíola Farias – A primeira lembrança que tenho de livros são duas coleções deixadas por minha mãe, que era professora de geografia e morreu quando eu tinha apenas três anos de idade. Uma era aquela vermelha, do Jorge Amado; a outra, que está comigo até hoje, é a de livros do José Mauro de Vasconcelos, autor de Meu pé de laranja lima. Não me lembro de haver biblioteca pública na Carlos Chagas da minha infância, mas havia a biblioteca escolar. Lembro-me da Creuza, que cuidava da biblioteca da escola, nos tomando a leitura, quase sempre de textos mimeografados, ou ensaiando a apresentação de jogral para eventos comemorativos – dia das mães, dia dos pais, dia das professoras... Também me lembro da leitura de alguns títulos da coleção Vaga-Lume, como Sozinha no mundo, do Marcos Rey, e O caso da borboleta Atíria, da Lúcia Machado de Almeida. Sempre me interessei pelos estudos e pela escola, brincava de escolinha e queria ser professora. Meu pai, leitor voraz daqueles livrinhos de faroeste vendidos em bancas, me deixava comprar cadernos, lápis de cor, canetinhas e até fez um quadro negro na parede da garagem de casa para que eu pudesse brincar de dar aulas. E, claro, havia as professoras, as “tias” (tia Tânia, tia Sílvia, tia Neuracy), que nos contavam histórias. Penso que esse convite feito em sala de aula e a admiração pelas professoras tenham sido fundamentais para que eu desejasse ler e aprender.
Fabíola Farias – Nasci e vivi, até o início da adolescência, em uma cidade pequena, no interior de Minas Gerais. Não me lembro da existência de uma biblioteca pública na cidade, mas apenas de uma biblioteca escolar não muito presente em nosso cotidiano (ou pelo menos nas minhas lembranças de aluna, o que aponta para uma ausência, no mínimo, simbólica...). Sempre que ando por Belo Horizonte ou que visito outras cidades, grandes e pequenas, tento imaginar para onde as pessoas vão e de onde vêm, em que trabalham, sobre o que conversam umas com as outras e, especialmente, se leem e frequentam uma biblioteca. Saber se e como as bibliotecas fazem parte da vida das pessoas é algo que me ocupa intimamente. E você, Bel, como percebe as bibliotecas, especialmente as públicas e as comunitárias, que são espaços de frequência espontânea, em um mundo tão grande, produtivo e acelerado? Não me refiro às apostas que fazemos nas bibliotecas, mas sim como as percebemos.
Bel Santos Mayer – Fabíola, assim como você, gosto de imaginar a vida das pessoas nas bibliotecas. Eu também, quando estou em uma biblioteca, não resisto a perseguir com o olhar aquele ou aquela visitante; gosto de observar como se move no espaço, se com estranheza ou familiaridade; me agrada ver para quais livros olha, como se aproxima deles, quais escolhe/acolhe. Quando chegam para devolver os livros, especialmente as crianças, pergunto se me recomendariam a leitura e o porquê. Para mim, a biblioteca é esse lugar de conversa, de encontros casuais que podem durar poucos minutos, como às vezes são os meus encontros com eles/elas, mas que oferecem mais do que uma conversa de elevador, porque ali há um livro entre nós; há uma história. Quando chego a outras cidades no Brasil e no exterior, tenho a mania de procurar três coisas para conhecer um pouco do local, da cultura, das pessoas: o pão, a música e a biblioteca. O que comem para começar o dia? Quais ritmos embalam seus corpos? O que leem e escrevem? No fundo, gosto de saber como alimentam o corpo inteiro, mas dentro do tema desta nossa conversa, interessa-me saber que importância aquela comunidade dá às bibliotecas, aos livros, à relação das pessoas com as palavras. Observo se estão em áreas centrais, se estão próximas ao comércio, se as portas são mais “janelas abertas” que convidam ou se são “mais catracas” que controlam o acesso; fico procurando os sinais de convite para entrar. Se entro, vejo se as pessoas falam, andam, sorriem; se há espaço para a leitura solitária.... Ou seja, eu percebo as bibliotecas como um lugar de encontro, de passagem, de convivência, de lazer, de descanso do que está fora, de invasão da vida, de acesso à palavra e, principalmente, de escuta. Em um mundo cada vez mais complexo, as bibliotecas, especialmente as comunitárias, com gestão e programação compartilhadas, estão sendo lugar para ouvir, pensar, dialogar.
