Por Lourdes Atié
Desculpe a ousadia, mas lendo o último livro do Ailton Krenak, A vida não é útil (Companhia das Letras), me senti provocada como educadora a dialogar com o que ele escreveu. E vou tentar colocar aqui uma conversa mental que fiz com ele.
Antes, queria destacar que a pandemia do novo coronavírus tem possibilitado para mim muitas constatações e aprendizagens. Além da revolta em verificar diariamente que, para o governo federal, mais de 140 mil mortes não importam, da mesma forma que orquestra um genocídio dos povos da floresta, percebo também muitos movimentos de resistência e solidariedade por parte de diversos setores da sociedade.
Ilustração Bicho Coletivo
Dentre as constatações positivas, uma que me deixou muito feliz foi a de que aquelas pessoas midiáticas que se colocavam como “oráculos de saberes” antes da pandemia se apagaram e outras nos iluminaram. Entre as que nos trouxeram inspirações, cito Sebastião Salgado, Papa Francisco, Sidarta Ribeiro, Silvio Almeida, Lilia Schwarcz e Ailton Krenak. Além da Eliane Brum, que me possibilitou refletir com clareza sobre o que temos vivido no Brasil, no campo da política e dos direitos humanos. São pessoas que nos ensinam e nos desequilibram das nossas certezas, nos ajudando a entender o mundo de outra perspectiva. Eles me provocaram e, ao mesmo tempo, me deram coragem para seguir, “suspendendo o céu” como, em especial, o Krenak ensina.
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Meus enganos
Também tenho que reconhecer alguns enganos nesses tempos de pandemia. A cada etapa de contaminação, eu imaginava algo, que não se concretizava com o tempo. Explico. Primeiro, acreditei que a pandemia passaria logo, não passou. Depois, acreditei nas informações de que, chegando no pico, a curva de contaminação cairia. Porém, no Brasil, atingimos um pico, estabilizamos num platô elevado e ali estacionamos com pequenas quedas.
Achava também que voltaríamos aos prédios das escolas assim que tudo passasse. Não passou a pandemia, mas muitas escolas voltaram. E seguiu como em todos os setores: um abre-e-fecha determinado pela política, pela economia e menos pela ciência.
Também imaginei que, quando voltássemos para os prédios das escolas, voltaríamos diferentes, construindo uma outra escola. Não como um milagre. Mas porque a pandemia potencializou aquilo que já vínhamos refletindo e debatendo. O isolamento era uma oportunidade de mudanças não só curriculares, mas na dinâmica pedagógica e nas relações, mesmo as espaciais, ou seja, a estrutura física. Acreditava que poderia ocorrer uma metamorfose da escola – selecionando o que é relevante ensinar, porque o ato de aprender tem que fazer sentido com a vida e os alunos não são apenas números e índices de rendimento. Acreditei que finalmente chegaríamos no século XXI.
Porém, quando começou a aparecer nos veículos de comunicação e nas mídias a abertura das escolas particulares, em diversas cidades do Brasil, qual a minha surpresa ao constatar que as mudanças se restringiam ao dispenser ou totens para álcool gel, mais alguns protocolos de segurança e redução no número de carteiras. Agora são menos carteiras, mas as salas de aula seguem o mesmo formato. O que já era questionável, agora ficou ainda mais restritivo. E tem até quem defenda que este ano não existiu, como se fosse possível cancelar um ano vivido porque um mero planejamento curricular não foi ensinado.
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Então vai ser assim? Vamos buscar aquela escola que deixamos lá atrás, antes da pandemia, como se nada tivesse acontecido nos últimos seis meses? Foi então que comecei a ler o livro A vida não é útil.
Dialogando com Krenak
Lendo o livro do Krenak, percebi que podíamos ter um diálogo, mesmo sem ele saber. Então, selecionei alguns trechos que vou explicitar aqui, mostrando o que me fizeram pensar sobre a escola brasileira.
