Para a especialista Aline Frederico, o livro digital tem grande potencial para ser lido por crianças de todas as idades, em casa e na escola. “Um aluno que lê muita literatura digital provavelmente vai ser um aluno que entende melhor como funciona a comunicação digital, pois ele vai internalizando esse novo paradigma com textos de qualidade”, explica e estudiosa em entrevista para o Blog da Letrinhas. Em defesa da literatura digital, a pesquisadora comenta sobre esta mídia, seu uso nas escolas e a importância do letramento escrito e multimodal digital, além de dar algumas dicas de obras de referência.
Aline Frederico é formada em editoração e, com experiência no mercado editorial, acompanhou o grande impulso para a criação de conteúdos digitais na última década. Na transição do material educacional impresso para o digital, havia uma grande preocupação em usar a linguagem correta para transmitir esse conteúdo, o que a motivou a pesquisar a linguagem digital. “Mas na minha pesquisa resolvi me concentrar na área que era a minha paixão, a literatura infantil”, comenta.
Assim, seu mestrado em literatura infantil pela Universidade da Colúmbia Britânica começou analisando as obras de literatura digital em formato aplicativo. “Hoje, prefiro a terminologia aplicativo literário, pois, no fundo, essas obras não são livros, mas acredito que são, sim, literatura”, explica. Aline focou o aspecto lúdico das obras digitais, característica marcante não apenas por causa da interatividade da literatura digital, mas pela performance que o leitor deve ter na leitura dessas obras ? como a gestualidade, por exemplo ? ou em elementos como jogos de palavras, efeitos visuais ou o humor e a ironia criados na relação entre palavra, imagem e som. Essa diversão pode ser aproveitada também no ambiente escolar: “Cada criança na sala de aula irá ler uma obra um pouco – ou muito – diferente da obra do colega, pois com as interações o leitor constrói sua própria narrativa. Isso não é um problema, mas um potencial para discussão muito rico”, afirma.
E essa temática continuou em seu trabalho. No ano passado, concluiu o doutorado em educação e literatura infantil na Universidade de Cambridge, na Inglaterra, numa pesquisa que reuniu a análise literária, a resposta do leitor e um contexto de leitura, pensando num cenário de leitura compartilhada entre crianças e pais. Entre seus resultados, percebia que as crianças ? os participantes tinham quatro anos na época de sua pesquisa ? buscavam durante a leitura realizar gestos que fizessem sentido na cena. “Esse aspecto da corporeidade da leitura digital permite ainda que os leitores criem e tenham uma liberdade para usar a criatividade e “personalizar” sua experiência de leitura”, explica. De acordo com ela, na leitura compartilhada digital, a criança ganha o protagonismo da performance da leitura, e o adulto acaba muitas vezes ficando numa situação secundária, de coadjuvante. Com essa interatividade, há um grande prazer e senso de empoderamento na criança.
Por isso, seja no ambiente familiar, seja no escolar, nota-se uma leitura diferente e específica com a literatura e outras mídias digitais para crianças. Conheça um pouco mais dessas particularidades na entrevista a seguir.
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O que define a literatura digital?
Aline Frederico – A literatura digital é uma literatura que faz uso dos recursos das mídias digitais para construir sua poética. Se num romance, a “matéria” usada para construir a literatura é a palavra escrita em prosa e, num livro ilustrado, se junta à palavra a imagem, o design, a materialidade do livro, na literatura digital podem se somar à palavra a ilustração e a animação, o som, incluindo efeitos sonoros ou a leitura em voz alta da obra, e a trilha sonora. Assim, dizemos que a literatura digital é multimodal, porque ela envolve diversas “modalidades semióticas” ou, colocando em linguajar menos técnico, envolve diversas linguagens: a verbal, a visual, a sonora, a gestual etc. Agora, a literatura infantil tem um longo histórico de combinar a linguagem verbal com outras linguagens, especialmente a visual, como é o caso do livro ilustrado, das histórias em quadrinhos etc. Mas com a literatura digital mais linguagens estão disponíveis para construir o texto literário e temos a linguagem computacional e a interação como elementos também fundantes dessas obras. A interatividade possibilita novas formas de participação do leitor, que ganha poder frente à narrativa, podendo escolher caminhos, relevar partes da história que estavam escondidas, construir seu próprio texto, etc. Há muitas possibilidades de interagir com a literatura digital, e cada obra tende a explorar uma ou apenas algumas dessas possibilidades.
