A invisibilização das mulheres e seus trabalhos acontece em diversos campos do saber. Virginia Woolf, no ensaio Um teto todo seu, diz: “Ao longo da maior parte da História, Anônimo foi uma mulher”. Nas artes plásticas, na literatura e na música, grandes figuras têm sua importância minimizada ou o acesso barrado aos espaços. No samba não é diferente: se hoje temos enredos que cantam o legado de autoras como Maria Clara Machado e Ana Maria Machado na literatura infantil, muito se deve ao trabalho de mulheres que estiveram ativas na criação e na evolução desse ritmo. Mas quantas delas você conhece?
Hoje patrimônio cultural reconhecido pela Unesco, o samba é criado no Rio de Janeiro nos braços das Tias Baianas, mulheres negras e nordestinas que vieram para o Sudeste no início do século XX carregando imensas tradições culturais africanas, grande parte mães de santo, imersas em ritmos e percussões. Na mistura urbana das favelas cariocas, em meio a uma série de medidas políticas que criminalizavam expressões culturais, essas mulheres cantavam, dançavam e cediam suas casas para a batucada.
Por muito tempo, mulheres estiveram nas rodas, compondo e tocando. Mas o palco e o sucesso tinham seus títulos e holofotes voltados aos homens, à medida que surgiam e se institucionalizaram as rodas e as escolas de samba. O samba nasceu cantando as injustiças sociais, a vida nos morros e nas periferias, a alegria e a resistência de quem tinha pouco dinheiro e pouca sorte. E de certa forma acabou deixando as mulheres à margem de sua própria história.
Mesmo assim, elas deixaram suas marcas. Sambistas como Beth Carvalho, falecida no começo deste ano, mas cuja postura questionadora e versos atemporais inspiram o samba e outras mulheres, junto do legado deixado por Tia Ciata e Clementina de Jesus defendido e honrado por Dona Ivone Lara, Leci Brandão e tantas outras ainda hoje.
Aqui, cinco delas que provaram que o samba (também) é lugar de mulher. Acompanhe a história delas no Dia Nacional do Samba!
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Clementina de Jesus
Nasceu no Rio de Janeiro, pouco depois da abolição da escravatura. Trabalhou como empregada doméstica e só aos 63 anos começou a carreira, mas já tinha a musicalidade na família: o pai era, além de pedreiro, violeiro e capoeirista, e com a mãe, lavadeira e filha de negros escravizados, Clementina aprendeu as melodias do jongo, do lundu, os pontos de umbanda. Conhecia de perto as canções sobre a África, sobre a tristeza do trabalho forçado longe da terra-mãe. Foi descoberta em 1964 pelo produtor Hermínio Bello de Carvalho enquanto cantava num bar, em que ele se referiu a Clementina como “Pixiguinha de rendas”. Ficou conhecida como Rainha Ginga por estabelecer um elo entre o Brasil e ancestralidade africana. Foi da Portela e, depois, Mangueirense, transitando entre escolas sem nunca sair do samba.
A história de Tia Ciata interpretada pela também sambista Leci Brandão, no projeto Heróis de Todo Mundo
Tia Ciata
Uma das Tias Baianas mais lembradas por oferecer seu talento, sua capacidade aglutinadora e sua própria vida para que o samba nascesse e crescesse no quintal de sua casa. Tia Ciata nasceu em Santo Amaro da Purificação, a mesma cidade onde, quase um século depois, nasceriam Caetano Veloso e Maria Bethânia. Mudou-se para o Rio de Janeiro aos 22 anos, foi morar na Praça Onze, ponto central da cultura africana na cidade. Lá, tornou-se uma mãe de santo respeitada e famosa, a Ciata de Oxum. Quituteira, trouxe do Nordeste os pratos típicos e o ritmo de roda do Recôncavo Baiano, que enchiam as festas com música, comida boa e um clima de proteção santo do candomblé. Como a grande partideira que era, seu canto, suas composições e seu estilo de organizar a roda influenciou muitos dos sambistas que frequentaram sua casa, como Sinhô, Pixinguinha, João da Baiana, Hilário Jovino Ferreira e Donga – autor de “Pelo Telefone”, oficialmente o primeiro samba registrado, que teria sido composto no quintal de Tia Ciata.