“Estamos viciados em modernidade. A maior parte das invenções é uma tentativa de nós, humanos, nos projetarmos em matéria para além de nossos corpos. Isso nos dá sensação de poder, de permanência, a ilusão de que vamos continuar existindo.” (pág. 17)
É bem assim com as tecnologias digitais e outras novidades. Pelos nossos celulares, somos capazes de acompanhar em tempo real tudo que está acontecendo no mundo, estamos onde quisermos estar, experimentando um mar de novidades pelas telas dessas máquinas. E quanto mais conectados estamos pela tecnologia, mais desconectados estamos de nós mesmos e da vida verdadeira. Praticamente desencarnados. Mas nos sentindo poderosos e... vazios.
“O sistema capitalista tem um poder tão grande de cooptação que qualquer porcaria que anuncia vira imediatamente uma mania. Estamos todos nós viciados no novo: um carro novo, uma máquina nova, alguma coisa nova”. (pág. 61)
O mesmo vemos nas escolas brasileiras. Sempre buscando novidades para marcar um possível diferencial. Desta forma, reforçando a ideia de que uma boa escola é aquela que tem sempre novidades, transforma-se a educação em mercadoria, sem se dar conta de que quem mais perde com isso é a escola. Ao se render ao consumismo pedagógico, ela abre mão do seu verdadeiro valor. Educação não é mercadoria e seu território não é o das novidades. Se assim fosse, facilmente crianças e jovens não precisariam mais ir à escola porque a inteligência faria todo o trabalho. Quando a escola se rende ao mercado altamente lucrativo das novidades, não percebe que caiu numa armadilha que só serve para desqualificá-la.
“Convoquemos a experiência de estarmos harmoniosamente habitando o cosmos: é possível experimentar isso na nossa vida cotidiana sem se render a todo esse terrorismo da modernidade. “(pág. 72)
É disso que a escola precisa também. Parar de adquirir novidades para se reconectar com o que é básico. Precisamos garantir aquilo que é essencial, de forma que os professores tenham condições de trabalho, com pessoas e recursos de apoio para que possam exercer sua função com dignidade e competência. Eles precisam ter tempo para estudar, aprender a trabalhar de forma cooperativa com outros professores, respeitar sua intuição e seguir fazendo aquilo que escolheram fazer: apresentar o mundo para que crianças e jovens se encantem pelo conhecimento e se sintam mobilizados para seguir aprendendo ao longo da vida. Isso sim seria uma experiência em harmonia com o cosmos.
“Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em volta. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise” (pág. 81)
Então temos a oportunidade de reconhecer nossa insignificância e entender nosso papel na Terra. Abandonar o antropocentrismo, pois não fazemos falta para a biodiversidade, como Krenak nos alerta, para aprender a nos relacionar com o planeta e em todas as instâncias de nossas vidas de outra forma. Reconectarmos com o que, de fato, faz sentido neste momento. Quando trazemos essa reflexão para a escola, precisamos ter coragem de renunciar aos excessos – de atividades, de conteúdo a ser ensinado, de disciplinas, de comemorações, de projetos, de resultados – e reconhecer com coragem que a escola antes da pandemia já estava em crise. Não faz nenhum sentido seguir funcionando da mesma forma.
Podemos constatar o quanto os alunos estão exaustos pelo excesso de tempo que passam diante das telas estudando, ou frustrados e abandonados por nada receberem em termos de escolaridade. Os professores também estão estressados. Todos com saudade da escola. E por quê? É do encontro que sentimos falta. Escola é presença. É o olhar que encontra o outro olhar, seja para concordar, chamar a atenção ou simplesmente dizer: “Estamos juntos, qualquer que seja a forma que estejamos aqui”.
“Temos que parar de nos desenvolver e começar a nos envolver.” (pág. 24)
Isso mesmo, Krenak! Vamos parar de achar que é um ano perdido na escola, porque não é possível perder aquilo que vivemos. Perdido em relação a quê? Alunos não são resultados nem projetos. São pessoas que estão vivendo e aprendendo com e para além da escola. Então, vamos com menos cobrança e mais envolvimento. E parar de achar que, se não for do jeito que reconhecemos, não aceitamos. O tempo que vivemos hoje exige envolvimento e não podemos perder a oportunidade de aprender algo que desconhecemos.
