Por Januária Cristina Alves
O debate da regulação – muito necessária e absolutamente urgente - das mídias sociais no mundo tem suscitado inúmeras discussões sobre qual o papel que elas têm na vida de todos nós. O que nasceu para ser um meio de interação social, de conexão entre as pessoas, um meio para, democraticamente, dar voz a todos, aos poucos, está se transformando numa teia complexa que mistura as interações sociais com uma disputa de espaço, uma arena em que se misturam a liberdade de expressão com o abuso dela, gerando confusão, desinformação e até agressão gratuita.
Ilustração Bicho Coletivo
Uma pesquisa divulgada no início de setembro pelo Unicef relata que um em cada três jovens, de 30 países, declara ter sido vítima de bullying online, com um em cada cinco afirmando ter saído da escola devido a cyberbullying e violência nas redes. Respondendo anonimamente à pesquisa por meio da ferramenta de engajamento de jovens U-Report, criada pelo Unicef, quase três quartos dos jovens também disseram que as redes sociais, incluindo Facebook, Instagram, Snapchat e Twitter, são os locais mais comuns para o bullying digital.
Quando perguntados sobre quem é o responsável por transformar essa situação, 32% dos entrevistados acreditam que os governos devem ser responsáveis pelo fim do cyberbullying; 31%, os próprios jovens; e 29%, as empresas de internet. Ou seja, precisamos falar sobre as narrativas (e contranarrativas) nas redes porque todos somos responsáveis pelo que lá circula. Como dizem: tamo junto!
Como combater a violência na web?
Como se pode ver, a questão não é simples. E não é porque envolve múltiplos atores, como bem observaram os jovens, e requer ações em várias instâncias. Porém, gostaria de chamar atenção para o cerne do cenário onde tudo acontece, onde talvez more não a solução, mas um caminho em busca dela. Estamos falando de redes, de comunicação em tempo real, de narrativas que podem ser contadas de diversas maneiras, produzindo diferentes mensagens, gerando diversas reações.
A meu ver, a construção de contranarrativas é uma das possibilidades concretas de se produzir uma reação a tanta violência online. Para cada história, uma outra e, assim, o diálogo talvez se reestabeleça.
Aliás, cabe esclarecer aqui que falar de contranarrativas não é tratar das “narrativas contra” ou necessariamente contraditórias, mas daquelas que produzem diferentes visões sobre um mesmo tema. Histórias, contadas de diferentes maneiras, por diversas pessoas, expostas em muitos lugares.
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Manipulação nas redes sociais
Recentemente, dois conteúdos disponíveis na Netflix chamaram atenção para a problemática dos efeitos das redes nas nossas vidas aqui e agora. O filme “Rede de ódio”, premiado no festival de Tribeca como melhor filme narrativo internacional, e o documentário “O dilema das redes”. Em comum, ambos têm o fato de mostrar como as redes sociais nos manipulam e provocam comportamentos que muitas vezes estão além do nosso raciocínio objetivo. Revelam como, mesmo não tendo sido criadas para manipular, elas acabaram fazendo isso para se manterem ativas e dentro do seu modelo de negócio.
Entre surpresas e assustadas, as pessoas assistem a esses filmes e se perguntam se há saída nesse labirinto em que nos metemos. Estamos presos nessa trama e, se nos entregarmos a ela, estaremos sujeitos à lacração, ao cancelamento, ao discurso de ódio, ao ciberbullying. Melhor nos valermos dessa teia para tentarmos destrinchá-la.
O poder das contranarrativas
É aí que entram as contranarrativas que, como já disse, nada mais são do que aquelas histórias “ao contrário”, que desconstroem versões clássicas que, na maioria das vezes, são cheias de preconceitos e estereótipos. As contranarrativas dão voz ao Lobo Mau, que também tem a sua versão para contar, e desconstroem as princesas sempre frágeis à espera de um príncipe de cavalo branco para fazê-las felizes. Ao dar voz a quem não tem ou apenas tentar entender a visão do outro, seus argumentos e justificativas, promove o diálogo, o respeito e aceitação do diferente.
As redes sociais devem recuperar o seu objetivo primeiro e lá as pessoas precisam voltar a trocar experiências, ideias, opiniões. E não apenas exibir as suas em busca de likes e cliques.
As contranarrativas, como se utilizam dos mesmos mecanismos das narrativas, são capazes de desconstruir os muros, de ampliar as visões de mundo e o repertório de quem lê, escreve e compartilha.
As histórias são importantes e necessárias, porque o grande desejo do ser humano é ser visto, ouvido e reconhecido em suas peculiaridades e idiossincrasias. A isso damos o nome de empatia. E as histórias provocam esse tipo de sentimento porque nos fazem “calçar os sapatos alheios”.
A matéria de que são feitas as contranarrativas é aquela que alimenta a boa convivência e não há segredo nisso: falar e ouvir o outro com respeito e atenção, dar seu testemunho, construir argumentos que se baseiem em fatos e, quando for dar sua opinião, deixar claro que não se trata de uma verdade porque, para nossa sorte, sempre há muitas verdades contidas numa mesma história. E lembrar que a história que se quer contar se trata de uma escolha, porque sempre podemos escolher tecer as manhãs em conjunto, ao som de muitas vozes, em vez de falarmos para nós mesmos. Como dizia João Cabral de Melo Neto, em seu lindo poema “Tecendo a manhã”:
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
***
Januária Cristina Alves é mestre em Comunicação Social pela ECA/USP, jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, vencedora do Prêmio Vladimir Herzog e Direitos Humanos (1990) e co-autora do livro “Como não ser engando pelas Fake News” (Editora Moderna).
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