Como mediar pequenos leitores?

19/03/2019

 

 

Os mediadores de leitura são aqueles que estendem pontes entre livros e leitores. Assim, não estão somente nas escolas e nas bibliotecas, mas também no lares, nos parques e nos hospitais. “Uma boa mediação é aquela que responde aos objetivos do seu contexto particular de ação”, diz Felipe Munita, pesquisador e promotor de leitura, consultor internacional da Unesco em programas de treinamento para mediadores de leitura, um dos convidados do II Seminário Internacional Arte, Palavra e Leitura, que ocorre de 19 a 21 de março, no Sesc Pinheiros, em São Paulo.

O evento, realizado a partir de uma parceria entre Itaú Social e Sesc São Paulo, com curadoria da Comunidade Educativa CEDAC e do Instituto Emília, traz para o centro do debate assuntos como as identidades, os lugares de fala, a cultura nas periferias e o processo de desenvolvimento humano pela leitura e pela escrita. Participam das mesas de conversa Ivan Contente, Silvio de Almeida, Ana Maria Gonçalves, Sueli Carneiro, Margarita Valencia (Colômbia), Rudine Sims Bishop (Estados Unidos), Silvia Castrillón (Colômbia), Bel Santos e Sarah Bertrand (Chile). Em 2018, o seminário apresentou um panorama da leitura na primeira infância.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Uma das atividades do Seminário é a oficina Eu, mediador de leitura literária liderada por Munita para (re)pensar as práticas de mediação de leitura, principalmente no contexto escolar, com momentos de exposição, para aprofundar o conceito de “mediação de leitura”, e momentos de trabalho em grupo. Coordenador do curso de Promoção de Leitura e Literatura para Crianças e Jovens da Universidade Austral do Chile, ele traz um pouco de sua tese sobre o papel do mediador da leitura, estudo que lhe rendeu a menção de Doutor Internacional e o Prêmio Doutorado Extraordinário pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB). 

No bate-papo a seguir, Munita antecipa algumas de suas ideias e propostas para o universo da mediação de leitura – sua oficina e mesa de debate no seminário estão com inscrições esgotadas.

 

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Como foi o nascimento do Felipe Munita leitor? Você pode contar um pouco sobre os livros que leu, as histórias e mediações que teve na infância?

Tive a sorte de crescer em ambientes de muitas leituras, histórias, músicas. Alguns marcos dos meus primeiros passos leitores: na primeira infância, as histórias que meu pai contava todas as noites antes de dormir (sobre as quais refleti aqui); depois as primeiras leituras autônomas, marcadas por um livro que eu ainda valorizo, Perico trepa por Chile [Perico sobe o Chile, numa tradução livre, da autora chilena Alicia Morel]. Eu queria ser como a criança protagonista que viveu milhares de aventuras viajando por todo o país! Já no Ensino Médio, devo muito a um professor de História que me ajudou a descobrir a magia da poesia e, com sua paixão pelos ensaios de Eduardo Galeano, me ofereceu uma introdução imbatível ao universo das humanidades.

 

Em entrevistas, você comenta sobre o significado de mediação para algo além de uma resolução de conflito, e sobre o mediador como um conciliador. Pode explicar esse pensamento? Em que consiste a mediação de leitura e quem pode realizá-la?

Historicamente, a palavra mediação tem sido associada a situações de conflito. A leitura não é exceção: começamos a falar de "mediadores" quando precisamos expandir essa prática cultural a todas as pessoas que estavam distantes dela. E se para muitas dessas pessoas o universo da escrita estava ligado a situações de imposição e exclusão, é evidente que um componente-chave no caminho para a apropriação dessas práticas letradas devia ser o acolhimento e a hospitalidade fornecidos pelo sujeito que está se aproximando delas. Este é um passo importante, porque nos fez perceber que o eixo sobre o qual nossos esforços gravitam não são as obras em si, mas as pessoas que as apropriam do ato de ler. Em outras palavras: o conceito de "mediação" desloca o centro de interesse dos textos para as pessoas que vivem processos de diálogo consigo mesmas, com os outros e com o mundo através (ou desencadeados por) desses textos. E quem favorece esse diálogo estará atuando como mediador da leitura.

 

Algumas das suas publicações refletem sobre as contribuições da literatura infantil para o desenvolvimento sócio-emocional das crianças por meio da leitura mediada. Você pode comentar um pouco sobre esse processo?

Um dos mais belos projetos de que tive a sorte de participar são as pesquisas lideradas por Enrique Riquelme, no sul do Chile. Elas demonstraram que a leitura mediada da literatura infantil é uma ferramenta poderosa para o desenvolvimento emocional de crianças pequenas: crianças na Educação Infantil e nos primeiros níveis do Ensino Fundamental que participam diariamente de situações de leitura expressiva por parte do mediador, acompanhadas de espaços de conversas sobre essas obras, ostensivamente melhoraram suas habilidades para reconhecer e regular suas emoções, bem como desenvolver ligações empáticas com os outros. Mas isso não acontece usando aquelas histórias literárias tão pobres que geralmente integram as coleções de livros sobre emoções (aquelas histórias "sobre" medo ou "sobre" alegria), mas acontece com boas obras literárias cujas situações refletem a diversidade, profundidade e complexidade dos mundos emocionais próprios da experiência humana. Para dizer claramente: a ficção nos educa de maneiras muito mais sutis do que muitos adultos acreditavam!

