Atrelar a experiência de voluntariado à formação de uma comunidade leitora, incidindo especialmente as crianças. Essa era a ideia inicial do projeto espanhol Lecxit, iniciado em 2011, na Catalunha, resultado de uma parceria entre a Obra Social “La Caixa”, a secretaria de educação local e a Fundação Jaume Bofill. Cinco anos mais tarde, Pilar Lacerda, diretora da Fundação SM, traz o programa para o Brasil, com um projeto-piloto em São Paulo. Chama-se Myra – Juntos pela Leitura, que, em tupi, remete a grupo, coletividade – e incentiva a relação de um tutor para um aluno, na criação de vínculos afetivos para que as crianças que enfrentam dificuldade em ler possam, enfim, encontrar prazer nessa atividade.
As escolas selecionadas para receber o programa aplicam uma avaliação elaborada e, depois, corrigida pela Comunidade Educativa CEDAC aos alunos dos 4º, 5º e 6º anos, para dessa forma localizarem quais alunos irão participar das sessões semanais de uma hora. Os tutores voluntários passam por um processo de formação e, quando vão para essas sessões, têm total liberdade para selecionar quais serão as leituras junto aos alunos com quem partilharão o ano letivo. "É nessa mediação, em espaços da escola que não necessariamente a sala de aula, com vínculo de afeto, que essas crianças vão desenvolvendo o interesse e a alegria de ler. E a leitura mediada é importante porque vai abrindo portas", comenta Pilar Lacerda sobre a estrutura do projeto.
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Ao final do ano, terminada a tutoria, os alunos realizam a mesma avaliação para que seja possível analisar os resultados do acompanhamento personalizado. ?"A avaliação faz parte de todo o processo de ensino e aprendizagem. Vista como uma ação continuada, a avaliação não precisa, necessariamente, estar associada a obrigações ou atividades menos prazerosas. Vale ressaltar, no entanto, que a leitura, nem sempre, é uma atividade prazerosa. Ler, muitas vezes, é penoso, demanda esforço, o que, para muitas crianças, só se torna prazeroso com o tempo e com ajuda de outros – um colega, um adulto, um professor, um tutor. Vencer os desafios que ler de modo autônomo e crítico exigem pode, sim, ser extremamente prazeroso. Tomar consciência, progressivamente, das dificuldades e poder contar com a ajuda de um leitor mais experiente é um primeiro passo para uma relação mais prazerosa – no sentido mais amplo que a palavra prazer possa ter – com a leitura", conta Cristiane Tavares, coordenadora pedagógica da CEDAC.
O projeto está articulado com o conceito de Cidade Educadora. "Daí a aposta em sujeitos-tutores não diretamente vinculados à educação formal da criança (escola e família). Apesar disso, escola e família são parceiras no projeto, ainda que não atuando diretamente na tutoria das sessões", completa a coordenadora. Assim, reitera-se a ideia de que "é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança". A comunidade se reúne em torno de um mesmo objetivo, cada um desempenhando uma determinada função para atingi-lo. O voluntário se comprometendo, a escola orientando o aluno e percebendo suas demandas e a família estimulando a reverberação desse envolvimento literário dentro de casa.
O "vínculo de confiança e afeto que se estabelece entre o adulto-educador e o estudante gera uma condição favorável para a aprendizagem", explica Cristiane. As crianças que participam dessa atividade de leitura guiada foram percebidas como mais confiantes, inclusive, para tirar dúvidas e melhorarem seu desempenho escolar em outras áreas do conhecimento, não apenas na literatura. A prática também possibilita um direcionamento específico, de acordo com as necessidades e dificuldades individuais. O voluntário, em contrapartida, pode ampliar seu repertório leitor, "não apenas no que diz respeito ao conhecimento de títulos, mas principalmente no que se refere aos modos de ler e conversar sobre o lido". Os caminhos para desenvolver as sessões são inúmeros e inventivos.
"No último encontro, fizemos a atividade nove do material do voluntário, leitura de poemas. Lemos alguns do Manuel Bandeira, primeiro Mote e Glosas e A estrela, fazendo uma relação com Fonchito e a lua, do Vargas Llosa, um lindo livro-álbum que havíamos lido noutro dia; depois lemos Rondó do Capitão e ouvimos a música de mesmo nome do grupo Secos e Molhados, acompanhando a letra pelo poema. Lemos também alguns poemas de O triste fim do pequeno menino ostra, do Tim Burton, que tem temas e ilustrações inusitados e muitas vezes engraçados. Foi legal brincar com entonação e preparação de leitura em voz alta, conversar sobre rimas e ritmos, e as atividades propostas no nosso manual funcionaram muito bem. Acreditam que ainda deu tempo de fazermos um marcador de página e algumas anotações no Livro do Leitor?", conta a voluntária Carolina Carvalho.
Desde 2016, já integraram o Myra aproximadamente 245 voluntários e 245 crianças. Esse número foi evoluindo gradativamente ao longo do tempo. No primeiro ano, quando apenas uma escola foi atendida, 12 crianças receberam o apoio dos tutores. No ano seguinte, tanto o número de escolas quanto o de crianças dobrou. Mais um salto em 2018, quando quatro escolas passaram a ser atendidas, todas da rede pública: Escola Municipal de Ensino Fundamental Coronel Ary Gomes, Escola Municipal de Ensino Fundamental Cacilda Becker, Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima e Escola Estadual Alfredo Paulino. São 105 de seus alunos que participam do projeto.
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Em 2018, com editais para que as escolas interessadas se inscrevessem para receber os voluntários, o projeto também expandiu-se para um polo em Santana de Parnaíba. "Apresentamos o Myra na Secretaria de Educação, para o secretário e os diretores de ensino, e eles adoraram, acharam um projeto diferente, principalmente por essa relação de um para um", explica Bruna Astrini, Fundadora e Coordenadora da organização social Projeto Arte SIM. Nesse sentido, o programa se modificou um pouco do polo principal. Em vez de abrir o canal para que as escolas entrem em contato para participar, a secretaria de educação que fica encarregada de fazer essa seleção. De todo modo, é um ganho para o programa que nunca teve a intenção de ser centralizado em um único município ou controlado por uma mesma equipe.
A exemplo disso, qualquer pessoa interessada, sem a necessidade de um cadastro prévio, pode acessar os materiais que são disponibilizados aos voluntários, à escola, aos alunos e às famílias. Neles, são compartilhadas dicas de como criar um ambiente favorável à leitura, sugestões de livros para os tutores lerem com as crianças, formas de guiar essa leitura, entre outros conteúdos. Trata-se de uma ideia que se fortalece à medida que ganha a atenção de mais pessoas.
No emaranhado de problemas em que se percebe a educação pública brasileira hoje, o Myra surge como alternativa de educar a partir de laços. "Afetar-se com e afetar o outro é fundamental para aprender, ensinar, se relacionar. E a leitura, em especial a literária, é experiência carregada de subjetividade, um encontro entre modos de ser e estar no mundo, mediados pela palavra escrita. Afeto e compromisso com a aprendizagem do outro são princípios preciosos para o Myra. Afeto é imprescindível para gerar a cumplicidade necessária a todo voo que se queira fazer, no universo das leituras científicas ou imaginárias", conclui Cristiane.