Dona Ivone Lara
A sambista foi a primeira mulher a assinar oficialmente seus sambas, em especial os enredos. Depois de ter um samba “protegido” pelas mulheres, dentro das rodas de compositores não se viam muitas delas levando os créditos. Mas foi pisando “devagarinho” que Dona Ivone foi conquistando seu lugar: começou cedo, compondo aos 12 anos o primeiro sucesso, Tiê-tiê, sobre seu pássaro favorito. No final da década de 40, todos os sambas que compôs foram apresentados aos outros sambistas pelo seu primo Mestre Fuleiro, como se fossem dele, até que em 1965, com o samba Os cinco bailes da história do Rio, tornou-se a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de escola de samba, na escola Império Serrano, onde desfilava na ala das baianas. Logo se consagrou como grande compositora e ritmista, incluindo o samba de seu cavaquinho mesmo em outras esferas de sua vida: trabalhando com terapia ocupacional, Ivone Lara, também enfermeira, foi pioneira no uso da música como ferramenta para o tratamento de portadores de transtornos psíquicos. Foi consagrada com a 23a Ocupação do Itaú Cultural, e as suas composições são eternas na sua voz, na de outros artistas e no nosso imaginário, sendo gravada ainda hoje por sambistas como Clara Nunes, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Beth Carvalho e Marisa Monte.
Beth Carvalho
Elizabeth Santos Leal de Carvalho teve seu contato com a música incentivado pela família ainda na infância, ouvia as canções de Sílvio Caldas, Elizeth Cardoso e Aracy de Almeida, grandes amigos de seu pai. Sua avó, Ressú, tocava bandolim e violão. Por conta do seu posicionamento político, seu pai foi preso em 1964 e, para ajudar a família durante a ditadura militar brasileira, Beth passou a dar aulas de violão. Graças à formação política recebida de seus pais, Beth Carvalho foi uma artista engajada nos movimentos sociais, políticos e culturais brasileiros e de outros povos. Diz que todo artista tem de ir aonde o povo está, e vai conhecer a fertilidade dos compositores do povo nos pagodes, sendo conhecida como a Madrinha dos Pagodes, por revelar e ajudar artistas como o grupo Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Sombra, Sombrinha, Arlindo Cruz, Luis Carlos da Vila, Jorge Aragão e muitos outros. Com esse repertório, a cantora trouxe um novo som ao samba, introduzindo em seus shows e discos instrumentos como o banjo com afinação de cavaquinho, o tan-tan e o repique de mão, que até então eram utilizados nos pagodes do Cacique. Faleceu neste ano, sendo homenageada por diversos artistas ao longo dos seus mais de cinquenta anos de carreira.
Leci Brandão
Carioca de Madureira, foi a primeira mulher a compor um samba para a Mangueira na década de 1970. Leci canta em defesa das minorias, do povo negro, das mulheres e dos trabalhadores. Entendendo o cantar como um ato político, chegou a rescindir um contrato com a gravadora Polygram por terem tentado censurar seu trabalho, entre eles um de seus maiores sucessos, Zé do Caroço. Todos seus álbuns contêm ao menos uma faixa falando sobre a cultura afro-brasileira de forma direta, transparente e apaixonada. Se aos 75 anos, com suas músicas, arrasta multidões, com a sua política, a também deputada estadual (PCdoB) trilha caminho na Assembleia Legislativa do estado de São Paulo. Em São Paulo, é madrinha do Bloco Afro Ilú Obá De Min, composto unicamente de mulheres.
Tia Cida
Tia Cida é um ícone do samba em São Paulo. Ela sediou diversos sambas de roda em sua casa ao longo de trinta anos, antes que pudesse, ela mesma, entrar na roda. É uma das matriarcas do gênero na capital paulista e ainda inspira diversas outras que querem continuar seu legado. "Eu fico satisfeita porque, quando a gente começou, era só a gente. O fato da gente ter ficado conhecidas assim por vários bairros é porque era só a gente. Depois que começou a juntar outras pessoas, outros grupos, outras mulheres, aí as coisas ficaram mais abertas. A gente tinha mais satisfação de sair, porque saía daqui e ia para Itaquera e também tinha um grupo de mulheres. A gente saia de Itaquera e ia pro Tatuapé e também tinha grupo de mulheres. Então começou a se expandir, e a referência era muito a gente. 'Ah, a senhora é a Tia Cida, a senhora que começou o samba'", conta no documentário Mulheres no samba, longa que apresenta um histórico do gênero e mostra o cenário atual do samba para as mulheres, em especial na periferia e nos espaços onde ele é tocado popularmente.