Ainda dá tempo de ter esperança para 2021?

17/12/2020

Por Lourdes Atié

Aceitei o desafio que o Blog da Companhia das Letrinhas me colocou. Pediu para que eu escrevesse sobre “Os motivos para se ter esperança em 2021”. Para mim, parto do princípio de que não é possível ser educadora sem esperança e é deste lugar que eu falo. O contexto no qual nos encontramos, principalmente neste espaço chamado escola, embora reconhecendo e defendendo que a educação não acontece somente neste lugar, considero que é nele o celeiro de fazer gente. Por isso, não existe, para mim, a hipótese de não ter esperança.

Ilustração do livro "Ah, os lugares aonde você irá!", de Dr. Seuss

Porém, reconheço que o ano de 2020 foi um tempo inimaginável que nos esgotou. Tivemos que jogar fora nossas certezas, aprender a viver na instabilidade e sentir a desagradável sensação de fracasso muitas vezes. Como seguir com esperança para um ano que não temos a menor ideia do que será?

Isso me faz lembrar que uma frase que ouvi do Ailton Krenak, na live do Livmundi, em que estava sendo entrevistado pelo jornalista André Trigueiro. Como última pergunta, Trigueiro questionou: “Então, Krenak, existe luz no fim do túnel?”. O que ele de pronto respondeu com seu sábio sorriso: “Eu não acredito em túneis!”. Pois é a partir desta resposta que eu abro com humildade minhas considerações, tentando responder se diante de tantas dificuldades, ainda conseguimos manter a esperança.

 

A esperança está em nós, não no fim do túnel

Krenak me fez pensar que, quando focamos na luz do túnel, tentando conferir se ela existe ou não, perdemos tempo com o foco errado. E se o túnel não existisse? Entendi que não é numa luz em um lugar delimitado que encontraremos saídas. A luz, ou seja, a esperança, não está fora de nós e qualquer que seja o lugar que nos encontremos, temos que cultivá-la.

Ter esperança não é acreditar em um otimismo passivo. Esperança é risco. Construímos no movimento da vida, nas escolhas que fazemos e a educação é geradora de esperança, como ensina o Papa Francisco. É ele também que falou: “Não deixe que ninguém tire a sua esperança!”. Forte, não? E como será que temos nos comportado neste ano tão difícil? Cultivamos esperança ou esquecemos dela na nossa rotina exaustiva?

Ilustração do livro "Ah, os lugares aonde você irá!", de Dr. Seuss

Hoje me lembrei de uma situação que vivi, há muitos anos, quando estava desenvolvendo um projeto sobre pesquisa de opinião para jovens, numa escola pública na zona norte do Rio de Janeiro, próxima a duas favelas, que viviam numa guerra permanente entre quadrilhas rivais de tráfico. Eram os traficantes que determinavam como e quando a escola deveria funcionar.

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Frequentava semanalmente a escola, no horário noturno por conta desse projeto. Era uma escola abandonada em todos os sentidos, com professores cansados e alunos que não gostavam da escola (acho que ninguém gostava) e estavam ali apenas para tirar o diploma. E eu, na esperança de conseguir parceria com algum professor para desenvolver o tal projeto. Um dia, a professora de literatura me convidou para que eu entrasse na aula dela para apresentar o projeto, porém, me alertou que era turma de reprovados, perdidos, não aprendiam nada, também não queriam nada e só faziam bagunça. Todos eram analfabetos, segundo ela. Enfim, só desgraça!

 

Esperança – a gente nasce com ela ou aprende a ter?

Entrei na sala de aula, um dos espaços mais malcuidados que já tinha visto, com todos os alunos negros, a maioria de rapazes, fazendo muita bagunça. Nem olharam quando entramos e a professora começou a aula. Ela anunciou que tinha trazido um conto. Perguntou quem queria ler. Começaram a debochar da professora.

 

Estudantes rotulados de perdidos se tornaram protagonistas de uma experiência inimaginável, em que puderam entender sua história, reconectar com a força da comunidade e, mais que tudo, concluíram que eles tinham direito a ter esperança e precisavam dela para mudar seu destino.

 

Então eu me ofereci para ler. Era o conto “Uma esperança”, da Clarice Lispector. Comecei a ler com calma e na entonação certa. Aos poucos foram silenciando, prestando atenção em cada palavra que dizia. Quando terminei, o silêncio era total e um jovem bem grande pediu que eu lesse de novo, como as crianças pequenas fazem quando gostam de uma história. Perguntou também se eu era atriz, porque sabia ler muito bem. Ganhei o grupo, mesmo sem ser artista!

Naquele momento, começamos um projeto que durou todo segundo semestre, sem nenhuma falta às aulas por parte desses alunos. Mas, para começarmos o projeto, depois de explicar como iria funcionar, deixei claro que ele para ser concretizado, precisaria partir de alguma indagação que tivessem e que gostariam de pesquisar. Depois de um tempo de debates entre eles, me avisaram que tinham a pergunta que iria orientar o projeto. Disseram que queriam saber: “Esperança – a gente nasce com ela ou aprende a ter?”.

Assim, começamos um projeto que foi um dos mais importantes que trabalhei na minha vida docente. Estudantes rotulados de perdidos se tornaram protagonistas de uma experiência inimaginável, em que puderam entender sua história, reconectar com a força da comunidade e, mais que tudo, concluíram que eles tinham direito a ter esperança e precisavam dela para mudar seu destino. Aprendi muito com esses jovens e tive a certeza de que não haveria saída para eles se não tivessem se apropriado da força da esperança.

