Saraus, feiras de livros, encontros com autores, rodas literárias… Muitas são as formas de trazer a leitura para o ambiente escolar. Mas como fazer com que tal prática, um direito de todos, seja um hábito recorrente na escola? Como formar alunos que sejam efetivamente leitores críticos? Nas discussões que buscam possíveis respostas para essas questões nada simples, um caminho tem sido cada vez mais debatido: a importância da criação de uma comunidade escolar leitora.
Ilustração Marcelo Tolentino
"Leitores, em geral, são considerados solitários justamente por terem pouco espaço para falar de sua paixão", diz Celinha Nascimento, mestre em Literatura Brasileira, assessora especialista em leitura, literatura e projetos de língua. Afinal, como ela argumenta, se existem comunidades de pessoas que gostam de automóveis, de apaixonados por jogos virtuais e até quem se relacione por gostar de um mesmo programa de TV, por que não fazer o mesmo com a leitura?
No entanto, formar uma comunidade escolar leitora não é uma tarefa das mais simples. É preciso que todos colaborem: alunos, professores, funcionários e familiares. Para que isso aconteça, a leitura não pode fazer parte apenas de eventos pontuais voltados ao tema, mesmo que eles sejam importantes. Não podem estar apenas nas aulas de Língua Portuguesa ou de Literatura. Devem ser valores de uma comunidade.
Quem fala disso é Délia Lerner, em seu livro Ler e escrever na escola: o real, o possível e o imaginário (editora Artmed), grande referência no tema. Para ela, uma comunidade de leitores recorre a textos para achar respostas, compreender melhor um aspecto do mundo, para identificar-se com autores ou diferenciar-se deles, entre tantos outros aspectos. Tal grupo também escreve para mostrar suas ideias, informar fatos, protestar, reclamar. Uma comunidade de leitores é formada pelo que ela chama de "cidadãos da cultura escrita", pessoas que se apropriam desses recursos como práticas sociais.
E a escola é um lugar favorável para essas práticas. É ali que o livro, além de objeto de prazer – o que deve permanecer na escola – ganha uma outra dimensão, como defende Celinha. Nesse espaço, leitores dos mais diversos podem dizer não apenas "se gostaram ou não da obra, mas por que gostaram, como gostaram, o que a narrativa suscita de discussões e aprendizados sobre o imenso mundo que nos cerca, que obras são referências, que pontes podemos estender a autores, gêneros e temas, quais trechos podemos avaliar como inesquecíveis, quais palavras aprendemos, quais personagens gostaríamos de levar para um passeio ou um café", diz.
Uma boa estratégia para colocar isso em prática? Compartilhando os momentos de leitura, para que os participantes possam "se sentir verdadeiramente em uma comunidade". Para valorizar o que Celinha chama de "potência da não solidão do leitor", valem práticas como clubes de leitura, slams, troca de livros, entrevista com escritores, visitas a bibliotecas… Não se trata apenas de ler uma grande quantidade de livros, mas de "falar sobre eles, discutir narrativas e ideias, aprofundar temas, gêneros e autores, emocionar-se com as leituras", assim como explica a pesquisadora.
Trata-se também de compartilhar e expandir as obras lidas, como chama a atenção a espanhola Teresa Colomer em seu Andar entre livros: a leitura literária na escola (editora Global), outra obra que trata do tema, sugerida por Celinha. É assim que se forma uma comunidade escolar leitora, atribuindo ao ato de ler um valor fundamental: cultural, social e afetivo, que abre possibilidades para a humanização de quem tenta entender melhor o mundo.
Para se inspirar
Não faltam projetos que busquem formar uma comunidade escolar leitora. No Centro Municipal de Educação Infantil A Baba do Passarinho, em São José dos Pinhais (PR), por exemplo, houve uma iniciativa chamada Comunidade leitora, comunidade atuante. Eles optaram por realizar "momentos para estudos, leituras e reflexões em reuniões pedagógicas, suporte para a produção de sequências didáticas, ampliação do acervo literário da unidade, tematização das práticas e melhorias dos espaços de leitura." Relatam que o resultado foi de "pessoas mais envolvidas com a leitura”, lendo ou falando sobre o assunto. Perceberam tanto crianças quanto adultos que desenvolveram "comportamentos leitores" e profissionais que melhoraram as suas práticas ligadas à literatura.
Outro caso foi da Escola Municipal Presidente Tancredo Neves, em Belo Horizonte (MG). Ali, toda sexta-feira era dia do Livro na cesta, em que auxiliares da biblioteca circulavam pela escola cestas de livros para empréstimo de professores e outros funcionários do local. A média semanal era de 18 empréstimos. A certa altura, os alunos passaram a participar do projeto, realizando junto aos bibliotecários um cortejo até a Sala dos Professores, no horário do recreio. Os estudantes ficavam curiosos para saber quem pegou qual livro – e acabavam reservando alguns dos títulos para ler na próxima semana. Além disso, a biblioteca criou perfis em redes sociais em que postavam informações variadas sobre livros, leitura e cultura em geral, dialogando de outras formas com os alunos sobre práticas de leitura e manifestações culturais.
Já na ONG Turma da Touca, localizada no bairro de Campo Limpo, em São Paulo, a busca original era por empoderar as educadoras, ensinando-lhes estratégias de metodologia científica que as ajudasse a pensar a própria prática. Dessas investigações, surgiram algumas ideias, como o projeto de leitura em casa, que existe desde 1996, orientado pela pós-doutora em educação Gisela Wajskop.
No projeto, a comunidade leitora se expande para as famílias dos alunos. Nas livreiras, objetos presentes na sala de aula que servem como suporte para os livros, os estudantes escolhem as obras que mais lhes atraem e que querem levar pra casa, onde poderão ler com seus parentes. Desde então, muito mudou no acesso à educação pelos moradores do bairro, mas certo é que formou-se uma comunidade leitora em torno da creche. Entre os alunos, era comum que alguns chegassem na segunda-feira vestindo a fantasia de seu personagem preferido do livro. Mas um acontecimento curioso chamou a atenção das educadoras: um aluno chegou a pedir à professora que enviasse um bilhete a sua mãe, que não havia lido o livro com ele no fim de semana anterior. Para os envolvidos, as transformações são evidentes: crianças leitoras trazem mais questionamentos como esse.
Celinha Nascimento cita uma iniciativa da qual participa: o Clube de Leitura da Escola Castanheiras, em que é mediadora. Uma vez por mês, pais, estudantes, funcionários e amigos reúnem-se para discutir algumas obras. Não raro, pais e professores também se dispõem a ler os livros de interesse dos alunos. "Muitas vezes o grupo é instigado a ler obras que não leriam fora do clube por não ser do interesse ou de uma paixão à primeira vista. Nem sempre todos gostam do que leram, mas na maioria das vezes se apaixonam", conta.
Para saber mais
Andar entre livros: a leitura literária na escola, de Teresa Colomer (editora Global)
Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário, de Delia Lerner (editora Artmed)
A constituição de uma comunidade de leitores na escola, de Sandra Medrano (revista Emília)