Por que ler se tudo está tão precário?

14/04/2021

Por Silvia Oberg

“A arte existe porque a vida não basta”, disse o poeta Ferreira Gullar em uma entrevista. Talvez essa afirmação nos ajude a pensar a pergunta acima. A vida, se limitada ao cotidiano das obrigações para garantir nossa subsistência, nunca bastou. E, talvez por isso, ao longo do tempo as pessoas sempre se dedicaram a desenhar, pintar, dançar, cantar, tocar, esculpir, criar histórias e poemas, num impulso que revela a necessidade humana de transcender a sobrevivência física.

As muitas possibilidades de experiências oferecidas pela literatura infantil

Ilustração: Bicho Coletivo

A pandemia deixou o planeta de pernas para o ar. De repente, tivemos que nos distanciar das pessoas, cancelar viagens, festas, passeios, encontros; as crianças não puderam continuar na escola, muitos passaram a trabalhar de casa, perdemos pessoas queridas...

No isolamento, buscamos a comunicação de várias maneiras, mas lembro aqui as cenas especialmente comoventes de quando janelas se abriam para alguém tocar um instrumento, cantar, ler poemas, aplaudir, acenar para o outro de dentro dos espaços em que fomos obrigados a nos recolher, quando se instalou o nosso “novo normal”.

Talvez uma das maiores dificuldades desse período seja o vazio deixado por esse afastamento obrigatório e, ainda que a tecnologia nos ajude a preencher minimamente as ausências através das telas de computadores, tablets e celulares, o confinamento físico persiste e temos que evitar o toque – abraços, beijos, mãos dadas representam perigo.

No cenário de incessantes dúvidas e preocupações, de luta entre vida e morte, de solidão e distanciamento, de horas e horas diante das telas, qual seria o lugar da literatura na vida das crianças?

Ao fazermos essa pergunta é preciso considerar que as desigualdades sociais que sempre marcaram nosso país ampliaram seu alcance e suas consequências, especialmente sobre aqueles que já tinham pouco ou nenhum acesso a bens materiais e culturais antes da pandemia. 

Por isso, quando refletimos sobre as relações entre literatura e crianças, é importante lembrar que nem todas vivem em condições que permitem o contato com livros (ou a outros suportes e dispositivos da literatura, como plataformas virtuais, internet etc), ao contrário daquelas que estão protegidas, sabem ler, não estão doentes ou com fome – direitos que em nosso país são garantidos a uma minoria.

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A literatura como elemento de continuidade

Nas condições atuais de incertezas e medo, talvez a literatura ganhe novos sentidos. Nesses tempos de descontinuidade e rupturas, quando nosso cotidiano foi brutalmente modificado, a palavra escrita oferece uma permanência – pode ser tranquilizador saber que as histórias, as ilustrações, os poemas encontrados nos livros ou em outros suportes estarão sempre lá, nos esperando para serem lidos e relidos. Se a leitura possibilita trocas entre o leitor e o texto, contato com nossa subjetividade, exercício de nossas capacidades imaginativas e amplia nossas referências de mundo, mais do que nunca a fruição da literatura se coloca como um “bem incompressível”, ou seja, um bem que tem a mesma importância daqueles que garantem nossa sobrevivência física, como defendeu Antonio Candido em seu ensaio “O direito à literatura”.

Hoje, grande parte das crianças está em casa, afastada da interação social com outras crianças e das atividades próprias da infância. Em meio a muitos “nãos” – não poder abraçar os amigos, beijar a professora, ir à escola; não poder sair, não ir ao parquinho ou à pracinha sem máscara etc –, a literatura diz “sim”, abrindo um espaço fundamental para que as crianças vivenciem simbolicamente uma grande diversidade de experiências.

A literatura nos diz “sim”: o tempo traz mudanças e a menina maltratada pela madrasta conseguiu mudar seu destino; Rapunzel desafiou a feiticeira e escapou da torre em que estava aprisionada. Sim, também podemos nos arrepiar com medo de monstros, fantasmas e almas penadas. Sim! Podemos imaginar coisas impossíveis e loucas, rir e nos divertir com elas! Alice não viveu aventuras mirabolantes com o Chapeleiro Maluco, o Coelho Branco e a Lebre de Março? Narizinho não visitou o Reino das Águas Claras? Tia Nastácia não foi parar na Grécia Antiga e fritou bolinhos para matar a fome do Minotauro?

Tia Nastácia é raptada pelo Minotauro, mas conquista o monstro com seus bolinhos

Tia Nastácia é levada para a Grécia Antiga e seus
bolinhos derrotam o monstro pelo estômago. Leia +.

Também encontramos cidades, casas, famílias, pessoas e realidades como as nossas em muitos livros. Mas e se nos sentimos chateados, solitários, tristes? Sim, na literatura também há lugar para personagens que não são os mais amados, os mais inteligentes, os mais belos. E se há lugar para situações difíceis, como perdas, doenças, morte, dor, guerras, também há para recomeços, resiliência, transformações, afirmação da vida.

O isolamento a que estamos submetidos implica perdas para todos, mas para as crianças os desafios são especialmente difíceis, uma vez que suas possibilidades de interagir fisicamente umas com as outras estão muito limitadas – a comunicação pelas telas pode até acontecer, mas não o toque, a aproximação corporal e afetiva. E sabemos a importância da dimensão sensorial na vida das crianças, especialmente as mais novas, já que através dos sentidos elas conhecem o mundo, aprendem e se desenvolvem.

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Possibilidades de aventuras e de silêncios

Mas mesmo em meio a tantas mudanças e às novas obrigações de nossa rotina de confinamento, é possível abrir brechas, criar momentos especiais, lendo para e com as crianças. Podemos conversar, brincar, descobrir juntos os muitos sentidos das palavras e imagens; fazer invencionices criando novos finais para os enredos, novos versos para poemas, histórias coletivas, novas ilustrações, vozes para os personagens ou preparar um bolo para o chá maluco de Alice e os bolinhos da Tia Nastácia, entre tantas possibilidades.

Mas também podemos ficar quietos e simplesmente deixar o que lemos agir dentro de nós e guardar secretamente os sentimentos que personagens, histórias, versos nos despertaram. E aqui, vale lembrar um dos dez “direitos imprescritíveis do leitor”, apontados por Daniel Pennac em seu livro Como um romance: o “direito de calar”.

As crianças podem ler da maneira que quiserem

Inspirado em Daniel Pennac, este livro revela que as
crianças podem ler da maneira que quiserem. Leia +.

E se tudo está por um fio, podemos juntar os fios e tecer uma rede de sustentação na qual nossas leituras se entrelacem, construindo vínculos, acolhimento, vitalidade.

Talvez daqui a alguns anos nos lembremos – adultos e crianças – das leituras feitas durante o isolamento como antídotos para enfrentar os venenos desses duros tempos e pensar nos momentos compartilhados em torno da literatura como algo precioso, que nos alimentou e deixou mais leve o peso da pandemia. Pois a vida sem a arte não basta.

 

Silvia Oberg é graduada em Letras, especialista em literatura infantil e juvenil, doutora em Ciência da Informação e Educação pela Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo. Trabalhou na Biblioteca Infantojuvenil Monteiro Lobato (SP). Professora, coordenadora de programas de formação de mediadores de leitura, ministra cursos e oficinas de literatura, e presta consultoria a editoras. Crítica literária, curadora de prêmios de literatura infantil e juvenil e de coleções de literatura para crianças e jovens e membro do júri de diversos prêmios literários.

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