Como a literatura traz (ou não) as diferentes infâncias?

29/04/2019

 

Criança lê o quê? Ou o que é escrito é para qual criança? Essas são questões que vão permear as rodas de conversa do 6? Fórum do Espaço de Leitura, nos dias 3 e 4 de maio, no Parque da Água Branca, em São Paulo. Entre os convidados a refletir sobre universo infantil e sua produção, repensando a elaboração de conteúdos e práticas direcionadas às crianças e aos jovens, está o historiador, escritor e capoeirista Allan da Rosa, integrante do Núcleo de Consciência Negra da ECA-USP, estudioso de imaginário, cotidiano e ancestralidade negra na cidade. 

“O cotidiano, as histórias familiares, as linguagens, a pluralidade de formas de viver que nossa gloriosa e aguerrida ancestralidade cultivou e que pulsam num quintal de família preta ou numa viela periférica de metrópole não são contempladas nem de raspão pelo pensamento mandante no Brasil. É uma pena, pois isso é virulento e truculento mesmo quando parece sutil”, diz explica o autor de obras como Reza de mãe e Zumbi assombra quem?, ambas pela Editora Nós.

 

Arte do livro Zumbi assombra quem?

 

“O que chamam de ‘específico’ precisa ser repensado. Específico para quem?”, questiona. Para o historiador, o ponto de discussão surge sobre essas obras “específicas” para diferentes crianças serem lidas e postas em lugares diferentes como as próprias crianças o são. “O que se emana do centro, o que é assinado pela mão branca, o que se padronizou como correto e civilizado é tido como universal e o que resistiu e segue anunciando desde as beiradas é considerado ‘específico’”, explica o leitor de Cuti, Dinha e Marcelo D’Salete, entre outros.
 
Na conversa a seguir, o autor fala sobre a importância do sintonizar escola-comunidade-grupos artísticos culturais, do racismo estrutural na sociedade e do poder do jovem leitor – “poder” não enquanto substantivo, mas enquanto verbo. Confira (e não perca sua inscrição, gratuita, no site www.espacodeleitura.com).

 

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Quem é Allan da Rosa e qual sua história? Como foi sua entrada para o universo literário e artístico? E o que alimenta seus processos criativos?
 
Sou escritor de ficção, angoleiro e historiador. Participo desde o princípio do movimento de literatura das periferias de São Paulo. Sou mestre e doutorando em educação pela USP, pesquiso e atuo na área de ancestralidade, imaginário e cotidiano, especialmente a história e os sentidos dos homens pretos de São Paulo, suas águas do corpo e da cidade desde o século XIX. Escrevo dramaturgia e participo de companhias de teatro negro também. O que me nutre é a necessidade e o gosto pela arte do verbo e as tranças e labirintos que ela abre na compreensão do ser humano.
 
Em uma roda de conversa, você comenta sobre uma pluralidade de expressões e formas de entender e viver no mundo, que não podem ser classificada em uma escala de valores, mas que há a imposição de uma visão sobre as outras. Para você, a literatura infantojuvenil enxerga todas essas diferentes crianças? Como você vê que esse cenário surgiu? Quais são as ações/posicionamentos que alimentam essas imposições?
 
Talvez esteja citando alguma fala sobre imposição de valores que a branquitude e o sistema oficial nacional e midiático chapam na nossa criançada preta e de quebrada. Se isso, sim. São poluentes o que se produz e oferece nas grandes antenas e prateleiras para a meninada daqui. O cotidiano, as histórias familiares, as linguagens, a pluralidade de formas de viver que nossa gloriosa e aguerrida ancestralidade cultivou e que pulsam num quintal de família preta ou numa viela periférica de metrópole não são contempladas nem de raspão pelo pensamento mandante no Brasil. É uma pena, pois isso é virulento e truculento mesmo quando parece sutil. E também porque editoras nem imaginem o quanto perdem inclusive mercadologicamente. Mas nada surpreendente isso ocorrer também em literatura e especificamente na literatura infantojuvenil, é apenas mais uma face do racismo estrutural do país, fincado desde os tempos de colonização portuguesa.
 
Como são entendidas as crianças pelos autores, artistas, mediadores e demais produtores/disseminadores de conteúdo? É necessário que eles moldem suas produções (em história, formato e estética) a esse público, ou que as crianças se adaptem aos formatos e conteúdos dos produtores? Por que nos perguntar sobre “quem é esse jovem que tanto queremos que leia”?
 
Em geral, percebo que são contempladas como um bolso pra se encher, o que é uma pena. E a literatura, feito tantas outras instituições e lugares, atua como mais uma máquina de formar brancos, como a escola, a mídia graúda, as secretarias de governo voltadas a arte e cultura etc. Sinto nas rodas de prosa aqui nos becos, escadões e ladeiras que a mulecada e a rapaziada têm essa visceral habilidade em questionar, em transformar drástica ou prazerosamente o que recebe. Ao mesmo tempo, pode chafurdar no bombardeio de referências distorcidas de nossa própria história. É nessa fresta que fazemos nossa horta. Os movimentos estéticos e políticos das quebradas, o movimento negro criativo em literatura, especialmente nos últimos 40 anos, fez florescer muito caldo saboroso e de sustança nessa luta que ferve dentro da cabeça leitora e acaricia o peito de nossa gente.
 
