Em 2013, iniciei o movimento SlowKids, que traz em seu conceito uma busca por mais horas para nos conectarmos aos filhos, aumentarmos a qualidade de tempo que passamos com a família longe das telas, olharmos com mais cuidado para a alimentação, entendermos que a criança precisa brincar e estar em contato com a natureza e termos um tempo maior só para nós mesmos.
(Ilustração Bicho Coletivo)
De repente, como se fosse um filme de ficção, nos encontramos isolados em nossas casas, com medo de algo invisível que pode exterminar várias pessoas em muito pouco tempo e não temos opção. Deixamos de lado as regalias e exercemos funções que não estávamos acostumados a fazer todos os dias, tendo ainda que lidar com as variações emocionais de todos que estão convivendo na mesma casa, a autocobrança de tornar tudo mais leve e tranquilo e a decepção ao perceber que não temos o que fazer para mudar esse cenário – e que, sim, o tempo é de aprendizado.
De repente, nós nos vimos no papel de educadoras, tendo de ajudar numa rotina que antes era preenchida por professores, formados e conectados a uma pedagogia, e isso nos dava segurança.
De repente, nos encontramos dividindo as tarefas da casa entre a família, esbarrando em humores, vontades e quereres.
De repente, não temos mais que encontrar ninguém, nem temos de correr para chegar na hora em algum lugar. Nem sabemos, muitas vezes, em qual dia da semana estamos.
De repente, ficamos frente a frente com nossos parceirxs por um tempo tão grande que as relações (em sua grande maioria) estão tendo que se reinventar.
De repente, estamos escrevendo e-mail de trabalho, fazendo a cama, batendo corda, lavando o quintal, jogando uno, preparando o almoço e sofrendo por deixar as crianças verem TV para não entrar numa “guerra” enquanto a couve fica pronta, o arroz quente e a louça lavada.
Dilema das telas
Para mim, que sempre fui defensora do início tardio do contato das crianças com a tecnologia, do limite de tempo nas telas, da seleção ferrenha do conteúdo a ser passado, me pego num dilema perturbador. De repente, essa, que era a nossa grande preocupação, virou a principal fonte de conexão, que nos possibilita encontros, a convivência das minhas filhas com os avôs e avós, primos, amigxs da escola… É de onde vem a música do início do dia, recebida por áudio, cantada pela professora da escola onde estudam. Quanta ironia: alunos e professores que seguem a pedagogia Waldorf usando a tecnologia para se conectar e alimentar as crianças com poemas, músicas, histórias. E, no final, me vejo feliz por poderem estar juntos de alguma maneira.
Mais importante que uma rotina fixa é a conexão, desta vez a real, a da percepção
Minhas filhas têm 5 anos, são gêmeas. Nesses dias de confinamento, tem havido momentos lindos de amor e companheirismo, de saudade do contato, da rotina das poucas atividades que tinham. E que se misturam a momentos agressivos, de gritos e choros. Elas tentam entender e lidar com a companhia constante uma da outra (sem a interferência de nenhuma outra criança ou adultos que não sejamos nós). Também tentam lidar com o medo, as angústias de não poderem ver a família e os amigos, além de outras que não são elaboradas, mas que se manifestam, como a de não poderem correr por aí e exercer a independência que estavam conquistando nessa fase.
Elas sentem que existe uma tensão e sabem que há uma doença chamada coronavírus que lhes tirou de circulação, mas, como toda criança nessa fase, o entendimento varia entre o lúdico e o real. Através de apps de celular, elas se conectam a amigxs em São Paulo e em outros lugares do mundo, conversam e percebem que todos estamos na mesma situação. Quando se falam, perguntam-se o que estão fazendo, brincam juntos pela chamada de vídeo, fazem planos e convites para quando o “corona for embora”, nas palavras delas.
Percepção: a conexão real
Assim que o confinamento começou, recebi uma enxurrada de dicas de brincadeiras analógicas para fazer com as crianças em casa: recortes, teatros, colagens, massinhas naturais, circuitos, máscaras, fantoches, tudo o que conhecia e sempre acreditei por conta do SlowKids. No começo, foi um alívio ver tudo aquilo e pensar: “Que bom, tenho nas mãos atividades superbacanas e sem telas para preenchermos os horários da brincadeira”. Uma preocupação a menos, pensei.
