Por Lourdes Atié
Lendo o jornal, constatei que a Companhia das Letrinhas lançou um novo livro sobre Greta Thunberg, intitulado “Ninguém é pequeno demais para fazer a diferença”. A obra, escrita pela autora norte-americana Jeanette Winter, conta a história desta jovem ativista ambiental, mostrando como ela entendeu que precisaria fazer algo em defesa do planeta, para que sua geração pudesse ter um futuro. Sua experiência apresentada na obra mostra que todos, independentemente da idade, pode e deve lutar pela melhoria da qualidade de vida de toda a humanidade.
(Capa do livro publicado pela Companhia das Letrinhas)
Fiquei feliz pelo lançamento, afinal venho acompanhando a atuação desta adolescente desde 2018, quando começou solitariamente seus protestos em frente ao parlamento sueco, às sextas-feiras, em defesa do clima, alertando que não deveria se ver obrigada a faltar à aula para chamar a atenção das autoridades para uma causa tão importante.
Greta tem uma trajetória de sucesso. Entretanto, tinha tudo para se acomodar com sua condição de vida e nada fazer: possui um diagnóstico de síndrome de Asperger, portanto, aos olhos da escola, é categoria “inclusão”. Também está no primeiro mundo do primeiro mundo, ou seja, em um país rico, que possui baixo nível de desigualdade social, não precisava de nada, com seu futuro garantido. Embora possuindo suas necessidades atendidas, se preocupou com os problemas ambientais mundiais, chegando a adoecer quando entendeu as mudanças climáticas e as suas consequências para o planeta Terra.
Não preciso contar aqui toda a trajetória desta adolescente guerreira, porque tem sua história muito bem contada na obra citada e porque já saiu aqui, no Blog das Letrinhas, um artigo que explica sua importância. O que eu quero conversar com os leitores é convidá-los a refletir por que uma jovem com uma trajetória tão brilhante e surpreendente praticamente passou ignorada no Brasil. Já pensaram sobre isso?
+ O que Greta Thunberg tem a nos ensinar?
Por que Greta é ignorada no Brasil
Guardei diversos artigos escritos por cientistas, jornalistas ou articulistas de vários jornais brasileiros, que mostram que seu nome e sua atuação sempre receberam críticas – ora deboches, ironias e até mesmo comentários que deturpavam seus propósitos. Até o presidente da República ironizou, chamando-a de “pirralha”, desqualificando sua atuação, justamente quando era recebida na Organização das Nações Unidas (ONU) como a maior liderança jovem do mundo. Estranho, não?
Greta, sozinha, em nome das causas ambientais, mudou a forma de a juventude participar socialmente. Graças a ela, crianças e jovens de todo o mundo se juntaram em defesa do meio ambiente. Fez a Marcha pelo Clima em Estocolmo, reproduzida em várias cidades mundo afora. Conseguiu mobilizar centenas de milhares de jovens, o que teve como uma das consequências fazer com que cerca de 300 cidades do mundo passassem a suspender as aulas todas as sextas-feiras (antes da pandemia de Covid-19) para que eles, autonomamente, discutissem as mudanças climáticas e exigissem que seus dirigentes agissem em defesa do planeta, alertando para que deixassem de lado seus interesses políticos e econômicos. Nunca houve nada igual.
A escola brasileira ainda é feita para o estudante e não com o estudante. [...Eles] Nunca são vistos como um outro sujeito, capazes de construir junto com os educadores a escola que faça sentido para todos. Não têm voz.
Ela foi recebida na Conferência do Clima e no Fórum Econômico Mundial, no ano passado, com todos os líderes mundiais, mas era esta adolescente a pessoa mais esperada pela mídia mundial. Foi capa da revista Times, reconhecida como a personalidade mais importante do mundo. Recentemente doou o valor de um prêmio que ganhou da ONU para a Organização Mundial de Saúde (OMS), destinado para o combate da Covid-19. E no Brasil? Nada entendido. A ponto de um prefeito achar que ela poderia doar dinheiro para sua cidade, no combate à doença. Essa é só uma das provas de que, por aqui, Greta não é mesmo compreendida.
Crianças e jovens são invisíveis para a sociedade brasileira
Ano passado, eu estava na Europa e vi acontecer a força do movimento desencadeado pela Greta e fiquei emocionada. Eram jovens e crianças, reunidos em diferentes espaços públicos, discutindo questões ambientais. Pensava: isso tudo está acontecendo por aqui porque, por trás da Greta e dos jovens e crianças que via, com certeza tinha uma escola que ajudou que tivessem autonomia para pensar e agir. Suas escolas, com certeza, apresentaram para seus estudantes um mundo de verdade. O que estavam aprendendo servia para dialogar com a vida e se sentirem protagonistas do seu tempo.
Sou educadora, trabalho com formação de professores e gestores. Em 2018 e 2019, como nos anos anteriores, viajei todo o Brasil fazendo palestras e dando cursos. Sempre trazia a história da Greta para falar sobre autonomia estudantil. Nesses eventos, descobria que, com raras exceções, a maioria dos educadores não conhecia Greta Thunberg – se tinham ouvido falar, não relacionaram sua trajetória com a educação.
Foi lendo as críticas que saía na mídia, e constatando o pouco ou quase nenhum conhecimento sobre a importância de Greta por aqui, que passei a refletir sobre tal realidade. Conclui que isso acontece no Brasil, porque, por aqui, as crianças e jovens são invisíveis e a sociedade deseja que permaneçam assim.