“Nós, seja da floresta, seja em um apartamento, precisamos despertar nosso poder interior e parar de ficar caçando um culpado ao nosso redor: uma corporação, um governo. Porque essas coisas todas acabam e nós não podemos ter uma data de validade igual à delas” (pág. 20)
“A experiência de uma consciência coletiva é o que orienta minhas escolhas. É uma forma de preservar nossa integridade, nossa ligação cósmica.” (pág. 39)
A experiência é planetária, com certeza. Mas, no microcosmo escolar, a consciência coletiva, que preserva nossa integridade, significa dizer que: na pandemia, aprendemos que nada vale uma escola que está na dianteira dos diversos rankings, ou que ganhou um título nota dez. Consciência coletiva é reconhecer que só seremos cidadãos se o ensino de qualidade for para todos. Uma escola com excelentes resultados acadêmicos tem que ter excelentes resultados éticos também.
Isso implica reconhecer que precisamos criar redes colaborativas de apoio, pois uma boa escola não é apenas um resultado, mas o caminho para a educação em defesa da justiça social. Ainda mais agora, que os estudantes estão fora dos prédios das escolas e sabemos que milhares de crianças e jovens estão sem qualquer contato para seguir estudando. Sabemos que a desigualdade social aumentou e, consequentemente, a educativa. Não pode mais haver soluções individuais.
Tenho ficado estarrecida em saber que existem cidades pelo Brasil que não estão conseguindo fazer contato com muitos alunos e, mesmo assim, isso não é motivo para um debate social, nem de busca de medidas que exijam o comprometimento de toda a cidade. Isso é inadmissível! Educação não é problema da escola, mas de toda a sociedade. Cada cidade deveria estar debatendo o valor da educação neste momento e não limitar a discussão como se discute a abertura de um shopping center.
“Essa dor talvez ajude as pessoas a responder se somos de fato uma humanidade. Há uma sub-humanidade que vive uma grande miséria, sem chance de sair dela – isso também é naturalizado”. (pág. 80)
Exatamente assim quando ouvimos pela TV que no Brasil há 8 milhões de crianças de 6 a 14 anos sem receber qualquer ajuda para seguir estudando, conforme indicou um levantamento da Unesco. Sem falar nos estudantes do ensino médio e da EJA que possivelmente não voltarão para a escola. Apesar de os dados serem tão alarmantes, isso não afeta a sociedade. O máximo que ouvimos é um lamento. Como aceitar o inaceitável? Como não lutar por um direito assegurado pela Constituição Brasileira?
“Vamos ter que nos reconfigurar radicalmente para estarmos aqui.” (pág. 45)
Com certeza! É um tempo de reabilitação. Temos que abandonar o que não cabe mais e lutar pelo direito de crianças e jovens de seguir estudando imediatamente. Mas não de qualquer jeito. Mais ou menos não basta. Sabemos que milhares de escolas de educação infantil estão fechando. Existe uma estimativa de que 60% dessas escolas já fecharam.
Isso é uma perda imensurável. Sabemos do valor que a escola tem para a primeira infância. Não para distrair ou servir como depósito de crianças. Mas porque é o espaço ideal de cuidar e de aprender. Por isso precisamos reconfigurar o sentido de estarmos aqui agora.
“Esse confinamento involuntário nos deu resiliência, nos fez mais resistentes” (pág. 78)
“O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante. Não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. Ela simplesmente está pedindo: ‘Silêncio’. Esse também é o significado do recolhimento” (pág. 84)
Assim como a Terra pede silêncio, exigindo que nos reconfiguremos, vamos fazer isso também com a escola. Vamos abandonar as preocupações com os currículos neste momento e cuidar de quem nela habita. Vamos cuidar dos alunos emocional e pedagogicamente, sem deixar nenhum para trás, como um compromisso político e ético de cada cidade. Vamos cuidar também dos professores que estão lutando com uma coragem incrível, aprendendo que errar é inevitável e que precisamos disso para aprender, mas nunca desistir. Vamos exigir silêncio e calma para construirmos uma escola de acolhimento e não de medo. Vai depender na nossa coragem para isso.
