As narrativas que compartilhamos em tempos de pandemia

26/03/2020

Por Januária Cristina Alves

A vida imita a arte. E vice-versa. O cenário que estamos vivendo com a pandemia do coronavírus é coisa de filme, de livro, de videogame. O mundo imaginário criado em tantas obras como “A Peste”, de Camus, ou “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago, ou ainda do filme “Guerra Mundial Z” e da série “The walking dead”, invadiu o nosso cotidiano e de repente percebemos que não há soluções mágicas para vencermos essa crise. E o que é pior: o final feliz não parece garantido.

(Ilustração Bicho Coletivo)

Os seres humanos se diferenciam dos outros animais do planeta por sua capacidade de criar histórias para lidar com suas questões, desde as existenciais (Quem sou eu? Para onde vamos?) até as mais práticas (Como fazer um bolo de cenoura?). Estruturamos o nosso pensamento em forma de narrativas, e quanto mais organizadas, com começo meio e fim, mais nos oferecem saídas para os nossos problemas. O poder dos homens se fortaleceu sobre as outras espécies por conta da sua capacidade de criar histórias e... de acreditar nelas. Pois é, quem diria, o que antes era uma vantagem, em tempos cibernéticos, tornou-se um problema.

O advento da internet, essa rede mundial de computadores capaz de conectar indivíduos de todo planeta, e o surgimento das redes sociais, fez com que todos nós sejamos criadores de histórias. E isso é, sem dúvida, um dos maiores ganhos que essa globalização nos trouxe: a possibilidade da expressão democrática, do compartilhamento de dados e de informações numa velocidade nunca antes imaginada. Porém, como toda história tem sua face explícita e evidente, ela também esconde em si mesma a face cifrada, elíptica, que exige um certo esforço e conhecimento para que possamos desvendá-la. O que temos assistido nos últimos tempos é que cada um de nós escolhe a história que quer contar, mas não consegue estabelecer critérios para selecionar quem vai contá-la. E é aí que começa o fenômeno da desinformação e das tão propagadas fake news.

 

Fake news em tempos de coronavírus

Nesses tempos de pandemia um esforço extra tem sido feito pelas instituições sérias como as universidades, centros de pesquisa, órgãos públicos da área de saúde e pela própria imprensa, no sentido de alertar as pessoas para que não disseminem informações que não são confiáveis e devidamente confirmadas pelos órgãos competentes. No entanto, a polissemia das histórias falsas se alastra como o próprio vírus, e tal como ele, não se consegue saber onde tudo começou.

 

O maior prejuízo que a desinformação e a disseminação das fake news tem causado é o descrédito das instituições antes confiáveis como a Ciência, distorcendo a visão que temos do mundo.

 

Muitas instituições educacionais e programas de alfabetização midiática e informacional têm feito um trabalho árduo para divulgar métodos de combate à desinformação e de identificação das fake news. Porém, cada vez mais, tenho voltado a minha atenção para o paralelo ficção/realidade para tentar entender esse fenômeno, que me parece mais complexo do que entender como as mídias funcionam. Por que as pessoas compartilham notícias falsas? Por que, num momento tão delicado como esse, a cada momento sai uma notícia de que “a cura” para esse mal que nos assola está a um passo de ser descoberta?

Porque a realidade é dura e enfrentá-la exige de todos nós um conjunto robusto de referências, uma capacidade analítica de leitura das histórias explícitas e implícitas, que não é tão simples assim de se adquirir. A habilidade e a competência de “ler o mundo”, - como dizia Paulo Freire: “A leitura do mundo precede a leitura da palavra” - é o princípio fundamental para que cada um de nós conquiste o direito de tomar decisões baseados em informações que permitam uma leitura competente do contexto em que vivemos. Nos deparamos agora um grande desafio: discriminar a realidade da ficção. E, nesse sentido, as redes sociais e as fake news nos parecem saídas fáceis e rápidas para a resolução de problemas complexos. A ficção seduz como nunca e precisamos urgentemente construir referências para usá-la com sabedoria, no momento apropriado.