Vale diferenciar que nem tudo o que é literatura e está em formato digital é considerado literatura digital. Um e-book de uma obra de literatura, por exemplo, um PDF do livro ou um ePub (com dicionário e a possibilidade de se alterar o tamanho da fonte e a cor) não costumam ser considerados literatura digital, mas literatura digitalizada, porque ainda que a linguagem digital altere como esses textos são apresentados ao leitor, o conteúdo literário da obra não foi modificado.
E qual o potencial didático específico da literatura digital num projeto pedagógico? O que os diferencia em sala de aula dos livros físicos?
Aline Frederico – Assim como a literatura dita “tradicional” ou impressa deveria ter muito mais espaço em qualquer projeto pedagógico, de qualquer disciplina, pois com a literatura aprendemos sobre o mundo pela experiência da ficção, sem precisar hiperdidatizar os conteúdos, a literatura digital deveria ser mais amplamente difundida na educação. Agora, acho que a literatura digital tem um aspecto muito importante ao mostrar ao leitor, por meio da sua própria linguagem e natureza poética, muitos aspectos da textualidade, da cultura e da sociedade contemporâneas. Um aluno que lê muita literatura digital muito provavelmente vai ser um aluno que entende melhor como funciona a comunicação digital, pois ele vai internalizando esse novo paradigma com textos de qualidade. As obras de literatura digital tendem a questionar sua própria linguagem, refletir sobre si mesmas e isso tem um potencial enorme de uso na sala de aula. Sem dúvida, ser letrado hoje em dia demanda um domínio da leitura e produção escrita e multimodal digital.
Há uma idade certa para inserir a literatura digital? E como deve ser feita essa mediação pelo professor?
Aline Frederico – Há literatura digital para todas as faixas de idade, desde a pré-escola até a literatura juvenil e todas deveriam ter espaço no ambiente escolar. Obviamente o nível de complexidade varia, mas ainda assim a capacidade de nos encantar, a adultos e crianças igualmente, pode ser a mesma numa obra que tem como audiência principal uma criança de 4 a 5 anos ou uma para adolescentes ou adultos. Com uma boa seleção de conteúdos e uma mediação adequada, a literatura digital pode fazer parte do currículo de qualquer ano da educação básica.
Sobre a mediação, ainda que a gente goste de manuais, a verdade é que não existe uma regra de como o professor deve mediar a literatura digital. Ao meu ver, a boa educação se faz com um professor que conhece muito bem seus alunos e aquilo que quer ensinar, e assim é capaz de adaptar o ensino a cada momento, trazendo o repertório dos alunos e seus interesses e motivações para aprender. É importante, portanto, que o professor tenha um repertório de obras de literatura digital, que conheça as características e especificidades das obras para explorá-las com os alunos. Mas é também importante estar aberto para a realidade de que as crianças podem ter uma familiaridade maior que o professor com a tecnologia digital, e assim também podem mostrar ao professor outros caminhos. Isso não quer dizer que o professor é dispensável, mas que alunos e professor trazem saberes distintos e que podem se complementar na experiência literária digital na sala de aula. A literatura digital se faz no momento da leitura, então é importante para o mediador deixar o leitor explorar o texto com tempo e considerar que não há respostas prontas. Cada criança na sala de aula irá ler uma obra um pouco – ou muito, dependendo da obra – diferente da obra do colega, pois com as interações o leitor constrói sua própria narrativa. Isso não é um problema, mas um potencial para discussão muito rico.
E, em casa, como os pais podem acompanhar e dar continuidade a este trabalho?
Aline Frederico – A leitura compartilhada em casa tem um impacto enorme na formação de leitores e é um momento mágico de aproximação entre pais e filhos, trocas de histórias e experiências. O que vemos no caso da tecnologia digital é que muitas vezes as crianças são deixadas à própria sorte com a tecnologia digital, quando a mediação da experiência digital é talvez até mais importante que a da leitura tradicional, especialmente para crianças menores. E são muito poucas as famílias que têm obras literárias nos seus dispositivos, enquanto todas têm YouTube. Não tenho nada contra a TV ou jogos eletrônicos, acho que também tem muito potencial se o conteúdo for de qualidade, mas não devem ser os únicos conteúdos disponíveis para crianças nos dispositivos digitais. Além disso, eu acredito no potencial da literatura na formação do indivíduo e as pesquisas mostram que crianças que leem por prazer se saem melhor na escola. Então acredito que os pais devem se informar sobre as melhores obras de literatura digital e propor momentos para a leitura conjunta dessas obras com seus filhos. Em um estudo, os pais reportaram que se divertiram mais lendo as obras digitais que as impressas com seus filhos pequenos. Obviamente isso depende de uma série de fatores, mas acho que os pais deveriam tentar. Muitos vão se apaixonar.