Bel Santos Mayer – Fabíola, à frente de um Sistema de Bibliotecas Públicas, você deve ter enfrentado desafios importantes. Utilizando um subtítulo presente na mesma publicação citada anteriormente por mim, “Seguindo com raiva e paciência”, gostaria de saber: em uma posição de tomada de decisões quanto ao destino e atuação das bibliotecas públicas, onde é preciso colocar a raiva? Onde é preciso ter paciência?
Fabíola Farias – “Com raiva e paciência” é o título de um livro de ensaios do poeta e intelectual alemão Hans Magnus Enzensberger, tirado de um de seus poemas: “Raiva e paciência são precisas / para se soprar nos pulmões do poder / o fino pó mortal, moído / por aqueles que aprenderam muito, / que são exatos, por ti”. Foi a muito querida e admirada amiga Nilma Lacerda quem me apresentou esse livro.
Apesar de todo o nosso desejo, estudos, trabalho e dedicação, a elaboração e a execução de políticas para a participação na cultura escrita, em que localizo as bibliotecas, são muito lentas. Além de todo o trabalho político, que envolve a mobilização e a escuta de vozes dissonantes e evidencia conflitos e disputas desejáveis em uma construção democrática, lidamos com a burocracia, que muitas vezes é enlouquecedora em sua falta de sentido, e também com movimentos obtusos e conformadores, muitas vezes ocultos, vindos de muitas direções. Raiva e paciência são estágios distintos e indissociáveis nessa atuação. Sinto raiva e indignação quando, por exemplo, projetos são adiados e prejudicados em função de interesses que nada têm a ver com a área ou quando os processos de construção coletiva são desrespeitados em função de interesses que não estão objetivamente postos. Também é revoltante ter que adiar ou reduzir ações importantes por sua inviabilidade burocrática. A paciência vem depois, quando entendo, sempre com uma serenidade cada vez mais indignada, que não adianta dar murro em ponta de faca e que é preciso fazer curvas e percorrer um caminho longo para alcançar o que estava a poucos metros de distância em linha reta. Em meio à raiva e à paciência, estão as alegrias das pequenas conquistas – ações específicas para a primeira infância, livros novos que chegam às bibliotecas, encontros e trocas de experiências, novos leitores, leitores que se tornam assíduos, projetos comuns com a Educação, iniciativas da sociedade civil, o fortalecimento das bibliotecas comunitárias... É esse cotidiano que nos dá a dimensão do tanto de trabalho e luta que há pela frente e que sustenta, com raiva e paciência, o compromisso com um projeto político de biblioteca.
Fabíola Farias – Você tem sustentado veementemente a proposição política da leitura, especialmente de literatura, como um poder transformador, que ressignifica histórias e trajetórias, desvia percursos previamente traçados por estruturas sociais e cria repertório para a indagação e a compreensão do mundo e das relações que vivemos. Apesar de compartilhar com você esse entendimento e o compromisso de estar sempre em marcha, muitas vezes me sinto desamparada em um contexto que interdita cotidianamente o nosso trabalho e a nossa esperança. As conquistas ao nosso redor são pequenas promessas e doses extraordinárias de perseverança, mas sempre muito pouco frente a um mundo de tantas desigualdades. Como você lida com isso?