“Quem está apenas adiando compromissos, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado. O futuro é aqui e agora, pode não haver o ano que vem.” (pág. 89)
“Tomara que não voltemos à normalidade, pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro.” (pág. 91)
Perfeito! Não vamos voltar a encontrar a escola que deixamos quando a pandemia chegou. Vamos aproveitar esta oportunidade para a mudarmos. E não apenas o prédio, mas restaurar aquilo que vale a pena ser ensinado e descartar o que só serve para engrossar as páginas dos livros didáticos.
É hora de trabalharmos pela construção da autonomia dos estudantes – ela começa com a confiança que as escolas precisam ter nos professores, que não são meros executores daquilo que os especialistas consideram relevantes. Os professores precisam ter voz, sair da sua invisibilidade. Sem este passo, eles não serão capazes de fazer uma escola com os alunos e não mais para eles.
Por fim, a travessia do deserto
Poderia seguir falando de muitos outros trechos, mas preciso finalizar o artigo!
“Vamos ter que produzir outros corpos, outros afetos, sonhar outros sonhos para sermos acolhidos por esse mundo e nele podermos habitar. Se encaramos as coisas dessa forma, isso que estamos vivendo hoje não será apenas uma crise, mas uma esperança fantástica, promissora.” (pág. 47)
Temos a possibilidade de transformar a escola, portanto, este tempo pode ser de esperança. A pandemia nos deu a oportunidade de fazer a inovação que sabíamos que teríamos de fazer. Por outro lado, precisamos aproveitar a compreensão sobre como aprendem os alunos, para não voltar a ensiná-los igual, e sim melhor.
Tudo o que vivemos nos dá a certeza do valor da escola como um lugar de direito e de esperança. Ela tem a função epistêmica de nos fazer entender o mundo, por que atuamos e como atuamos nele. Sua atuação peculiar a torna insubstituível e o valor da sua função se justifica para que defendamos a volta dos estudantes aos prédios escolares, baseada em critérios científicos, porque é um direito e todas as crianças e jovens precisam ter igualdade de oportunidades. A escola é esperança. Por isso é imprescindível.
Neste estranho ano de 2020, este livro do Ailton Krenak me ensinou a urgência de superar as cobranças por resultados e nos reconectarmos com a natureza e com a nossa natureza interna. Afinal, escola é vida e a vida não tem um sentido utilitário. A vida simplesmente é! Aprendi com ele, que a vida é fruição e transcendência.
“Os seres humanos não têm certificado, podem dar errado.” (pág. 41)
Sim, podem dar errado. Do mesmo jeito que a educação e, por extensão, a escola que está tentando sobreviver sem mudanças podem dar errado. Afinal, vamos perder a chance de fazer a escola que pensamos ser necessária justamente quando ninguém tem receita e podemos fazer do jeito que acreditamos? Vamos seguir fugindo no nosso protagonismo? Se isso acontecer, sim, podemos dizer que deu errado. Não lutamos o suficiente.
“Quando tudo está entrando em parafuso, você tem que ter alguém pra chamar – eu chamo Drummond” (pág. 24)
E eu chamo Krenak para me conectar com minha essência e não me perder em meio a tantos descaminhos. Só assim consigo sonhar com uma outra escola, um outro tempo. Ele tem me salvado em tempos tão sombrios, me dando coragem para suspender o céu.
“O que nos resta é viver as experiências, tanto a do desastre quanto a do silêncio. `As vezes até queremos viver a experiência do silêncio, mas não do desastre, pois é muito dolorosa. Ou toda vez que você vê o deserto você sai correndo? Quando aparecer um deserto, o atravesse.” (pág. 116)
Então, atravessamos?
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