Considerando sua pesquisa, como você analisa hoje o uso do livro e outras mídias digitais para crianças? Quais ainda são os desafios do cenário atual?
Aline Frederico – Infelizmente, o acesso à literatura digital, seja em casa, seja na escola, ainda é muito pequeno. Em primeiro lugar, temos o puro e simples desconhecimento. A maioria dos professores não sabe que essas obras existem. Pela minha experiência pessoal, geralmente os professores ficam encantados quando apresentados às obras, mas essa produção não apresenta um espaço de divulgação como o dos livros tradicionais, tanto na imprensa como em livrarias. As empresas que as produzem também costumam ser pequenas e não têm a infraestrutura de divulgação escolar das grandes editoras.
Outra questão é a do acesso à tecnologia. Para as obras em aplicativos, é preciso ter um tablet ou um smartphone. Muitas dessas obras só estão disponíveis para dispositivos Apple, e poucas pessoas no Brasil têm acesso a essa tecnologia devido a seus altos custos. Muitas escolas não têm nem acesso à internet, muito menos dispositivos que custam milhares de reais. Por outro lado, os aplicativos costumam ser mais baratos que um livro impresso, alguns são até gratuitos, e podem ser baixados no celular, então tenho visto professores que usam seu próprio aparelho para introduzir a literatura digital na sala de aula. Não é o ideal, obviamente, mas admiro esses profissionais pelo seu empenho em promover uma educação de qualidade e as crianças sem dúvida saem ganhando.
Há outras dificuldades operacionais. É preciso ter uma conta na loja de aplicativos com um cartão de crédito. É preciso garantir que os aparelhos estejam carregados no momento da aula. É preciso haver técnicos na escola para a manutenção dos aparelhos. São muitas questões que não fazem parte do cotidiano escolar (ainda) e, quando temos professores sobrecarregados e poucos recursos, essas questões se tornam impedimentos. Mas acho que, como sociedade, precisamos cada vez mais buscar soluções para a educação e uma educação que faça bom uso da tecnologia digital na escola, ou é possível que cada vez mais teremos alunos desmotivados e frustrados com o gap entre a realidade dentro e fora da sala de aula.
E, por fim, quais são os passos futuros da comunhão entre a tecnologia digital e a literatura infantil?
Aline Frederico – O que temos visto na última década é que houve um boom de produções no começo da década, com a empolgação inicial da comercialização dos tablets, mas muitas empresas que se dedicaram a produzir a literatura digital não sobreviveram. Talvez seja preciso um tempo maior para o amadurecimento dos formatos e a criação de um público leitor digital. Mas a tendência é que cada vez mais a produção dessas obras fique mais barata e mais intuitiva, permitindo mais experimentação e uma multiplicação de editoras e obras. Acho que o formato de aplicativos tem um potencial imenso ainda pouco explorado. Um aplicativo é um software e portanto é possível se construir textos literários que explorem qualquer aspecto da mídia digital, então acredito que esse formato não está morto. Outra tecnologia ainda pouco explorada na literatura é a realidade aumentada, em que a tecnologia se relaciona com o mundo real. No caso da literatura, o sistema funciona geralmente na venda casada de um livro impresso e um aplicativo. O leitor deve posicionar o tablet ou smartphone sobre o livro; o dispositivo reconhece as páginas imediatamente e ao se interagir com a tela, o conteúdo do livro impresso se transforma.
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Se interessou e quer conhecer alguns exemplos? Veja algumas obras de literatura digital interessantes para as crianças recomendadas pela Aline Frederico!
Primeira infância
Marina está do contra, de Gunilla Wolde (disponível no site da Editora Caixote)
Boa noitinha!, de Heidi Wittlinger e Fox and Sheep (disponível para sistemas iOS e Android)
Juvenis
Amal e a viagem mais importante da sua vida, de Carolina Montenegro e Renato Moriconi (disponível no site da Editora Caixote)
Frritt-Flacc, de Jules Verne (disponível no site da Storymax)
Poesia
Crianceiras, com poemas de Manoel de Barros musicadas por Márcio de Camillo (disponível no site do projeto)
Poesia digital do escritor Sérgio Capparelli (disponível no site do autor)
Narrativas visuais
Spot, de David Wiesner (disponível para iOS)
Inventeca (disponível no site da Storymax)