Um livro-quintal que nasceu e termina com um sonho

16/06/2021

Por Fernando Nuno

O livro O quintal da minha casa surgiu do sonho. Foi assim:

No começo de 2019, conduzi um curso, uma oficina de escrita, chamado “Sonhos Imprevistos”, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc-SP. Dois dias (ou, melhor: duas noites) antes de dar a primeira aula, tive eu um “sonho imprevisto”.

Capa do livro 'O quintal da minha casa', inspirado em um sonho com o Paulo Vanzolini

Saborosos e sonoros nomes de plantas, frutas e
animais compõem este quintal rico e diverso. Leia +.

Foi um sonho diferente, sem imagens, só com palavras. Vi, ouvi, senti estas frases:

“– O quintal da minha casa.

...

– Mexeram no quintal da minha casa.

...

– O quintal da minha casa tem árvores: [em seguida, vinha uma série de nomes de árvores, numa sequência bem ritmada].

– O quintal da minha casa tem bichos: [também aí vários nomes de animais, num ritmo bem musical, meio que um rap].

– Paulo Vanzolini.”

 

Era quase de manhã. Então, já meio desperto, mas ainda meio dormindo, foram aflorando novas entoações, que fui guardando na cabeça... Ao me levantar, no café da manhã e indo para o trabalho no estúdio, continuei a sentir, vendo ou ouvindo, no mesmo ritmo onírico, as sequências que iam brotando naturalmente e que agora estão na primeira parte do livro.

A ideia como um todo acabou de se formar nos dias seguintes: foi quando imaginei que o quintal era não só o nosso planeta, mas também todo o Universo – e que o Nosso Quintal se tornava ainda maior que o Universo físico, pois é capaz de conter a Imaginação.

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O sonho que inspirou o quintal do livro tinha nomes de plantas, animais e Paulo Vanzolini

A ilustração vibrante de Bruno Nunes para o livro infantil O quintal da minha casa, de Fernando Nuno

 

Por que Paulo Vanzolini?

Não foi difícil entender a “aparição” do nome de Paulo Vanzolini. Ele era um cientista que amava a Natureza e procurou defendê-la, mas também foi compositor de músicas que falam ao coração.

Algum tempo depois, me ocorreu pesquisar na internet: descobri que o cineasta Aurélio Michiles tinha planos de fazer um documentário com o título O quintal da minha casa, sobre o morar na Amazônia. Mas o que me deixou perplexo foi que ele dedica o projeto ao doutor P. E. Vanzolini. Ainda não sei o que pensar dessa coincidência incrível – mesmo que outras pessoas façam as interpretações mais variadas do fato, das mais esotéricas às que não veem nisso mais que uma simples coincidência. Mas que coincidência rara! O que importa é que qualquer interpretação que se faça será sempre bonita, amiga da Terra nossa mãe.

Só encontrei Paulo Vanzolini uma vez, no aniversário de um amigo dele que era pai de uma amiga minha. Nem chegamos a conversar, só nos cumprimentamos e tivemos algumas trocas de sorrisos durante a pequena festa. Sorrisos de empatia que diziam muito da generosidade afetuosa de uma pessoa dedicada à defesa do ambiente, que era também um artista.

 

Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima

Na minha infância, uma das minhas músicas preferidas era dele. Chama-se “Volta por cima” e tem um refrão gostoso de cantar que diz: “Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”. O grande intérprete desse samba era um cantor que usava um nome lindo: Noite Ilustrada – e que cantava de um jeito muito cativante. Desde então, surgiram muitas novas versões da canção. Entre as mais marcantes, a de Maria Bethânia e a de Elza Soares.

Esse verso de Paulo Vanzolini é um ensinamento que tem sido de grande valia para mim nas fases de dificuldade. Penso que ela sintetiza um sentimento que está dentro de nós, que somos gratos à Natureza por nos propiciar a vida e que desejamos protegê-la dos ataques e dos abusos da ganância: nunca se abater, sacudir a poeira e seguir em frente na busca de um mundo sempre melhor para todos os seres humanos que compartilham este imenso quintal que também é nossa casa.

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Os meus quintais

Além das músicas que me marcaram como menino que, sem mais nem menos, adorava cantar diante dos amigos e dos parentes as músicas que amava, do começo ao fim da letra, uma lembrança marcante é a dos quintais que me conheceram.

Desde o primeiro, nos fundos da casa, separado por um muro da avenida da Luz (atual avenida Prestes Maia), então a principal do centro de São Paulo, imaginem. A avenida tinha um canteiro central lindo, com uma fileira esplêndida de altas palmeiras. Eu me debruçava na varanda para ver os desfiles de Nove de Julho e de Sete de Setembro e, quando cimentaram grande parte do quintal, peguei o martelo de meu pai e numa tarde me pus a quebrar o cimento. Tinha eu cinco ou seis anos de idade.

