A pandemia e o isolamento social decorrente dela trouxe uma nova realidade. E em muitos casos, o que vem se revelando é cruel. É isso que temem órgãos de proteção aos direitos das crianças e adolescentes. O porquê é simples. Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, durante o isolamento social, as denúncias registradas pelo Disque 100 (Disque Direitos Humanos) de casos de violência contra a criança e o adolescente caíram 17,1%. Apesar da queda supostamente indicar que o número vem caindo, há a preocupação de uma subnotificação em excesso. E é um outro dado alarmante que indica isso: 90% dos casos de violência e abuso são realizados por familiares próximos à vítima. Ou seja, as crianças estão presas em casa com seus abusadores sem ter com quem contar.
(Foto de Volodymyr Hryshchenko no Unsplash)
Proibidas de frequentar a escola – um dos principais agentes de identificação de possíveis abusos –, crianças e adolescentes acabam sendo as grandes vítimas da violência doméstica durante o período de isolamento, uma vez que nem sempre conseguem ser notadas por outras pessoas além do círculo em que vivem. “No Brasil, ainda não temos dados concretos sobre isso, mas diversos outros países já registram aumento de casos de violência doméstica. Em Hubei, na China, os números triplicaram durante o isolamento social. Na França, esse aumento foi de 32% e no Rio de Janeiro o número de notificações já é 50% maior. Quando o assunto é violência contra as crianças e adolescentes especificamente, a queda no registro indica que muitos agressores estão tomando os telefones das vítimas, deixando-as sem contato com ninguém, o que é muito preocupante, uma vez que essas vítimas não estão tendo contato com a escola, por exemplo, que possui um papel fundamental”, explica a pediatra Renata Waksman, vice-presidente da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP) e coordenadora do Núcleo de Estudos da Violência Doméstica contra a Criança e o Adolescente da SPSP.
Entre os tipos de violência a que os pequenos estão submetidos, estão os mais diversos: sexual, negligência, violência física, psicológica, entre outros. E, como lembra Renata, “não podemos separar as violências em blocos individuais, pois a maioria delas caminha junta”.
O cenário é preocupante no mundo todo. A ONG World Vision estima que até 85 milhões de crianças e adolescentes de 2 a 17 anos podem passar a fazer parte das estatísticas de violência até o final do período de isolamento social. De acordo com o relatório elaborado pela organização, que cruzou dados como os de aumento de violência doméstica, número de denúncias feitas pelo telefone, informações dos escritórios de campo e dados de pandemias anteriores, a estimativa é que no Brasil esse índice avance 18%. “Infelizmente, a violência contra a criança e o adolescente é a mais democrática que pode existir. Não distingue classe social e não há um padrão. É preciso acabar com esse mito”, destaca Renata Waksman.
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Triste realidade
Mesmo antes da pandemia, os dados do Brasil já assustavam. Relatório lançado pelo governo federal em maio deste ano mostra que as denúncias de violência contra esse público em 2019 foram 14% maiores que em 2018. Para se ter ideia, mais de 17 mil casos de violência sexual foram registrados em 2019. E todos os dados são referentes às denúncias que acontecem via Disque 100. Ainda há a subnotificação, que pode elevar esse número para um patamar mais assustador. Por isso a preocupação com o período de isolamento. “A situação abusiva não surge com a pandemia. O que acontece é que este período proporciona condições favoráveis para o abuso, afinal, está todo mundo em casa e o abusador acaba tendo mais controle emocional sobre a vítima, que se torna refém dele”, explica a psicanalista Ana Olmos, especialista no atendimento a crianças e adolescentes e mestre pela USP.
Os fatores que desencadeiam e mantêm esses abusos são muitos. Segundo Ana, uma criança que sofreu abuso pode se tornar um abusador, assim como aquele sujeito que estabelece condições de superioridade de qualquer forma, seja pela idade, pela força, pela posição social e econômica ou até pela inteligência. E, por meio disso, estabelece o que na psiquiatria se nomeia como contrato perverso. “É um termo da psicanálise que se utiliza para definir aquelas relações baseadas em medo. Em termos mais simples, é aquela relação em que alguém exerce o abuso e a outra pessoa consente, não de forma consciente, mas pautada pelo medo. É um acordo inconsciente que gera um dano familiar muito grande”, diz.
Nesse contrato, as vítimas acabam entrando num ciclo abusivo que muitas vezes é difícil de sair, e que justifica os altos índices registrados. Quando se fala de crianças e adolescentes, esse ciclo se torna ainda mais cruel. Afinal, muitas crianças acabam não conseguindo ecoar suas denúncias, sendo descredibilizadas e ignoradas. “Além disso, muitas vezes, outros familiares veem o que está acontecendo, mas também entram na esfera do medo e do submetimento à situação abusiva. Outro ponto é que a ausência de políticas públicas efetivas, de proteção, podem impedir que as pessoas denunciem”, diz Ana.
