Autores de ‘Mas por quê??! A história de Elvis’ falam sobre escrever teatro para criança

29/10/2021

Estão no palco Max, que é um urso de pelúcia gigante, a espevitada garota Lili, o malvado pirata Sebastião e Gilda, uma mulher em preto e branco meio perdida. Cada um no seu canto, os quatro se encontram num mesmo ponto no início da peça Mas por quê??! A história de Elvis, de Rafael Gomes e Vinicius Calderoni. O livro é o sétimo da coleção de dramaturgia Fora de Cena, da Companhia das Letrinhas, que traz obras de dramaturgos contemporâneos para crianças e é organizada pela crítica de teatro Gabriela Romeu.

 

Mas o que esses personagens tão diferentes têm em comum? O que os levou até ali, nesse encontro inusitado? Antes de descobrir esse enigma, junta-se ao grupo mais uma personagem, a menina Cecília, que chega arrasada, muito triste mesmo, com uma mala enorme. Depois de causar cataclismas nesse lugar que ainda não sabemos qual é, ela conta o motivo de sua tristeza: Elvis morreu! Não, não o cantor famoso, mas seu amado canarinho.

 

Peça e autores premiados

O espetáculo musical, que é entrelaçado por canções do rei do rock, foi baseado no livro Mas por quê??! A história de Elvis, de Peter Schössow (Cosac Naify, 2008) e já teve montagem de sucesso nos palcos em 2015. Esse é o primeiro trabalho dos dois autores, que são amigos, voltado ao público infantil e, de cara, o Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) como Melhor Musical Infantil. Apesar disso, em entrevista ao Blog (abaixo), Vinicius conta que o grande pulo do gato para escrever a peça foi não pensar na distinção “peça para criança”.

Rafael Gomes e Vinicius Calderoni (Foto: Divulgação)

“Há uma preocupação de ser entendido, de não deixar faltar elementos para que a criança possa se situar e se entender naquele universo, bem como uma procura de uma linguagem graciosa, mas que, ao mesmo tempo, não infantilizasse as crianças em demasia. Mas, em termos de dispositivo formal, acho que a peça se parece bastante com procedimentos que usei em textos adultos, uma mesma dinâmica de jogo permanente, e eu apostei que isso seria tão expressivo para as crianças quanto sentia que era para os adultos”, explica o autor.

Além de dramaturgo, Vinicius é roteirista, ator e já foi premiado com um prêmio Shell pelo texto da peça Ãrrã, em 2016. Ele ainda é cantor, compositor e instrumentista e integra a banda indie 5 a Seco. Rafael é diretor de cinema e teatro, roteirista, dramaturgo e já recebeu o Prêmio Shell pela direção de Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, em 2015.

 

Temas delicados

De maneira sensível e divertida, o desenrolar da peça revela aos leitores e espectadores que o fio que liga aqueles personagens do começo é seu passado com Cecília. Todos eles fizeram parte da história da garota em algum momento: o brinquedo perdido; a amiga imaginária; o vilão de um filme, de quem ela não tinha medo; a fotografia de sua avó Gilda. Com o tempo e a vida, porém, todos eles passaram a viver em um cantinho pouco iluminado da memória de Cecília – o cenário da peça.

A peça fala da morte, da tristeza e do esquecimento de um jeito muito delicado, em que as emoções dos personagens são reveladas por meio de vários recursos, como as músicas de Elvis - o cantor, não o passarinho de Cecília. O livro traz também um QR code com uma playlist exclusiva com todas as músicas que aparecem na narrativa, como os clássicos “A Little Less Conversation” e “Tutti Frutti”, que as crianças podem ouvir pelo Spotify e YouTube.

 

Vocês escreveram o texto da peça a partir de um livro ilustrado infantil. Vocês costumam ler livros que são, a princípio, voltados ao público infantil? Têm algum título ou autor preferido?

Vinicius Calderoni: Eu sempre amei literatura infantil e infantojuvenil e isso se acentuou a partir de 2016, porque minha companheira é uma grande editora de livros infantis e uma conhecedora profunda de toda história desta literatura, de modo que começou a rolar uma curadoria incrível e uma série de indicações de leitura. Desde então, leio com o mesmo interesse de sempre, mas com uma assiduidade imensamente maior.

Rafael Gomes: Eu tenho memórias muito vivas da leitura de livros infantis na infância. Num primeiro momento, de meus pais lerem para mim, e de eu ficar habitado por uma imaginação residual daqueles universos e personagens. Um desses livros do qual lembro até hoje é Surileia-mãe-monstrinha, de Lia Zatz e Eva Furnari (ilustrações). Depois, já um pouco mais velho, mas ainda na infância, lembro dos primeiros livros lidos como tarefa escolar. E, novamente, tenho muito nítida ainda hoje a sensação de, ao ler, explorar mundos desconhecidos. Dessa leva, fui profundamente marcado por A ilha perdida, de Maria José Dupré. Adulto, a frequência com que leio livros infantis infelizmente não é tão grande.