É pela mão da escola que podemos escapar da barbárie. É a escola que ensina desde cedo a lutar por causas locais, que estão vinculadas às causas globais.
As crianças são vistas como algo que será. São um projeto de futuro, não têm voz nem são vistas como sujeitos. São seres incompletos que, no máximo, quando conseguem alguma visibilidade, isso serve apenas para o consumo.
Já os jovens são vistos muito mais nos seus aspectos negativos, a tal problemática adolescência, que por isso precisam ser controlados, monitorados e orientados para não fazerem besteiras ou criarem problemas para os adultos.
Então, como admitir que uma “pirralha” pode lutar por algo que os adultos não foram capazes de lutar ou reconhecer sua gravidade? Como dar voz para aqueles que só existem para os adultos “formarem” segundo seus valores e prioridades? Impossível!
Escolas não enxergam os alunos como sujeitos
E, quando chegamos à escola, a situação não melhora. Ao contrário, reproduz o mesmo entendimento. Por mais que sejam os discursos inovadores, éticos ou humanistas, a escola brasileira ainda é feita para o estudante e não com o estudante. Tudo o que ela oferece são projetos, trabalhos, atividades para os alunos participarem. Ações pensadas pelos adultos, que as crianças e os jovens devem seguir. Nunca são vistos como um outro sujeito, capazes de construir junto com os educadores a escola que faça sentido para todos. Não têm voz.
(Ilustração do livro "Ninguém é pequeno demais para fazer a diferença")
Por aqui, a atuação dos estudantes é delimitada e controlada, embora muitas vezes não explicitada. Não se acredita que os estudantes sejam capazes de construir projetos, serem protagonistas de seus próprios itinerários de aprendizagem. O que aprendem serve apenas para a escola e não para entender o mundo.
Muitas escolas desenvolvem projetos de diferentes abordagens sobre protagonismo juvenil, mas que são apenas simulacros de participação. O mundo que é apresentado neste espaço passa pela fragmentação das disciplinas ensinadas e seu resultado vale ponto ou reprova. Então como enxergar valor em Greta Thunberg?
O alerta de Greta veio em forma de vírus e pandemia
Com certeza, existem educadores que lutam contra esta forma de ser da escola. Conheço vários deles. Mas ainda é uma luta solitária, que exige muito esforço, diante das famílias que ainda valorizam o entendimento de que a escola serve apenas para garantir um futuro previsível.
Mas, vejam que ironia, tudo o que tínhamos como certeza, com a pandemia da Covid-19 veio por água abaixo. Não conseguimos prever nem o dia seguinte. Estamos vivendo uma situação inédita, em que a escola tem que funcionar em casa, com todas as dificuldades, sem conseguir prever o que disso vai resultar.
Greta Thunberg alertou que “nossa casa estava pegando fogo” e seguimos achando que não viveríamos para ver este mundo tão trágico que ela anunciava. Mas veio a pandemia para mostrar que habitamos mesmo numa única casa. O fogo veio em forma de pandemia, que ultrapassou fronteiras, atingindo ricos e pobres. Tivemos que buscar ajuda entre países, analisar as experiências vividas por diferentes nações.
Temos obrigação de levar a escola para fora de seus muros e apresentar para nossos estudantes que não há idade para fazer a diferença. Precisamos mostrar que o futuro será aquilo que construirmos hoje.
Não adianta estar com bons resultados na pandemia se o vizinho está mal. É necessário um esforço planetário para salvar a todos. Cientistas de várias partes do mundo estão buscando uma vacina, não importando de qual nacionalidade. O mundo ensinando que sem colaboração não superaremos tal tragédia. Foi o que Greta fez, quando mobilizou crianças e jovens do mundo, derrubando fronteiras por uma causa maior que unia a todos: cuidar do planeta Terra.
A escola precisa mudar sua postura e ensinar a pensar criticamente
O que estamos vendo hoje no Brasil, na forma em como as populações das diferentes cidades desrespeitam a quarentena, não praticando o isolamento social e até no simples uso de máscaras para se protegerem da contaminação, fica claro que a educação faz falta. Não qualquer educação, mas aquela que é oferecida pela escola que ensina a pensar criticamente e atuar em prol da humanidade. É pela mão da escola que podemos escapar da barbárie. É a escola que ensina desde cedo a lutar por causas locais, que estão vinculadas às causas globais, necessárias neste momento.
Greta Thunberg continua invisível para o Brasil também porque é uma ameaça para aqueles que querem seguir garantindo a desigualdade, para continuarem lucrando com a miséria alheia. Mas é exatamente o que ela representa que indica que é um caminho para mudar este país.
Como vamos sair desta pandemia não sabemos. Como será a escola na volta pós-pandemia também não. Mas temos uma oportunidade única de planejar uma escola melhor do que temos hoje. Temos obrigação de levar a escola para fora de seus muros e apresentar para nossos estudantes que não há idade para fazer a diferença. Precisamos mostrar que o futuro será aquilo que construirmos hoje.
É preciso que as escolas brasileiras façam muitas Gretas para ajudar a todos a lutar por justiça social. Não é possível ficar bem se a maioria segue mal. Vamos lutar pelo planeta desde a escola. Ainda bem que a Companhia das Letrinhas está fazendo chegar ao Brasil mais um livro a favor desta luta. Que bom! Podemos mudar esta história já.
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Lourdes Atié é socióloga, consultora de educação e trabalha com formação de professores
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