Identificar e agir
No entanto, as duas especialistas consultadas são categóricas. É preciso denunciar, publicizar a violência que ocorre dentro de casa. Mas, antes disso, é necessário estar atento aos sinais de violência. Se o que está em jogo é a violência física, pessoas próximas têm a obrigação de estar atentos. “Primeiro é preciso ouvir as crianças e trazer credibilidade para o que ela está dizendo. Depois disso, caso um vizinho escute gritos recorrentes, ou ainda, o porteiro, por exemplo, perceba que a criança apresenta hematomas, é preciso realizar uma denúncia. Os médicos também têm papel fundamental nesse processo de identificação de casos de violência. Se numa consulta, por exemplo, forem observadas características de abuso, é possível solicitar um ‘falso’ internamento para investigar a questão mais a fundo e assim poder fazer a notificação”, diz Renata Waksman, que, por meio do Núcleo de Estudos de Violência Doméstica da SPSP e em parceria com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), lançou o Manual de Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência.
O manual, que foi lançado em 2011 e teve sua segunda edição editada em 2018, tem como objetivo orientar os mais diversos profissionais sobre as situações de abuso. “É um material com linguagem bem acessível e voltado àqueles todos que se interessam pelo bem-estar da criança e do adolescente”, conta.
Agora, quando o que está em jogo é a violência que não deixa marcas aparentes, como a emocional, ou ainda a sexual – que não se percebe fisicamente – é preciso ficar atento a sinais mais sutis. “A criança manifesta isso de diversas formas, que não são difíceis de identificar. Mudanças no comportamento, alterações de humor, sintomas de depressão, ansiedade, recusa alimentar, distúrbio do sono e diversos outros sinais podem, sim, indicar uma situação de violência. E a qualquer sinal desses sintomas, é preciso falar, de forma nenhuma ficar calado. As pessoas ainda acreditam que suspeitar e fazer uma notificação é se meter demais na vida dos outros. É preciso reverter essa ideia”, reforça Renata.
"Este período proporciona condições favoráveis para o abuso, afinal, está todo mundo em casa e o abusador acaba tendo mais controle emocional sobre a vítima, que se torna refém dele" (Ana Olmos, psicanalista)
Iniciativas para saber
Hoje, muitas instituições realizam trabalhos de enfrentamento a essa realidade. São ONGs, institutos, organizações da sociedade civil, núcleos jurídicos e diversos outros que estão preocupados em garantir que o artigo 227 da Constituição Federal, que assegura o direito à vida e à dignidade, entre outros, e também diz que é dever da família, da sociedade e do Estado que crianças e adolescentes estejam a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, seja cumprido. Mas ainda é preciso efetivar políticas públicas que garantam a manutenção desses direitos, assim como é preciso unir forças entre público e privado para denunciar essa realidade e, assim, dar voz à luta.
É o que tem feito o Instituto Alana, entidade que iniciou suas atividades em 1994 e que hoje é referência no trabalho que tem como missão “honrar a criança”, segundo a descrição do próprio projeto. Atuando em várias frentes e em parceria com diversos órgãos, o Alana, que possui sob seu guarda-chuva a produtora Maria Farinha Filmes, recentemente lançou o documentário “Um Crime Entre Nós”, que denuncia a realidade da exploração sexual de crianças e adolescentes.
“Infelizmente, nossa sociedade possui um pacto de silêncio quando o assunto é violência e exploração sexual. O Brasil é o segundo no ranking mundial de exploração sexual e a cada hora, quatro meninas de até treze anos são estupradas, sendo que a maior parte delas têm menos de cinco anos. Muitos desses crimes acontecem dentro do ambiente familiar, o que é muito grave, uma vez que família deveria ser o local de segurança”, lembra Pedro Hartung, coordenador do programa Prioridade Absoluta, do Instituto Alana.
Além dessas entidades, que dão todo o suporte, o governo federal mantém o Disque 100, que funciona todos os dias, 24 horas por dia. As ligações, que são gratuitas, podem ser feitas de qualquer telefone e de qualquer lugar do país, bastando discar o número 100. Para realizar a denúncia, que é encaminhada aos órgãos competentes, é preciso ter em mãos as seguintes informações:
- Quem sofre a violência? (vítima)
- Qual tipo violência? (violência física, psicológica, maus tratos, abandono, etc.)
- Quem pratica a violência? (suspeito)
- Como chegar ou localizar a vítima/suspeito
- Endereço (Estado, município, zona, rua, quadra, bairro, número da casa e ao menos um ponto de referência)
- Há quanto tempo ocorreu ou ocorre a violência? (frequência)
- Qual o horário?
- Em qual local?
- Como a violência é praticada?
- Qual a situação atual da vítima?
- Algum órgão foi acionado?
(Texto de Ana Luísa Pereira)
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