 

O que caracteriza uma boa mediação de leitura nas escolas, bibliotecas e dentro de casa? Quais são as especificidades de cada ambiente?

Pensemos assim: cada contexto atrai modos particulares de mediação, pela simples razão de que os objetivos variam enormemente em ambos os casos. Se pensarmos, por exemplo, na mediação da leitura em contextos sociais ou espaços não convencionais, por um lado, e na mediação da leitura no contexto escolar, por outro, encontramos grandes diferenças relacionadas à razão de ser de cada espaço. Eu aponto pelo menos uma: os objetivos que nossas sociedades atribuem à escola no campo da leitura têm a ver, entre outros aspectos, com a capacidade dos alunos de progredir como leitores ao longo de sua escolaridade. Isso é avançar para obras mais complexas e leituras cada vez mais complexas dessas obras. Um objetivo como esse requer formas de mediação muito diferentes das que, por exemplo, faz o responsável de uma biblioteca pública ou o monitor de oficinas de leitura em hospitais, mediadores que provavelmente irão articular suas práticas em relação a outros objetivos socioeducativos. Isso pode ser tomado como um ponto de partida para responder à sua pergunta: uma boa mediação é aquela que responde aos objetivos do seu contexto particular de ação.

 

Como escolher livros para trabalhar com crianças nas escolas? Quais critérios devem ser observados?

Talvez a melhor maneira de responder a isso seja lembrar as duas perguntas levantadas por Teresa Colomer sobre a seleção de leituras: “para quem?” e “para quê?”. Ou seja, escolher obras que sejam de qualidade, mas sem esquecer os leitores que temos na frente (seus perfis, seus gostos ...), por um lado, e os objetivos educacionais que buscamos, por outro. Esse último ponto é importante, pois nem sempre trazemos obras para a sala de aula com o mesmo propósito: às vezes trazemos textos para provocar uma rápida identificação dos alunos com um personagem, outros para refletir sobre um assunto, outros para construir coletivamente um sentido simbólico... E é evidente que diversos objetivos supõem uma seleção igualmente diversa.

 

Quais são as estratégias para atrair crianças que não são leitoras? Pensando em crianças vulneráveis, longe de ler ambientes, como fazer essa inclusão?

Criando situações em que o mediador acompanhe esses meninos e essas meninas cuja primeira resposta à leitura é a rejeição. Geralmente não é suficiente, como alguns gostariam, dizer a essa criança não leitora: “Toma esse livro… E agora divirta-se!”. A arte do mediador é criar situações que favoreçam o encontro dessa criança com um texto e levá-la a descobrir suas próprias razões pelas quais vale a pena ler. Em outro lugar, refleti sobre isso a partir do caso de Catalina, uma garota que detestava um livro que, após uma intervenção mediadora, acabou sendo o seu favorito. Quem estiver interessado pode vê-lo aqui.

 

O que é necessário para uma boa formação de mediadores? Você pode indicar algumas referências de pesquisa e leitura para mediadores e futuros mediadores? 

Esta é uma pergunta cuja resposta seria necessário um desenvolvimento maior do que estas poucas linhas, mas pelo menos deixo exposto um ponto que me parece fundamental: a importância de incorporar, no processo de formação, o leitor e a leitora que o mediador adulto traz consigo. Se nos esquecemos da nossa relação pessoal (e passional) com os textos, é difícil provocarmos esse tipo de relacionamento nos outros. Formar mediadores é, em primeiro lugar, ler com eles... para depois refletir sobre essas situações e experiências pessoais de leitura.

 

Considerando os atuais projetos e modelos de mediação: Quais são os próximos passos dessa ação? Você poderia exemplificar projetos de mediação de destaque?

Felizmente, hoje em dia temos interessantíssimas experiências de mediação, desenvolvidas nos mais diversos contextos geográficos e socioeducativos. Desde projetos no âmbito comunitário, tais como "piquenique de palavras", que estão sendo feitas em vários países latino-americanos para promover espaços de reunião social e familiar em torno de livros, até outros em ambientes escolares, que se multiplicaram exponencialmente nos últimos anos.  Bons exemplos são as intervenções educacionais, como o belo projeto “First literary dates” ["Primeiros encontros literários", em tradução livre] da professora Rosalía Delgado (para citar apenas um), que tem centrado a promoção da socialização entre os leitores, um aspecto que durante muito tempo foi bastante esquecido nas escolas e para as quais devemos prestar atenção especial ao pensar nos próximos passos da mediação da leitura.

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