 

Como vocês conheceram a história original? E como decidiram fazer uma peça a partir dela?

Vinicius: Quem nos apresentou o livro e a história foi o Pablo Sanábio, ator e produtor carioca que é, junto com o Felipe Lima, um dos idealizadores da montagem original. Ele se apaixonou pelo livro e nos deu de presente, quando já tinha adquirido os direitos e queria transformar numa peça teatral. Eu e Rafael lemos e adoramos. Assim começou nosso trabalho.

Rafael: O próprio Pablo, inclusive, já tinha essa premissa de que a peça incorporasse músicas que ficaram famosas na interpretação do Elvis Presley. Essa livre associação, de se aproveitar de um nome próprio (Elvis) que estava no título do livro e projetá-lo sobre a figura de um músico famoso, já chegou para nós pronta. A trama literária, no entanto, era muito tênue. Então toda a dramaturgia teve que ser efetivamente criada, partindo somente de uma inspiração.

 

A peça foi um sucesso de público e crítica. Podem contar um pouco das repercussões que ela teve? Vocês têm planos de escrever mais peças infantis?

Vinicius: A peça teve uma acolhida realmente generosa em termos de público e crítica no ano em que esteve em cartaz (2015). Venceu, por exemplo, o Prêmio APCA de Melhor Musical Infantil e foi escolhida a peça infantil do ano pelo Guia da Folha. No Rio, ela colecionou mais uma série de prêmios e indicações. Para mim foi uma surpresa grande: nunca havia escrito nada para crianças, então não sabia realmente o que esperar. Foi maravilhoso ver que vários artistas que sempre admirei estavam levando os filhos para assistir a peça (lembro de alguns que me marcaram como o Wagner Moura e a Fernanda Torres, entre muitos outros).

Rafael: Eu e o Vinicius moramos em São Paulo, então nós acompanhávamos à distância as notícias sobre o sucesso da peça, quando ela estreou no Rio. Eu lembro, por exemplo, de quando nos contaram que a Camila Pitanga foi assistir e decidiu levar toda a turma de escola da filha dela, de tanto que tinha gostado do espetáculo. E, independente dessas pessoas que quem somos fãs e que estavam admirando o trabalho, sempre houve uma manifestação constante de adultos que levavam os filhos e saíam envolvidos e comovidos. Sobre o plano de escrever mais peças infantis, sim, é algo que eu adoraria continuar fazendo. Me interesso especialmente pela ideia de transpor clássicos do teatro para plateias jovens.

Cena da premiada peça Mas por quê??! A história de Elvis, que teve montagem em 2015

Para além da escola, o gênero dramático parece encontrar alguma resistência em relação à leitura, como se fosse mais difícil ler teatro. Vocês percebem isso? Se sim, a que vocês atribuiriam?

Vinicius: Acho que a resistência pode vir um pouco das convenções do gênero. A escrita dramática tem alguns procedimentos que servem um tanto técnicos, fundamental para viabilizar as montagens, que, em certas ocasiões, pode afastar os leitores. Mas acho que a questão é justamente vencer a resistência inicial e entrar no fluxo: a partir do momento em que a leitura começa a fluir, é delicioso, porque são essencialmente diálogos, mais ágeis de se ler do que em livros de literatura convencional.

Rafael: Faço coro ao que o Vinicius disse. Acho que é uma questão de hábito: as pessoas não estão acostumadas ao formato no qual o texto de uma peça vem escrito. Mas, em essência, ele pode ser até mais fácil de ler.
 

Vocês teriam alguma dica para leitores e pais de leitores que queiram se aproximar do gênero?

Vinicius: Minha principal dica seria para as pessoas experimentarem e explorarem o gênero dramático, mesmo que role alguma possível estranheza inicial. É um gênero muito propício para brincar de fazer leituras com grupos de crianças, cada um lendo um personagem, por exemplo, como a Gabi Romeu tão bem sugere e orienta em nossa própria publicação. Acho que se todo mundo começar a se dar conta dessa dimensão lúdica e desse potencial de jogo, o gênero dramático pode ser muito melhor explorado.

 

Na entrevista entre vocês que aparece no livro, o Vini conta que escreve teatro desde bem pequeno e até guarda um caderno com autógrafo da Marília Pêra. Alguma dessas peças se materializou ou influenciou alguma que você tenha escrito depois? Pode contar um pouco qual era o conteúdo e a forma dessas peças?

