Para bons viajantes da imaginação

15/01/2019

 

Por Ana Miranda

Tenho muitos sonhos, estou sempre sonhando, almejando, planejando, querendo, sou uma sonhadora inquieta. Um dos sonhos de minha vida era viajar com meus netos para Roma; eles são netos de um italiano, têm um sobrenome italiano e falam um pouco do idioma italiano que tentei lhes ensinar no dia a dia, por acreditar que a língua é a expressão mais reveladora de uma cultura. As palavras dizem tudo, acredito nisso. E eles, mesmos, tinham um suave desejo de conhecer Roma. Então planejamos a viagem, em seus detalhes, fazendo pesquisas de passagens, hotel, buscando restaurantes de boa comida e acessíveis, passeios... Mas tudo acabou por tornar a viagem impossível – os trabalhos, os cursos, as chuvas, as finanças... Fiquei desolada.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Naqueles dias, andando por uma livraria, vi um extraordinário livro de fotos e textos sobre Roma, história, arquitetura, artes, mitos. Roma é uma cidade tão rica, tão repleta de recantos, detalhes e memória que, dizia o marido de uma amiga: “Uma só vida não basta para conhecer Roma”. Conhecer Roma é conhecer a história da humanidade. É a Cidade Eterna, onde se originou muito do que conhecemos e temos nos dias de hoje. Ali estava, nas páginas coloridas, Roma em sua grande beleza, com seus mistérios, suas esquinas e ruas estreitas, praças, domus, aquedutos, labirintos, cúpulas, anfiteatros, estátuas, fontes, pinturas, capelas, templos, belas ruínas do passado, séculos, tudo sob um céu denso, repleto de heróis e deuses. Roma nas imagens antigas, nas pinturas de Michelangelo no teto da capela sistina, nos anjos de Rafael, no sorriso da madona... Comprei o livro.

Acho que era o Somerset Maugham quem dizia “O viajante sábio viaja apenas na imaginação”. Consolada por esse pensamento, nas noites de nossas férias, li página por página o que se dizia de Roma, para crianças meio descrentes, no início, meio desinteressadas, mas aos poucos arrebatadas pelas imagens e pelos segredos do lugar de seus antepassados, desde a lenda dos meninos amamentados por uma loba, que fundaram a cidade, até as histórias de boêmia e delinquência de Caravaggio. Era a preparação de uma viagem real, mas a viagem na imaginação teve uma força talvez ainda maior do que a realidade. De certa forma, eles conheceram Roma bem mais profundamente do que na viagem real.

A viagem na imaginação tem uma intensidade maior do que a viagem na realidade. Se eu tomo um ônibus, ou vou olhando a paisagem pela janela do carro, do avião, e me distraio por alguns instantes, a viagem continua. Mas, na viagem imaginativa, se me distraio, a viagem cessa, e assim, ela só existe quando estou vivendo-a plenamente. E passei a viajar com meus netos para outras cidades, nas páginas dos livros, antes de fazer a viagem real: Amsterdã, com seus canais repletos de barcos, separando os renques de casas antigas, suas tulipas e tamancos, bicicletas, museus, jardins, recantos, risadas; Brasília, com aquela arquitetura magnífica, o lago prateado, o céu mais colorido do mundo conforme dizem os brasilienses, a catedral que parece um sonho, palácios, blocos de casas geminadas e edifícios baixos, bosques de árvores imensas e floridas. O Rio de Janeiro, São Paulo, a Amazônia...

Nossa próxima viagem, já escolhemos, será para a África. Para isso, leremos livros sobre o continente africano, vamos conhecer lendas de povos antigos, sua sabedoria, seus sofrimentos e alegrias, suas crenças, vamos ouvir as lembranças que Vovô Moussa narra para sua neta no livro Batuque de cores – ele passou meses viajando por doze países, em ônibus cheios de sacos e galinhas, por entre florestas, cidades, aldeias, desertos, planícies, vales, margeando rios e lagos, vendo os animais selvagens em bandos, ou solitários, e Vovô vai comprando as coisas mais bonitas que encontra no caminho, máscaras, jarros, estatuetas, como lembranças de onde passou.

Assim, meus netos estão a conhecer o mundo, e um pouco mais a si mesmos. Porque viajar e ler são maneiras de conhecer o mundo e a si mesmo. E eu, também.

***

Ana Miranda nasceu em Fortaleza, em 1951. Morou em Brasília, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Hoje vive no Ceará. Estreou como romancista em 1989, com Boca do Inferno (prêmio Jabuti de revelação). De lá para cá escreveu diversos romances, entre eles Desmundo (1996), Amrik(1997) e Dias & Dias (2002, prêmio Jabuti de romance e prêmio da Academia Brasileira de Letras). Foi escritora visitante em universidades como Stanford e Yale, nos Estados Unidos, e representou o Brasil perante a União Latina, em Roma.

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