Fizemos uma tabela com a rotina para o dia a dia, que contemplava horário de ajudar nas tarefas da casa, de brincar, de almoço, banhos etc. Foi realmente um norte no início, mas, conforme foram passando os dias, veio novamente a confirmação: não podemos ter o controle de tudo o tempo todo. Sim, a tabela é bacana, mas me dei conta de que, mais importante que uma rotina fixa, é a conexão, desta vez a real, a da percepção. Como acordei hoje? Como estão minhas filhas? Animadas? Dispostas? Vamos cozinhar? Plantar? Arrumar a casa? Brincar? Fazer nada?
Precisamos entender que, depois de tanto tempo juntxs, temos a capacidade de perceber e respeitar a vontade da criança, amparar, conversar. Assim como precisamos nos permitir sentir quando também temos necessidade disso.
O quanto a conexão com nossa casa interna e externa é importante e que muitos estavam deixando de lado pela correria dos dias? Teremos entendido e interiorizado algo? Como vamos em frente quando pudermos voltar ao convívio social?
A tabela está lá, olhamos para ela de vez em quando. Todos entendemos que temos afazeres juntos e separados, mas que podemos flexibilizar, trocar as tarefas, os horários e que podemos não estar dispostos, por estarmos mais sensíveis.
Ontem, arrumando a sala, Manu disse: “Mamãe, tô cansada hoje, não quero passar a vassoura”. Eu disse: “Que tal passar o pano nos móveis? Ou prefere descansar?” Na hora ela respondeu com disposição que queria passar o pano. Feliz, fez primorosamente a tarefa dada. Como o dia estava só começando, o “cansaço” era uma forma de dizer que não estava afim daquela tarefa específica. Ali, me senti conectada. Entendi, com muita felicidade, que a conexão com o outro pode acalmar, trazer a harmonia, ajudá-lo a entender seu próprio momento, mesmo sem o outro saber como expressar. Respirar e se conectar nos dá a calma e a percepção para tomarmos a atitude mais acertada.
Contato virtual
Conversando com amigas e amigos com filhos, tenho dividido momentos, dificuldades, medos, expectativas. Todos estamos com medo. Dias mais, dias menos. Todos estamos sem certezas, sem saber o que vem amanhã. Mas estamos nos tornando mais sensíveis, mais conectados. Percebemos que somos interligados, que cada um é responsável por si e pelo outro.
A conexão virtual, que antes nos trazia incômodo, hoje nos coloca em contato com as pessoas que amamos. Sim, esse tempo tem de ser limitado. Mas não nos sintamos culpados de, às vezes, esse tempo ser maior do que gostaríamos.
Ando pensando em como sairemos de tudo isso, enquanto adultos, enquanto família, enquanto pessoas. Quais serão nossas prioridades?
O quanto realmente precisamos de coisas? O quanto a conexão com nossa casa interna e externa é importante e que muitos estavam deixando de lado pela correria dos dias? Teremos entendido e interiorizado algo? Como vamos em frente quando pudermos voltar ao convívio social?
Algumas ideias têm passado pela minha cabeça quando me faço essas perguntas.
Equilíbrio entre digital e analógico
Quando tudo isso passar, teremos, ao que tudo indica, um efeito reverso, aquele que na minha opinão era o mais importante: o equilíbrio entre o real e o virtual. O interesse intenso de crianças e adultos por celulares, redes sociais, app de mensagens e vídeo será facilmente substituído pelos momentos reais, pelos abraços, beijos, brincadeiras, jogos de bola com os amigos, encontros, cuidados, olho no olho...
Sim, continuaremos com a tecnologia presente, mas creio que será mais comum ver as pessoas de novo entre amigos conversando, sem celulares; os restaurantes com mesas onde as conversas acontecem sem o brilho das telas; as famílias escolhendo melhor, preparando e comendo junta seus alimentos; pequenos gestos, carinhos, atenção sendo muito mais valorizados. Será?
Torcendo e acreditando muito nisso.
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Tatiana Weberman é produtora cultural, fundadora da agência Respire Cultura e idealizadora do SlowKids e da Kombi dos Sonhos. SlowKids é um movimento que defende a desaceleração do tempo das crianças, priorizando a brincadeira ao ar livre, a interação e o tempo de qualidade entre a família e a redução do tempo das telas.
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