 

“A esperança é o condimento indispensável à experiência histórica. Sem ela, não haveria História, mas puro determinismo” (Paulo Freire)

 

Um ano de aprendizados

Conto aqui apenas uma parte desse projeto que foi tão importante para mim e que mudou a vida daqueles que eram invisíveis, para dizer que, mesmo nos momentos em que não vemos saída, precisamos nos agarrar à esperança, como também ensina Paulo Freire: “A esperança é o condimento indispensável à experiência histórica. Sem ela, não haveria História, mas puro determinismo” [1]

Sei que é difícil encontrar esperança em um tempo que perdemos muito. Na educação, saímos do prédio da escola e o ensino, que sabemos que tem um valor inegociável presencialmente, passou a acontecer de forma remota. Muitos viveram a frustação de não ter conseguido contactar todos seus alunos por limitações tecnológicas ou geográficas. Tivemos que aceitar que não daríamos conta do planejamento curricular que tínhamos construído para o ano.

Foi preciso lidar com a frustração de ver os alunos desmotivados para nossas aulas. Aprender a lidar com as cobranças dos pais ou os pedidos de ajuda daqueles que não tinham condições de ajudar seus filhos nas lições escolares. Muitas escolas criaram mais burocracia, sobrecarregando o trabalho docente. Exaustão total!

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Vivemos um tempo de muita pressão, frustração e esgotamento. Alguns educadores perderam pessoas próximas que morreram contaminadas pela Covid-19. Outros perderam seus empregos. Foi preciso aprender a fazer da casa que habitamos um lugar de convivência, de trabalho, de cuidado. Tivemos que aprender a viver com menos.

 

Como seguir com esperança em um tempo imprevisível?

Agora estamos finalizando este estranho ano. Um tempo de atropelamentos, perplexidades, em que passamos praticamente morando dentro do computador. E agora que a cidade se enche de luzinhas para lembrar a todo mundo que um novo ano se aproxima, chega a dar um frio na barriga ou um imenso desânimo. Mas qual ano virá? Não sabemos. Como seguir com esperanças em um tempo imprevisível?

 

Aproveite as incertezas para cultivar esperanças, construindo a escola que cada um sabe que faz sentido. Porém, não é um sonho individual. Para ter a força de mudança, precisa ser coletivo

 

Sempre lembro que temos a opção de olhar para vida como um copo d’água. Eu decido se quero enxergar o copo meio cheio ou meio vazio. Esta escolha é de cada um e intransferível. Penso que o melhor caminho de escolha é olhar criticamente para o mundo que tínhamos antes da pandemia e sem fantasia românticas. Não estávamos bem. Vivíamos em um mundo acelerado demais, corríamos de um lado para o outro, tudo era muito. Na escola, vivíamos a estabilidade plena. Tudo previsível. Tínhamos um mapa de controle de cada aluno e do trabalho pedagógico. Sabíamos o que cada um deveria aprender em cada fase da vida estudantil. O planejamento anual se repetia a cada ano, porque vivíamos em um mundo controlado, previsível e imutável.

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Mas, no meio de tantas certezas, chegou uma pandemia trazendo um novo coronavírus e tivemos que reinventar nossas vidas e a escola para fora do prédio. Agora temos a oportunidade de fazer as mudanças que sonhamos, porque diante de tamanha imprevisibilidade, podemos buscar aquilo que acreditamos e eliminar o que deixou de fazer sentido.

Então, aproveite as incertezas para cultivar esperanças, construindo a escola que cada um sabe que faz sentido. Porém, não é um sonho individual. Para ter a força de mudança, precisa ser coletivo. Acredito que somos nós que fazemos o futuro, que começa hoje e que, mesmo que não se concretize na grandeza que desejamos, é um caminho para se chegar aonde gostaríamos.

 

Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima

A escola como funcionava antes da pandemia não estava fazendo sentido para a maioria dos alunos. Agora é hora de mostrarmos a relevância que a escola tem para nós educadores e que deve ter para a sociedade. Não há receitas prontas, nem garantias de sucesso. Precisamos seguir com esperança de que podemos fazer mais, com o compromisso de eliminar aquilo que não faz sentido. Não podemos perder esta oportunidade.

 

Proponho que juntemos Krenak, Papa Francisco, Paulo Freire e Mia Couto, além das experiências que vivemos neste ano, para nos perguntarmos se é possível não ter esperança, com tantas crianças e jovens que estiveram conosco e que ainda estarão esperando pela qualidade do encontro que só nós sabemos proporcionar.

 

Lembro de uma vez que um jornalista perguntou para o escritor Mia Couto, diante de um cenário tão difícil que ele falava a respeito de Moçambique, se era possível seguir com esperança. E ele deu a seguinte resposta (mais ou menos assim): “Temos que aprender com os brasileiros que têm uma música que diz ‘levanta, sacode a poeira e da volta por cima’. Acho que precisamos agir assim, afinal, pessimismo é para os ricos!”.

Exatamente isso. Proponho que juntemos Krenak, Papa Francisco, Paulo Freire e Mia Couto, além das experiências que vivemos neste ano, para nos perguntarmos se é possível não ter esperança, com tantas crianças e jovens que estiveram conosco e que ainda estarão esperando pela qualidade do encontro que só nós sabemos proporcionar. As frustrações, tenho certeza, são muito menores que todas as vitórias que já tivemos até aqui.

Então, aproveite para queimar as roupas de Super-Homem e de Mulher Maravilha, para simplesmente ser a pessoas que aprende a cada dia, em meio a frustrações e conquistas e que nunca perde a esperança de sempre encontrar um jeito de fazer melhor dentro do possível.

 

[1] FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Editora Paz e Terra. São Paulo, 1997.

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Lourdes Atié é socióloga, consultora de educação e trabalha com formação de professores

 

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