 

Habilidade para ler o mundo: será que temos?

Num mundo hiperconectado existe uma desconexão com o essencial, o chamado mundo VUCA (volátil, incerto, complexo e ambíguo) exige de cada cidadão uma capacidade de seleção de informações e conteúdos que não está sendo ensinada (e portanto, aprendida). De uma maneira geral, faltam programas de leitura e escrita que possibilitem às crianças e jovens a aquisição dessa habilidade de ler o mundo.

 

A melhor defesa que os seres humanos têm contra patógenos não é o isolamento – é a informação” (Yuval Harari, escritor e professor de História)

 

Para se ter uma ideia, a última edição 2018 do Pisa, a prova mundial que mede o desempenho dos estudantes em leitura, matemática e ciência, revelou que menos de um em cada dez alunos dos 80 países avaliados foi capaz de distinguir fatos de opiniões, considerando pistas implícitas no conteúdo e fontes da informação. Apenas 2% das crianc?as e dos adolescentes do Reino Unido te?m a capacidade de leitura cri?tica necessa?ria para discernir uma noti?cia falsa de uma verdadeira, de acordo com um relato?rio publicado em junho de 2018 pelo Conselho Nacional de Alfabetizac?a?o do Reino Unido.

Eu já venho dizendo há muito tempo que não podemos dominar o software, a maneira como os dados são tratados, se não dominamos a leitura e a escrita. Não é possível ser um cidadão consciente com o pensamento crítico capaz de discernir coisas razoáveis das coisas que não são, se não sabemos ler e escrever. Se você ler em uma tela ou em um papel, isso é secundário. A importância está no texto. 

(..) Eu diria que a melhor coisa que nós podemos fazer é educar as pessoas desde muito jovens a serem responsáveis individualmente nessa nova rede de comunicação e ensiná-las a pensar criticamente”, afirma Pierre Levy, filósofo, sociólogo e pesquisador em ciência da informação e da comunicação. 

 

Como ensinar crianças e jovens a identificar informação confiável

É claro que essa não é uma tarefa fácil, requer um esforço conjunto de muitos atores da sociedade: governos, instituições educacionais, da mídia, de todos nós. A própria OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) recomenda a todos os pai?ses que “cultivem a competência global dos alunos de saber usar plataformas de mi?dia de forma eficaz e responsa?vel, o que pode ajuda?-los a capitalizar os espac?os digitais, a entender melhor o mundo em que vivem e expressar com responsabilidade sua voz on-line”.  

O maior prejuízo que a desinformação e a disseminação das fake news tem causado é o descrédito das instituições antes confiáveis como a Ciência, distorcendo a visão que temos do mundo. É importante lembrar nesse cenário tão incerto que vivemos que A melhor defesa que os seres humanos têm contra patógenos não é o isolamento – é a informação”, como diz o escritor Yuval Harari. É preciso investir na formação de leitores críticos dispostos a ampliarem suas ideias, a olhar para dentro de si mesmos antes de julgar, a conseguir enxergar uns aos outros com alteridade, empatia e tolerância. E isso as narrativas nos ensinam.

Compartilhar histórias nos permite viver muitas vidas, elas são uma espécie de bagagem simbólica que nos permite viajar mundo afora, nos lembrando de quem somos e de onde viemos. Portanto, podemos começar já oferecendo boas leituras de ficção e de informativos para que nossas crianças e jovens cresçam valorizando o conhecimento - e também a fantasia - como forma de construção de uma realidade mais justa e sustentável.

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Januária Cristina Alves é mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, co-autora do livro “Como não ser engando pelas Fake News” (Coleção Informação e Diálogo, da Editora Moderna) e membro GAPMIL, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco. Saiba mais no site www.entrepalavras.com.br .

 

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