Vinicius: Para sorte minha e do mundo, nenhuma dessas peças se materializou ou influenciou diretamente nada do que eu tenha escrito depois, hahahaha. Importante frisar: era um caderno de quando eu tinha dez, onze anos, a primeira vez que eu realmente me apaixonei por teatro. Comecei a ler várias peças de autores adultos e ter uma noção da forma e de como se estruturava um texto, mas era tudo muito pueril. Não tenho uma real memória sobre o que elas falavam, mas lembro bem que eram tentativas de comédias "adultas", ou seja, nada mais infantil do que achar muito infantil escrever para crianças como a que eu era. Embora eu não me lembre muito disso que escrevia, acho que há, sim, uma influência residual deste processo na minha escrita. Quase como se aquilo fosse um treino, um jeito de perder o medo da escrita, de entender como e por onde poderia me arriscar.

Ilustração de Raul Aguiar para o livro Mas por quê??! A história de Elvis

Podem contar um pouco sobre as diferenças entre escrever para adultos e para crianças? Vocês pensam ou já pensaram em escrever outros gêneros para crianças?

Vinicius: Pra ser muito honesto, acho que o grande pulo do gato na escrita de Mas por quê??! foi não pensar muito nesta distinção. Claro que há uma preocupação de ser entendido, de não deixar faltar elementos para que a criança possa se situar e se entender naquele universo, bem como uma procura de uma linguagem graciosa, mas que, ao mesmo tempo, não infantilizasse as crianças em demasia. Mas, em termos de dispositivo formal, acho que a peça se parece bastante com procedimentos que usei em textos adultos, uma mesma dinâmica de jogo permanente, e eu apostei que isso seria tão expressivo para as crianças quanto sentia que era para os adultos. Foi uma aposta, claro. Mas acho que a melhor coisa é não subestimar as crianças, porque, em geral, em termos de compreensão elas estão sempre uns dois degraus acima do que a gente pensa.

Quero sim escrever outros gêneros para crianças, até mesmo por influência da Mell, minha companheira. Penso em me arriscar em livros ilustrados e também de escrever outras peças para crianças.

Rafael: Concordo que, em termos formais, às vezes é mais fácil escrever uma peça para crianças, porque elas aderem mais imediatamente ao jogo, à quebra de barreiras em relação à verossimilhança e ao dispositivo imaginativo que cria e transforma mundos muito rapidamente, como só o teatro é capaz de fazer. Às vezes, a exigência por “coerência” e “lógica” de uma plateia adulta, ou mesmo o instinto natural a preferir gêneros e formatos já estabelecidos e conhecidos pode acabar tolhendo parte da criatividade e da experimentação. Nesse sentido, a escrita que visa se conectar com o universo imaginativo da criança consegue alçar voos até mais ousados do que aconteceria em uma peça adulta.

 

Podem falar sobre o momento decisivo em que definiram que o cenário da peça seria a cabeça da Cecília?

Vinicius: Acho que foi um insight que tivemos depois que nosso primeiro esboço de escaleta (uma versão anterior ao texto, com as cenas descritas de forma mais resumida) foi recusado. Na primeira tentativa, pensamos em fazer personagens todos crianças, igualar suas idades. A provocação do Pablo e do Felipe, produtores da peça, foi se não acharíamos um caminho para sermos mais fieis aos personagens que estavam representados no universo visual do livro. Ali vimos um urso de pelúcia, um personagem alado miniatura (quase uma versão masculina para uma fada) e outros personagens mais exóticos. A partir disso, pensamos: mas que lugar é esse, onde cabem estes personagens meio fantásticos? Daí nos demos conta de que este parque era, na realidade, o interior da cabeça de Cecília. E que, os personagens que estavam ali, poderiam ter tido alguma relação direta com Cecília, mas haviam sido esquecidos em seu processo de crescimento. A partir daí, o universo se desenhou com muita clareza e a escrita deslanchou.

 

E, por fim: podem contar sobre uma música do Elvis que seja especial para vocês?

Vinicius: Eu poderia destacar “A Little Less Conversation”, uma canção que eu acho verdadeiramente adorável. É curioso: esta canção não foi um grande hit no tempo em que Elvis estava vivo, mas foi redescoberta, se não me engano, por ter sida incluída na trilha de Onze homens e um segredo no início dos anos 2000. Como eu adorei a canção, foi uma espécie de porta de entrada para conhecer e admirar mais o Elvis, porque antes eu só conhecia o mito, sem saber muito do que era feito.

Rafael: A primeira música do Elvis com a qual tive contato na vida foi “Love me tender”, que era sempre cantada por minha madrasta, uma grande fã do cantor. Depois disso, eu assisti a alguns dos vários filmes protagonizados por ele, por conta de uma pesquisa que estava fazendo para um trabalho. Mas até então não tinha ainda adentrado a magnitude do mito, como bem colocou o Vinicius. Isso aconteceu quando um dia escutei uma gravação de “Bridge Over Troubled Water” ( https://youtu.be/mLbOBoa8vD8 ). Ali eu entendi porque Elvis era Elvis. E, naturalmente, o processo de escrever Mas por quê?! só consolidou esse conhecimento.

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog