Por Gabriela Romeu
Desde sempre contamos histórias, mas talvez mais do que nunca elas têm sido necessárias nos nossos dias de tempos suspensos, também incertos. Somos seres de narrativas desde o nascimento, e narrados já quando soltamos o primeiro choro. Crescemos ouvindo anedotas familiares, traçamos sagas de gerações nos álbuns de família, vasculhamos efabulações nos livros em casa. Tecemos nossas histórias e as histórias também nos tecem, jeitos de se inscrever na vida.
Ilustração Bicho Coletivo
Ao andar por diversos territórios destes muitos Brasis nos últimos anos, descobri que aprendemos a ler (e também a escrever) nosso primeiro livro provavelmente no quintal, entendendo a leitura como modo de decifrar mundos, como já ensinou o mestre Paulo Freire, e o quintal como espaço de exercício da infância, como vivem a contar meninas e meninos. O chão da infância é lugar de origem, marcado por forte sentido de pertencimento, onde podemos investigar muitas perguntas primeiras neste quintal-livro (ou livro-quintal) – quais as paisagens que habitei e me habitaram? Quais histórias ouvi e vivi? Quantos brincares, sons e gestos me fizeram nesse lugar?
No quintal, a criança é autora e cria suas primeiras narrativas. É ali narradora de mundos. Vasto universo da infância que convida a múltiplas linguagens, onde o narrar se dá contando, cantando, brincando, jogando, fazendo de conta na mais pura verdade. Ou empilhando pedras, classificando tampas e tampinhas, desenhando no chão (ou nas paredes), inventando brinquedos, entre outras brincadeiras-narrativas que se desenrolam de modo palimpsesto, em que muitas histórias são (re)escritas. Um palimpsesto assim como nos lembra o escritor Italo Calvino, ao comparar o livro e o mundo: “(...) nosso mundo cotidiano, ele mais parece escrito como um mosaico de linguagens, um muro de grafites, carregado de escritas traçadas umas sobre as outras, um palimpsesto cujo pergaminho raspado e reescrito várias vezes" [1].
O livro-quintal
Também depois de muito visitar os quintais e ainda seguir lendo obras infantis, o que faço profissionalmente há mais de vinte anos, entendi que um livro que respeite a coautoria da criança em sua leitura funciona como um imenso quintal. Um livro-quintal que abre muitas paisagens para os universos infantis, muitos deles de espaços diminutos ou confinados, como os experimentados em tempos de quarentena. Paisagens distantes ou tão do nosso interior, paisagens de silêncios e solidões, paisagens de sentimentos nunca experienciados, visitados pela primeira vez, paisagens de cordilheiras ou vales habitados por temas áridos ou difíceis.
No quintal, quão mais diversas as materialidades, as possibilidades de recriação do espaço, as diversidades étnicas, sociais, culturais e etárias, mais ricas as experiências e, consequentemente, as possibilidades de criação narrativa. E mais do que um quintal sem quinas e sem pontas, afofado, colorido e acabado, a criança precisa de um espaço com desafios na topografia, com coisas por elaborar ou terminar, com fazeres despregados de utilitarismos. Na infância (e por toda a vida?), o desejo é o de construir o mundo, contar suas histórias no mundo (a começar pelo próprio quintal).
"Para onde vamos quando queremos saber sobre nós mesmos? Nós, os leitores, vamos à ficção para tentar compreender, para conhecer algo mais acerca de nossas contradições, nossas misérias e nossas grandezas" (María Teresa Andruetto, escritora argentina)
A literatura, assim como o brincar no quintal, é o exercício radical da liberdade e também nada refém do que que é útil ou produtivo. É o que nos diz a escritora argentina María Teresa Andruetto, uma das poucas autoras latinas premiadas com o Hans Christian Andersen, espécie de Prêmio Nobel da literatura para a infância. “Para que serve a ficção?”. Tem alguma utilidade, alguma funcionalidade na formação de uma pessoa (...)?“, ela indaga.
E em seguida responde: “Todos nós, homens e mulheres, vamos ao dicionário para saber sobre as palavras, aos livros de ciência para saber de ciência, aos jornais e às revistas para ler as notícias da atualidade e aos cartazes de cinema para saber os filmes que estão passando. Mas para onde vamos quando queremos saber sobre nós mesmos? Nós, os leitores, vamos à ficção para tentar compreender, para conhecer algo mais acerca de nossas contradições, nossas misérias e nossas grandezas, ou seja, acerca do mais profundamente humano"[2].
Na infância, também a escuta das narrativas, sejam as dos livros, sejam as de boca (de improvisos ou de lembranças), é fundamental para que a criança desbrave mundos, a começar por seu universo singular. As histórias ajudam a nomear as coisas, criar repertório de sentimentos, exercitar a empatia. Elas abrem janelas para muitas paisagens e também funcionam como espelhos que refletem quem somos. Ouvir histórias ajuda a criança a visitar a própria interioridade. Nas vozes da mãe, do pai, de um cuidador, dos avós, de um irmão, o momento é de imersão.
Lugar de encontro
Então o quintal-livro vira também lugar de encontro, espaço para a transmissão de um legado cultural, onde compartilhamos nossos inventários lúdicos (brincares e cantares originários da infância). Ao contar lendas de sereias (e também ondas na praia), cantar cantigas como A canoa virou, recitar quadrinhas de além-mar, desfiar a rede de memórias familiares e deixar vazar um mar de brincadeiras, vamos apresentando a criança a um mundo simbólico, construindo uma casa imaginária de forte alicerce, como já escreveu a pesquisadora e escritora colombiana Yolanda Reyes [3]. Assim, se a frase da criança-autora no quintal é “eu construo o mundo”, a do adulto-mediador no território da infância é “eu te apresento o mundo”. Ambos os exercícios, o de criação da criança e o de transmissão do adulto, são fundamentais, e não excludentes.
A literatura, assim como também o exercício brincante, é arte que nos fornece espessura, textura, volume, força e densidade para elaborar outros horizontes e, principalmente, construir novas moradas, tanto interiores quanto exteriores.
É também Reyes quem explica que, “embora a literatura não transforme o mundo, pode fazê-lo ao menos habitável"[4]. Outros autores e outras autoras fazem coro com tal afirmação. De acordo com a antropóloga francesa Michèle Petit, para que possamos nos inscrever no espaço e para que o mesmo seja habitável, “ele deve contar histórias, ter toda uma espessura simbólica, imaginária. Sem narrativas – nem que seja uma mitologia familiar, umas poucas lembranças –, o mundo permaneceria lá como está, indiferenciado; ele não nos seria de nenhuma ajuda para habitar os lugares em que vivemos e construir nossa morada interior" [5].
Já reli essas afirmações algumas vezes, já as citei outras tantas. Mas ambas soaram diferente desta vez. Em tempos em que habitamos há meses somente a casa (feita de lugar para viver, trabalhar, estudar e brincar, entre outros usos), é curioso pensar num mundo mais habitável. Ultimamente, tem sido no mínimo desafiador pensar o ato de habitar o mundo, física e simbolicamente. Quase um exercício da imaginação.
Sim, imaginar, como ao ler e brincar. Verbos imprescindíveis para que possamos descobrir como voltar a habitar o mundo para além do quintal e da casa. A literatura, assim como também o exercício brincante, é arte que nos fornece espessura, textura, volume, força e densidade para elaborar outros horizontes e, principalmente, construir novas moradas, tanto interiores quanto exteriores. Ao criar universos que só existem na linguagem, criamos universos que sustentam também mundos reais. Por isso, mais do que nunca precisamos brincar, ler, contar (e habitar) histórias.
[1] CALVINO, Italo. Mundo escrito e mundo não escrito. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 111.
[2] ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012, p. 53-54.
[3] REYES, Yolanda. A casa imaginária – Leitura e literature na primeira infância. São Paulo: editoral Global, 2010.
[4] REYES, Yolanda. Ler e brincar, tecer e cantar – Literatura, escrita e educação. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012, p. 28.
[5] PETIT, Michèle. Ler o mundo – Experiências de transmissão cultural nos dias de hoje. São Paulo: Editora 34, 2019, p. 19-20.
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Gabriela Romeu é jornalista, documentarista e escritora. Pela Companhia das Letrinhas, é coautora de Tutu-Moringa – História que Tataravó contou e organizadora da coleção Fora de cena, que reúne dramaturgos e dramaturgas premiados dedicados à infância. Dirige o Infâncias, que registra o cotidiano, o imaginário e o brincar das crianças pelos Brasis.
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