Qual a importância de trazer uma voz específica no cenário literário nacional para um leitor que já está inserido nessa realidade, como o uso pedagógico de títulos da literatura marginal em escolas da periferia? E para o leitor que não conhece essa realidade, pensando, por exemplo, no álbum Sobrevivendo no Inferno do Racionais como obra obrigatória em vestibulares de universidades públicas?
 
Poder. Mas não o poder como substantivo, e sim o poder como verbo. E o que chamam de “específico” precisa ser repensado. Específico para quem? Porque o que se emana do centro, o que é assinado pela mão branca, o que se padronizou como correto e civilizado é tido como universal e o que resistiu e segue anunciando desde as beiradas é considerado “específico”. Obras como a de Racionais, se lidas além de ouvidas, podem tanto oferecer a grandeza da sensibilidade negra e periférica quanto desestabilizar esse centro, esse prisma, essa boca do estudante branco e de classe média. Oferecer a coceira frutificante e o incômodo fértil. 
 
Aliás, sobre a pergunta anterior: como vê o uso de termos como “literatura marginal” ou “literatura periférica”? Sugere outros?
 
Marginal, periférico, de quebrada, preto, negro, maloqueiro... É tudo nosso. Ganha sentidos a se discutir e a se desfrutar em cada roda diferente, em cada leitura diferente. Mas nossa obra é antes de tudo uma obra. Não deve se garantir pelo adjetivo, mas sim pela força e leveza, pela arquitetura que traz em si, mesmo que seja sem informações e legendas prévias.
 
Na escola, há uma grande necessidade de expressão por parte do jovem marginalizado visto nas artes e pixos frequentes em livros, cadeiras, paredes. Como tornar esse jovem não apenas um leitor/consumidor, mas um também produtor? Quais agentes podem contribuir e como (pensando nas escolas, nos mediadores de leitura, no mercado editorial, entre outros)? E como você trata isso nos eventos culturais que organiza?
 
Creio que o melhor para essa discussão render nas escolas é criar uma sintonia com os movimentos artísticos e culturais dos bairros que envolvem e integram a própria escola. Cada comunidade ou mesmo os bairros próximos da escola geralmente têm vários coletivos de arte aptos a dialogar e criar em conjunto com estudante, professoras, pedagogas e demais funcionárias da escola. Para isso sinto que podemos repensar didáticas, pedagogias, tempos e estéticas nos pátios e salas de aula. O conhecimento e a sensibilidade do que você chamou de “jovem marginalizado” nem sempre vai chegar cheio de ternura e, sim, vai trazer textos e vivências que a história oficial em geral quer apagar. Temos visto muita intenção de domar, e não de fortalecer, em práticas que se dizem inclusivas. Esse conflito entre a rua e as instituições pode ser frutífero e pode ser desolador, depende do quanto e de como se relacionam o que parecem ser diferentes.
 
Por fim, sua obra Zumbi assombra quem? traz uma história que afirma positivamente uma identidade. Já Reza de mãe conta 14 narrativas de pessoas de diferentes idades, procedências e destinos, quase todas pretas e pobres, mas nem por isso reduzidas à sua cor e à sua condição. Como podemos pensar nessa abordagem com denúncia social, mas com personagens complexos que não são apenas vítimas no mundo? É necessário que o autor esteja próximo ou seja pertencente à esses grupos? Quais outras obras você destaca positivamente pelas suas narrativas e autores?
 
Como artista, hoje estou bem cabreiro com as armadilhas da chamada representatividade. Me interessa, me machuca, me encanta e me adoça sacar a complexidade do ser humano, suas contradições e o quanto moldura nenhuma dá conta do imprevisível que a gente é. Basta andar, ouvir, ler as íris e as mãos do povo pra perceber que tacho nenhum e vitrine nenhuma com o carimbo da diversidade dá conta da profundidade de ser gente. Com imaginação, vivência e linguagem espero contemplar com dignidade e sabor o que se pinta nas bordas e o que borbulha no peito do pessoal.
 
Sobre o livro Zumbi ainda me pergunto se ele é infantojuvenil mesmo... Talvez seja... Mas sei que todas as idades podem lê-lo. Sobre “pertencer ao grupo”, apenas isso não dá aval para nenhuma caneta ou câmera, mas diante de tanta tese escrita sobre nós de fora da dentro, é algo positivo, se não se deixar arrebanhar pelas expectativas e previsibilidades que costumam ser peso no cangote de quem se põe como representante de alguma banca, de algum povo.
 
Como referências de artistas do verbo, várias. Da minha geração: Dinha, Jenyffer Nascimento, Akins Kintê, Fábio Mandingo, Marcelo D’Salete. De mais velhas, várias também. Por enquanto deixo apenas o nome do mestre Cuti. Só mesmo um país muito racista para não valorizar a obra de Cuti, imenso ficcionista, teórico, pesquisador e dramaturgo, referência imensa de caneta criadora pra minha gente.

 

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