Também morei no Brás. Os fundos das casas da rua Ipanema eram separados da linha do trem da Central do Brasil por um grande pomar – no qual entrávamos às vezes, pulando o muro, meus amigos e eu em busca de goiabas e outras frutas, mas receosos de que aparecesse algum cão desgovernado.

Do quintal-pomar da casa de meus pais em Santana, eu amava as plantas. Meu pai plantou um pé de café, colheu os frutinhos e os torrou para ter o prazer de tomar cafezinho produzido por ele. Eu plantei morangos, jambo, hortelã, abacate etc. Minha mãe plantou eugênia-preciosa, horta. Meus irmãos plantavam outros etcs. Da varanda eu via as chácaras e os campos de futebol de várzea lá embaixo, os aviõezinhos subindo e descendo no Campo de Marte, vários outros bairros de São Paulo até a Penha e a Vila Formosa e, em especial, até a serra do Mar, do outro lado da cidade. Na adolescência, li grandes clássicos da literatura diante daquela vista naquele quintal.

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As pessoas do quintal que nasceu do sonho de Fernando Nuno com Paulo Vanzolini

As pessoas do nosso quintal, pelo ilustrador Bruno Nunes

A uma quadra de nós, na divisa de Santana com a Casa Verde, uma imensa quadra era ocupada pela floresta, onde eu ia buscar morangos silvestres e meus pais, chamando meus tios, faziam pique-niques com as crianças em fins de semana para lá de especiais.

Outro quintal emocionante é o da casa em que nasci, no interior de Portugal, que só conheci adulto – vim para o Brasil no colo da minha mãe, e meu coração, portanto, é muito brasileiro. O quintal de lá tem até colmeia e pombal.

 

O sonho de um quintal vivo no presente

A lembrança do cientista e músico Paulo Vanzolini, como um símbolo, é ainda mais oportuna em tempos de pandemia. Será preciso Ciência e Arte – muita Ciência e muita Arte – para vencer os desafios que a duplicidade do ser humano provoca ao destruir não só o que ele próprio constrói.

E a emergência de saúde que hoje perturba a Terra nos faz ver como, mais que nunca, os quintais são importantes. A evolução dos acontecimentos vai revelando que, com a destruição dos pequenos quintais, o grande quintal que é o planeta corre o risco de perder uma criatura muito importante, aquela que é capaz de fazer listas de bichos e plantas e outros itens do Universo: o ser humano.

Paulo Vanzolini apareceu num sonho de Fernando Nuno e inspirou o livro 'O quintal da minha casa'

As crianças cuidam do nosso quintal, em ilustração de Bruno Nunes

O Quintal da Minha Casa, que afinal é o Quintal de Todos Nós, tem Ciência e tem Arte. As crianças que moram nele adoram brincar, desenhar, cantar. Tudo isso corre o risco de se perder se não agirmos, cada um com suas qualidades próprias.

O crescimento dessa necessidade se refletiu no processo da edição de O quintal da minha casa. Na primeira versão do texto, o final do livro indicava problemas causados pela destruição crescente da natureza e encorajava a criança leitora a se informar sobre o assunto e buscar soluções.

Com a pandemia, o lançamento do livro foi adiado, enquanto, afastados socialmente, tomávamos conhecimento de recordes no desmatamento e na queima da floresta. Senti então a necessidade de alterar o final do livro, passando a propor ao pequeno leitor atitudes e medidas práticas para preservar o Quintal.

Por coincidência (de novo, será que existe coincidência?), as editoras Júlia Schwarcz, Mell Brites e Gabriela Tonelli, sentiram a mesma necessidade que eu. Reescrevi o final do livro, e sou muito grato às minhas queridas por terem feito isso em conjunto comigo.

Este livro nasceu em um sonho e termina com um sonho, que pode muito bem ser real: o resgate do ambiente é mais que uma esperança, é algo que muitas pessoas em todo o mundo já começaram a realizar. Cada vez mais gente tem consciência de que a maior riqueza, a que permanece, não é a do dinheiro, mas a da Natureza. Espécies animais estão extintas, florestas se foram. O futuro será tanto mais possível quanto mais vida devolvermos ao presente.

 

Fernando Nuno é autor de O livro que não queria saber de rimas, da Companhia das Letrinhas, e idealizou e organiza a Coleção Germinal, de clássicos de fundo histórico e social adaptados para a escola da editora Seguinte. Foi o editor do Círculo do Livro, maior clube de livro do Brasil, e dirigiu a redação do site brasileiro infantojuvenil da Encyclopaedia Britannica.

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