É nas intervenções artísticas que a cidade vira o próprio meio de difusão da poesia. Nessa performance-experiência, os versos ganham as ruas, esquinas, becos e grandes avenidas de cidades como São Paulo, que completa amanhã 465 anos. É o que entende Rita Carneiro, que realiza intervenções poéticas com o coletivo Tear & Poesia. Ela é uma das tantas mulheres bordadeiras que se reúnem para espalhar poemas pela metrópole, bordando-os em tecidos depois distribuídos aos passantes.
Ilustração Marcelo Tolentino
“É tempo de falar por si”, afirma, sobre o momento em que a arte marca presença no contato com as pessoas que encontra pela rua. “Tecer a poesia traz o diferencial que ansiamos nas falas repetidas de canto a canto da cidade.” E é essa solidez do espaço urbano que os diversos artistas que promovem intervenções poéticas querem amolecer.
Um exemplo é Jonas Samaúna, que lê cartas de tarô para as pessoas que encontra na cidade. Para o artista, cada arcano representa uma etapa da vida humana e ganha um poema que escreve. Esse momento de introspecção proposto é inspirado justamente no contrário da cidade – os versos criados por Jonas vêm do sertão de Minas Gerais, das florestas, das montanhas. É de lá que captura suas mais preciosas metáforas que vão relembrar a humanidade aos cosmopolitas.
“A arte traz essa natureza para onde não tem, que é a cidade, o concreto. A poesia vem da essência humana, do profundo da natureza humana. Sinto que o meu trabalho de performance, assim como o trabalho de outras pessoas, vem com essa intenção de nos conectar de novo à nossa natureza de ser humano, nossa natureza de ser a própria natureza”, diz.
Essa relação dúbia com a cidade é bem estudada por Fabiana Dultra Britto e Paola Barenstein Jacques, ambas pesquisadoras da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Elas trazem o conceito de “corpocidade” no artigo homônimo, da “arte enquanto micro-resistência urbana”. Desenvolvem ali a ideia de que o espaço público e a experiência artística conversam: mostram relações entre o corpo e seus “ambientes de existência”. Põe em xeque o que seria um “empobrecimento da experiência urbana” causado pela espetacularização das cidades, da gentrificação de bairros, privatização de espaços públicos, especulação imobiliária. A arte resiste a todos esses problemas típicos de espaços urbanos, servindo às pessoas.
Nesse ponto, Jonas inspira-se no poeta Binho, idealizador do Sarau do Binho, um dos primeiros da cidade. “Ele fala que a função do sarau é o amor. Fala de a gente se encontrar e compartilhar esse contato de ser humano, que era uma coisa tão ancestral, das pessoas se reunirem em fogueiras, contarem histórias e cantarem. Em uma sociedade capitalista e totalmente individualista, a poesia, assim como o sarau, vem nessa intenção de nos conectar de novo, para nos lembrar do que a gente verdadeiramente é.”
Mas sarau é intervenção poética? Para ele, sim. Qualquer ação que utilize espaços antes não utilizados pela arte funciona como intervenção poética. Acontece tanto com o sarau, evento coletivo e programado, geralmente com um tom político, quanto com as suas leituras de tarô, mais individuais e espontâneas, um convite a um momento de autoconhecimento.
Foi assim, aliás, que Serginho Poeta se aproximou do mundo das artes e encantou pessoas com as suas palavras. Ele, que trabalhou por oito anos como motoboy e escrevia apenas para si, criou coragem e apresentou seus versos em uma roda de samba, antes mesmo de se ter notícia dos saraus. Ficou famoso, era conhecido como o “motoboy poeta”. Hoje, faz intervenções pela cidade como as suas estátuas vivas, que leem textos de grandes nomes da literatura. Já encarnou artistas como Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade.
Serginho considera a espontaneidade uma característica fundamental da intervenção poética, o que ele chama de “elemento surpresa”. “A intervenção é uma coisa mais inesperada. Já o sarau é uma coisa mais programada, num local específico onde as pessoas já sabem que vai ocorrer”, completa. Nesses momentos, o elemento “rua” é fundamental. É ali que se dá o diálogo direto com as pessoas, onde ele se inspira para a composição de seus versos autorais. Além disso, é uma forma de fazer com que a literatura chegue a lugares onde ela normalmente não chegaria.
Como é de se esperar, a relação do poeta e ex-motoboy com a rua é bastante intensa e inspiradora. Muitos de seus primeiros versos, aliás, foram criados a partir das voltas de moto pela cidade. “A galera perguntava: ‘Pô, imagina um motoboy que tem inspiração para escrever, o cara andando pela cidade, é muito enriquecedor.’”. Ele concorda.