Bel Santos Mayer – Quando eu nasci terceira filha de um jovem casal de migrantes nordestinos, minha mãe deve ter conjugado o verbo “esperançar” bem alto e em todos os tempos do futuro, Fabíola. Assim como eu e você, vejo milhares de outros/as criando e recontando pequenas histórias, que somadas, têm a potência de nos fortalecer. Eu tenho acreditado que acontecem mais coisas boas do que ruins no mundo (na “minha bolha”, então, nem se fala!), porém as notícias ruins vendem mais, as notícias ruins roubam nossa energia, nos sugam, nos dão rasteiras, às vezes nos derrubam, nos jogam em máquinas de moer gente, mas... não raramente uma mão parceira, uma poesia ao pé do ouvido como Eu vou me levantar ("Still I Rise"). de Maya Angelou, nos resgatam e nos levantam. No momento estou fazendo Mestrado em Turismo e pesquisando “As viagens literárias dos jovens periféricos” a partir dos conceitos de “mobilidades”. Estou olhando para as trajetórias e os deslocamentos (físicos/viagens, de ideias, culturais, econômicos) de jovens mediadores de leitura da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, em Parelheiros/SP, que tiveram durante dez anos, maior acesso a palavras, informações, lugares, oportunidades. Ainda estou no início do estudo, mas há indícios de mudanças. E tenho “esperançado”. Se é verdade que as desigualdades, situações de violência, posições autoritárias, violações aos direitos humanos e as urgências cotidianas sugam parte da nossa energia, a literatura e a ação das bibliotecas comunitárias nos aparecem como uma possibilidade de libertação do “presente perpétuo” (refiro-me a termo utilizado pelo antropólogo Marc Augé em Por uma antropologia da mobilidade). A literatura nos ajuda a inventar criativamente o futuro. Ao mesmo tempo em que dá um desânimo olhar o quanto estamos distantes de um projeto de humanização da sociedade brasileira e do mundo e da meta de sermos um “país de leitores”, existem muitos/as de nós desejando mudanças, transformando. Os nossos pés na comunidade carregando livros, proporcionando encontros e conversas de um lado para o outro, têm diminuído distâncias entre as diferentes modalidades de bibliotecas (escolares, públicas e comunitárias), entre a academia e o saber comunitário, entre o “não leitor/a” e o leitor/a, entre autores/as e leitores/as. Essas aproximações me encorajam.
Bel Santos Mayer – Por vezes gestores/as de bibliotecas colocam-se em posições de disputa (de editais? de cargos e funções? de leitores e leitoras?). Como as tipologias de bibliotecas (públicas, comunitárias, escolares, universitárias) podem atuar juntas para garantia do acesso à leitura, a aproximação de não-leitores/as e a permanência dos que leem? Como podemos coexistir e transformar nosso país em um país de leitores/as?
Fabíola Farias – Já ouvi e participei de muitas discussões a respeito de demarcações de espaço para atuação, o que reverbera diretamente em orçamentos, editais e lugares de poder. Acho que sabemos, mesmo que superficialmente, o que caracteriza as bibliotecas públicas, as escolares, as universitárias e as comunitárias e nenhuma dessas características deveria ser restritiva. Em um país como o Brasil, onde as desiguais e perversas estruturas sociais não garantem as condições mínimas para a participação da população na cultura escrita, não há qualquer sentido em uma divisão rigorosa de espaços de atuação para quem efetivamente assumiu um compromisso com o direito de ler e de escrever. Assim, penso que as bibliotecas públicas e comunitárias devem acolher e apoiar as atividades escolares, tornando-se espaços de formação continuada para crianças, adolescentes e jovens. Ao mesmo tempo, as bibliotecas escolares precisam se abrir para as comunidades em que estão inseridas, incluindo-as em sua ação. E as bibliotecas universitárias, especialmente as das instituições públicas, devem ter seus serviços, incluindo os empréstimos domiciliares, estendidos à população que não está a ela formalmente vinculada. Sei que há argumentos válidos contrários a essa proposição, mas a eles responderia com uma exigência maior, que é uma atuação coletiva para a democratização do acesso à leitura e à escrita. Dito de outra maneira e usando o título de um livro do Amartya Sen e do Bernardo Kliksberg: as pessoas em primeiro lugar!
Embora vivamos ansiosas por editais e programas que possam financiar nossa ação, penso que eles revelam uma estrutura perversa, uma vez que quantitativamente são insignificantes se considerado o tamanho da demanda e que transferem para pessoas ou pequenas instituições uma responsabilidade que não pode ser individual. Além disso, muitas vezes as proposições são alteradas para atender ao perfil do edital ou do potencial patrocinador. Um bom exemplo é o edital Bibliotecas Digitais 2018, lançado recentemente pelo Ministério da Cultura, que apoiará 20 projetos com o valor de R$ 100.000,00 cada: o que significam 20 projetos em um país com 5.561 municípios e cerca de 5.000 bibliotecas públicas e comunitárias? É nessa lógica que surgem os discursos de empreendedorismo, de sustentabilidade, que criam uma fantasia de solução, mas que, no meu entendimento, só nos fazem pensar que estamos fazendo a nossa parte.
Fabíola Farias – Em função de muitas lacunas, ausências e descaso do poder público em relação às políticas para a participação na cultura escrita, a sociedade civil assume, em muitas situações e lugares, o compromisso de implantar, manter e gerir bibliotecas. Em resumo, muitas vezes as bibliotecas comunitárias garantem o acesso a livros e a oferta de serviços e atividades culturais em comunidades e para grupos que a administração pública não alcança – em Belo Horizonte, que conta com vinte e uma bibliotecas públicas municipais e uma estadual, a rede de bibliotecas comunitárias é muito significativa na democratização do acesso à leitura. Como fortalecer e viabilizar essa ação, presente em todo o país, de maneira abrangente e efetiva no que toca à sua sustentabilidade, preservando sua identidade comunitária e independente?
Bel Santos Mayer – Como você disse, as bibliotecas comunitárias nascem da ausência do Estado e da luta de comunidades (indivíduos e/ou instituições) pelos direitos humanos, incluindo nesse, o direito humano à informação, à leitura e à literatura. Por muito tempo essas bibliotecas, originadas espontaneamente, estavam relegadas a ações voluntárias e esporádicas. Seus acervos eram exclusivamente resultantes de doações, impossibilitando o desenvolvimento de um acervo que atendesse às necessidades da comunidade. Nos últimos dez anos, porém, nota-se uma crescente mobilização de redes de bibliotecas comunitárias como a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC) e a Rede Vaga-Lume. As bibliotecas comunitárias protagonizaram em vários municípios do país, o processo de mobilização de políticas públicas do livro e da leitura, como os Planos Municipais e Estaduais do Livro e da Leitura (PMLLB e PELLB), acompanharam muito de perto o processo de aprovação da Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE), defendendo seu reconhecimento enquanto biblioteca de acesso público, preservada sua identidade de biblioteca comunitária, cuja gestão é feita por mediadores de leitura da comunidade. A formação e a ação do mediador/a de leitura, a atualização do acervo, a programação diversificada e a manutenção dos espaços físicos das bibliotecas são elementos essenciais para a sustentabilidade desses equipamentos de cultura. Esses/as mediadores/as têm transformado suas vidas e de suas comunidades que saem da condição de “não leitoras” para ingressar no “universo leitor”. E nós sabemos bem os benefícios individuais, coletivos e públicos que o acesso à leitura promove. Essa ação que as bibliotecas comunitárias desenvolvem há décadas precisa ser reconhecida e custeada, também, com recursos públicos, pois está sendo realizada uma ação de benefício coletivo. As políticas públicas do livro e da leitura precisam contemplar as bibliotecas comunitárias, reconhecer sua atuação nessa cadeia mediadora da leitura e muitas vezes criativa e produtiva – Quantos autores de comunidades periféricas têm nas bibliotecas comunitárias o seu lugar de criação e de produção literária? Quantos livros e selos independentes têm surgido?. Reconhecemos, também, que outros atores precisam ser envolvidos nessa sustentabilidade: empresas, indivíduos, organizações sociais por meio de parceria e de custeio das formações desenvolvidas pelos mediadores/as. Precisamos concorrer menos a editais e pensar mais em projetos colaborativos ou o desejado “país de leitores” vai demorar muito para se realizar.
Bel Santos Mayer – A publicação As crianças e os livros: reflexões sobre a leitura na primeira infância (2017) que tem você como uma das organizadoras, apresenta o olhar da cadeia criativa, produtiva, mediadora e gestora do universo da leitura e escrita literárias e bibliotecas. As últimas páginas trazem o depoimento de uma mãe, Mariana Rosa, sobre as aproximações propiciadas pela literatura, entre ela e a filhinha Alice, de três anos, portadora de disfunções neuromotoras. Mariana diz: “A leitura nos convida ao aconchego dos corpos, ao contato das mãos, à sintonia da respiração, à junção das vozes, à conexão sutil dos gestos. A leitura, e somente ela, cria contexto e cenário privilegiados a esse encontro”. Qual o lugar das Marianas e Alices nas bibliotecas públicas?
Fabíola Farias – Infelizmente, ainda não conseguimos garantir acessibilidade em nossas bibliotecas. Faltam infraestrutura, investimento e, em grande medida, compreensão de que todas as pessoas têm direito a usufruir de equipamentos culturais e serviços. Para que haja um efetivo avanço nesse aspecto, tudo isso precisa ser traduzido em recursos financeiros. Embora haja a obrigatoriedade legal e o entendimento dos profissionais que trabalham nas bibliotecas, a acessibilidade plena, que envolve muito mais que rampas, banheiros adaptados, portas largas, sinalização e elevadores, parece distante de nossa realidade. Em projetos menores, com atuação mais restrita, começamos a desenvolver boas experiências, como no Ler, brincar e aprender em família, desenvolvido pela Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte em parceria com o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente e com o Itaú Social. Nesse projeto, que contempla a melhoria do serviço e da infraestrutura para o atendimento à primeira infância em nossa rede de bibliotecas públicas, criamos pequenas bibliotecas /espaços de leitura em casas de acolhimento institucional que atendem crianças muito pequenas, algumas delas com deficiência ou necessidades especiais. Nas visitas de acompanhamento a essas instituições, contamos com o trabalho sensível e sofisticado da Juliana Daher, que é terapeuta ocupacional e narradora de histórias. Além de ler, brincar e cantar com as crianças, Juliana trabalha com as mães e as profissionais que estão junto às crianças, tentando estimular vínculos entre adultos e crianças a partir das leituras e brincadeiras, mostrando tempos e demandas distintas entre os pequenos. A criação de condições adequadas para o atendimento a pessoas com deficiência, incluindo a formação dos profissionais, está entre nossas prioridades.
Fabíola Farias – Como Adorno, penso que todo projeto de Educação tem um único fim: impedir a barbárie. Vivemos um momento de muitas tensões, tendo a todo instante o questionamento conservador de conquistas que acreditávamos em processo de consolidação e a tentativa de esvaziamento de lutas por direitos fundamentais. Apesar de toda a produção de riqueza material e de conhecimento no mundo, milhões de pessoas passam fome, não têm moradia e assistência social. No seu entendimento, de que maneira as bibliotecas podem contribuir para a construção de um processo de formação para os direitos humanos?
Bel Santos Mayer – Respondo essa sua pergunta em um momento bastante desafiador para o nosso país, com relação aos direitos humanos. No ano em que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) faz 70 anos e a primeira Constituição Democrática do Brasil faz 30 anos, os estereótipos e preconceitos à diversidade (de gênero, étnica, religiosa, de origem etc.) presentes na sociedade brasileira pautaram uma comunicação violenta, a falta de diálogo e a eleição de um presidente que defende em suas manifestações públicas esse estado de coisas. Projetos de lei que proíbem o estudo de temáticas relacionadas aos Direitos Humanos nas escolas públicas, como o “Escola Sem Partido” (PL 7180/2014) em discussão desde 2014, foram ressuscitados. Os partidários do candidato eleito têm estimulado e acolhido a denúncia de alunos e pais contra professores, contrariando o Artigo 206 da Constituição Brasileira/1998, que garante a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”. Nesse cenário, torna-se urgente o fortalecimento de espaços de formação e diálogo sobre os Direitos Humanos em nossas bibliotecas. Faço parte de uma biblioteca que nasceu de um processo de leitura e reescrita dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos “até que nossas mães conseguissem entender”. A proposta de escrita estava baseada no desejo com que esse documento assinado pelo Brasil após a Segunda Guerra balizasse nossas ações no enfrentamento e prevenção a barbáries. E a partir daí muitas outras leituras se fizeram e articulando textos e outras linguagens que ampliam a reflexão e o debate. A literatura, como as artes de modo geral, inspira, fomenta a criatividade, desperta sentimentos, favorece a expressão de valores, promove empatia entre indivíduos e diferentes culturas, potencializa diálogos, contribui para o desenvolvimento pessoal e coletivo ao ampliar o acesso a informações. Acreditamos que as rodas literárias nos ensinam a conversar, argumentar, defender ideias, nos conhecer, conhecer os outros. Temos uma grande seleção de livros literários que abordam temas que nos ajudam a resistir e existir. Seguiremos realizando ações a partir do encontro com essas obras e seus/suas autores/as. Cuidaremos bem dos nossos, das nossas. Nos acolheremos ainda mais. Ficaremos juntos/as, nos juntaremos a outros/as para proteger e defender os direitos humanos hoje mais que sempre.